"Zonas de nao ser": mulheres negras sem-teto e deslocamento nos Estados Unidos/"Zones of Non-Being": Black Women, Homelessness and Displacement in the United States.

AutorSmith, Christen A.
CargoREVISTA EM PAUTA

A cidade norte-americana de Austin, Texas, e celebrada como a "capital mundial da musica ao vivo" e tem uma das maiores taxas de crescimento de populacao nos Estados Unidos. No entanto, o crescimento e a popularidade da cidade acompanharam um declinio exponencial no que se refere a populacao negra, bem como houve apagamento de espacos, cultura e pessoas negras do cenario urbano (TANG, 2014). Esse processo racializado de renovacao tambem tem um recorte agudo de genero. Existe uma relacao dialetica entre gentrificacao e apagamento especifico de mulheres negras do espaco publico. Em nenhum lugar isso e mais evidente do que nas experiencias das mulheres negras sem-teto. Essas mulheres em Austin ocupam uma "zona de nao ser", em que nao tem direitos a cidade, ao espaco territorial domestico e pouco ou nenhum acesso a servicos sociais. (1)

Politicas de discriminacao e privacao de direitos erguem uma serie de obstaculos que impedem que as mulheres negras acessem a assistencia habitacional do Estado, definindo assim os contornos da cidadania e do pertencimento espacial. As politicas de pertencimento sao territorializadas por quem tem acesso a cidade, sobre quais espacos e sob que circunstancias. Baseado em dois anos de pesquisa etnografica sobre mulheres negras e violencia em Austin, este ensaio examina a situacao das mulheres negras em situacao de rua em uma cidade que se define por sua inexistencia.

Moses e a recepcionista num abrigo para sem-teto em Austin. Sua posicao requer conhecimento completo das operacoes e servicos diarios disponiveis no abrigo, alem de um comportamento agradavel e uma forca profunda para encarar as historias que ela ouve e as coisas que experimenta. Moses vai alem de seus deveres quando se trata de mulheres e familias no abrigo, e conhece os papeis de todos os membros da equipe:

Bem, voce tem uma familia negra que tem quatro e seis filhos, eles precisam passar por a, b, c, d ate z [para se qualificar para programas de moradia e emprego], mas voce tem uma pessoa branca que entra que talvez tenha um filho com algum tipo de deficiencia. Eles pegam essa renda e dizem: tudo bem, voce se qualifica e pode entrar nesse programa. Nos vamos pagar por um ano, talvez ate cinco anos, por mais que exija e colocar voce numa casa e fazer todas essas coisas. Mas a mulher, a garota negra com quatro e cinco filhos, ela tem que ter um emprego Ela tambem pode ter um filho com deficiencia, mas precisa ter um emprego. Ela tem que fazer tudo isso extra. Temos que relatar tudo, e tudo isso extra que precisa ser feito para que ela se qualifique. (Moses).

Moses acredita que os servicos nao sao concedidos a familias negras, especificamente maes negras, por discriminacao racial. Os responsaveis discriminam ativamente as mulheres negras quando procuram servicos para si e suas familias no abrigo. Ela se candidatou a um cargo de gerenciamento de casos mais de uma vez e foi negada. Ao especular sobre os motivos, ela conclui que e provavelmente uma combinacao de discriminacao racial, envelhecimento e o fato de o abrigo nao valorizar seus 15 anos ou mais de trabalho para organizacoes sem fins lucrativos dedicadas a abrigos/abrigos de emergencia, em vez do diploma de bacharel exigido. Segundo Moses, os contratados sao geralmente jovens mulheres brancas, com um diploma de bacharel e pouca ou nenhuma experiencia anterior, o que significa que precisam de treinamento - algo que Moses tambem poderia receber se o abrigo escolhesse investir nela.

Se as mulheres negras ocupam uma posicao marginalizada nos Estados Unidos, as mulheres negras sem-teto vivem a beira da precariedade, e em Austin isso significa extrema periferizacao e invisibilidade. A falta de sistemas de apoio para atender as necessidades especificas das mulheres negras e os obstaculos estruturais que inibem essas mulheres, que buscam servicos de habitacao, para obterem esses servicos impedem que elas sejam incluidas no cenario social da cidade: gentrificacao + discriminacao racial de genero = privacao de direitos espacial. Fatores economicos, como desemprego, subemprego, altos custos habitacionais, falta de apoio e redes familiares, servicos de saude mental sucateados, suporte inadequado de servicos sociais, falta de moradia, acesso precario a educacao e hipercriminalizacao criam a tempestade perfeita que empurra as mulheres negras ao que Frantz Fanon (1963) chamou de "zona do nao ser".

Os antropologos que estudam os sem-teto analisam as maneiras como essas pessoas recusam a territorializacao de seus corpos e, por consequencia, experimentam a alienacao nos espacos urbanos (COOPER, 2018; O'NEILL, 2014). No entanto, poucos examinam o impacto especifico da falta de moradia nas mulheres negras (COX, 2015). Os estereotipos antigos caracterizam as mulheres negras norte-americanas sem-teto como maes improprias, preguicosas e nao merecedoras de politicas assistenciais, classificando-as de "rainhas dos servicos sociais" ("welfare queens"), impedindo que mulheres negras pobres tenham acesso a educacao e assistencia social. (2 ) Estes estereotipos se tornaram parte do discurso racial e hegemonico de moradia, inclusao e exclusao, remodelando a forma como a precariedade e a territorialidade economicas sao vividas e experimentadas. Como consequencia, existe uma discriminacao generalizada contra as mulheres negras que buscam assistencia habitacional em lugares como Austin, especialmente no que diz respeito aos sem-teto.

As estatisticas mostram que 73% das pessoas em abrigos para semteto em Austin sao mulheres e criancas (SALVATION ARMY, 2016) e 42% da populacao sem-teto de Austin e negra, apesar de apenas 8% da populacao geral da cidade ser negra (ECHO, 2017). Pesquisas sobre disparidade economica racializada e de genero em Austin sao praticamente inexistentes; no entanto, um estudo nomeou Austin como uma das areas metropolitanas mais segregadas por renda nos Estados Unidos (FLORIDA; MELLANDER, 2017). A medida que a cidade cresce rapidamente e se torna cada vez mais gentrificada, as mulheres negras estao sendo expulsas espacial e simbolicamente.

Metodologia

Este artigo e baseado em dois anos de pesquisa etnografica sobre violencia contra mulheres negras em Austin, Texas. E apenas um aspecto de um projeto de pesquisa etnografica maior sobre as experiencias de mulheres negras com violencia em Austin, em que realizamos 21 entrevistas qualitativas, quatro grupos focais e 49 pesquisas com mulheres negras estudando e/ou trabalhando em universidades, vivendo em precariedade economica e navegando na politica de nao conformidade de genero em toda a cidade. Como parte desse projeto, realizamos pesquisas etnograficas em abrigos para moradores de rua, que incluiam observacao participante e colaboracao comunitaria. Este ensaio focaliza nossas descobertas em mulheres negras que sofrem precariedade economica.

Nossa abordagem metodologica e informada criticamente pela antropologia feminista negra (CALDWELL, 2007; DAVIS, 2006; MCCLAURIN, 2001; MULLINGS, 1997; PERRY, 2013; WILLIAMS, 2013; 2018). As antropologas feministas negras fizeram uma extensa pesquisa sobre as dimensoes interculturais e socioculturais do racismo de genero na vida das mulheres negras. O que emergiu de nosso trabalho etnografico foi uma serie de informacoes importantes sobre a relacao entre exclusao espacial e violencia na vida de mulheres negras. Logo, descobrimos que a moradia era um dos temas mais importantes que se repetiam quando as mulheres negras compartilhavam suas experiencias com a violencia. Nesse sentido, a violencia estrutural e uma das formas mais agudas de violencia que as mulheres negras experimentam em Austin.

Hiper(in)visivel: mulher negra, segregacao e exclusao em Austin

"Geografias fisicas estao enredadas com processos sociais" (Katherine McKittrick, Demonic Grounds)

Austin e sede de centenas de festivais de musica, possui grandes empresas de tecnologia, uma grande universidade publica e uma pequena universidade privada, e e uma populacao construida em torno de uma personalidade jovem, vibrante e promissora. Tambem e conhecida como um pontinho "azul" que apoia o partido democratico, considerado mais liberal, na vasta paisagem "vermelha" do Texas que apoia o partido republicano, considerado mais conservador. No entanto, o status da moda de Austin tambem tem um ventre inglorio: gentrificacao. Os custos de habitacao dispararam nas ultimas duas decadas. Esse aumento nos custos de moradia teve um efeito adverso na populacao negra dessa cidade. Embora Austin tenha sido "classificada constantemente entre as principais cidades que mais crescem nos Estados Unidos", nos ultimos vinte anos, sua populacao negra esta diminuindo rapidamente - tanto que em 2014 foi "a unica cidade importante dos Estados Unidos a experimentar uma taxa de dois digitos do crescimento da populacao em geral, coincidente com o declinio da populacao afro-americana" (TANG e FALOLA, 2016, p. 2).

A geografa cultural Katherine McKittrick (2006, p. 67-68) argumenta que "as geografias fisicas estao enredadas em processos sociais". Em Austin, o processo social de gentrificacao nao e um fenomeno recente, mas que pode ser ligado genealogicamente...

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