O imaginário social ítalo-brasileiro na região da Serra gaúcha: possibilidades para um desenvolvimento transcultural

AutorRoberta Augustin; Camila Eloisa da Costa; Bruno Rodrigues da Silva
Páginas115-126

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1 Continuidades e descontinuidades

O tema apresentado123 parte das reflexões e discussões que permeiam o cotidiano vivido pelos pesquisadores, que instigou a construção de um projeto de pesquisa sobre a complexa relação entre o Mito do imigrante, os movimentos migratórios contemporâneos e o desenvolvimento social. Um tema atual, que reflete tanto no plano macro-estrutural quanto nas micro-relações cotidianas. Ou seja, é necessário mapear as permanências e rupturas corroboradas na base ideológica étnico-cultural da região da serra gaúcha, partindo predominantementePage 116 das idéias de preservação e fortalecimento da cultura ítalo-brasileira e o seu impacto nos movimentos migratórios contemporâneos, influenciando o desenvolvimento social.

Transcorrendo, temporalmente, desde a origem da zona de colonização italiana no final do século XIX, vinculada ao processo de povoamento europeu do Estado Nacional Brasileiro, articulado ao processo de desenvolvimento sócio-econômico do Estado Brasileiro do século XX, identificando os grandes períodos do processo de criação cultural e material para afirmação da cultura ítalo-brasileira. Esta, apoiada e incentivada pelo poder público regional em todo século XX, construída nas diferentes manifestações sociais como os festejos do cinqüentenário e o centenário da imigração italiana, nas grandes festas comemorativas e religiosas, assim como os espaços urbanos constituindo os “lugares de memória”: museus, arquivos históricos, rotas turísticas como os “la citta”, rota dos imigrantes, caminhos das colônias, incentivando a sociabilidade a partir do olhar da cultura ítalo-brasileira.

Para uma melhor compreensão do tema e recorte histórico, parte-se de uma contextualização sucinta. A origem da zona de colonização italiana remonta o ato de 24 de maio de 1870, quando o presidente da Província do Rio Grande de São Pedro criou por ato provincial as Colônias Conde D’Eu e Dona Izabel. Um ano após o ato, o presidente Xavier Pinto Lima afirmou convênio com a firma Caetano Pinto & Cia. Irmãos, no intento de introduzir 40 mil colonos para trabalharem a agricultura na região da Serra. Todavia, o acordo estava além das reais possibilidades governamentais da província, e em 1875 as duas colônias foram devolvidas ao governo central de D. Pedro II, que incentivou a imigração italiana.

A colonização de Conde D’Eu (atual Garibaldi) já havia iniciado, enquanto de Dona Isabel (atual Bento Gonçalves) tinha apenas os seus lotes medidos. Nesse momento foram criados novos núcleos coloniais, como a Colônia Fundos de Nova Palmira, depois passou a ser chamada de Colônia Caxias partir de 1877. Em 1884, a Colônia Caxias é emancipada da situação colonial, passando a ser o 5° distrito de Paz de São Sebastião do Caí, com o nome de Vila Santa Tereza e em 1890 com o desenvolvimento da Vila Santa Tereza torna-se o município de Caxias (atual Caxias do Sul), assim como: Nova Milano (atual Farroupilha); Alfredo Chaves (1884, hoje Veranópolis); Guaporé (1892); Nova Trento (atual Flores da Cunha); Antônio Prado.

A distribuição dos lotes de terra estava concatenada com a lei de terras de 1850, ou seja, a aquisição pelos colonos se dava pelo contrato de compra, obedecendo a um prazo de cinco anos. A partir dali teve início o processo contínuo, lento e gradual de ocupação daquelas terras, em meio aos conflitos, às crises e às situações de convívio experimentadas pelas levas de imigrantes que vieram da Itália. A empresa colonial imigrante tinha por base a pequena propriedade e o trabalho livre, em meio à estrutura escravista de produção, que estava em crise de hegemonia na Província, como se pode verificar com a emancipação escrava lenta e gradual, iniciada em 1884.

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Os imigrantes que chegavam às colônias eram na sua maioria agricultores, que viviam em dificuldades na Itália devido ao processo de revolução industrial e unificação política. Esses fatos articulados ocasionavam o aumento da miséria, decorrente da devastação do plantio e do constante estado de guerra. A propaganda dos governos latino-americanos de garantias de propriedade, produção para o sustento, para a subsistência da família e a criação de novos mercados, feita pelos representantes do Brasil, Argentina, Chile, Peru, entre outros Estados. Desenvolveu no imaginário dos emigrantes a oportunidade de grandes transformações, a América era concebida como a “Terra da Promissão”, simbolizada como a sobrevivência, as facilidades e o enriquecimento – garantias de progresso individual e coletivo.

Em contrapartida para os brasileiros a vinda dos imigrantes substituía o braço escravo e acalmava os ânimos dos mais fervorosos, mas, para o sul, a preocupação era povoar o território e desenvolvê-lo. Nesta argumentação, a colonização italiana na região da serra gaúcha teve como fator principal o desenvolvimento econômico na formação histórica do Rio Grande do Sul, devido às peculiaridades desta colonização o panorama socioeconômico do sul do país desenvolveu e disseminou diferentes economias e conseqüentemente os desníveis regionais.

Nos espaços urbanos de colonização italiana, surgem novos modelos de conjuntos habitacionais construídos na Província do Rio Grande de São Pedro, que se constituem nos lugares da memória italiana, expressos no patrimônio arquitetônico e cultural da zona de colonização italiana. Na herança colonial, os imigrantes legaram habitações nas encostas com um amplo porão, utilizado para depósito e cantina. A residência propriamente dita fica na parte superior, enquanto o sótão é o espaço reservado para a estocagem dos cereais e mantimentos, o que garantia a subsistência contínua. Os alimentos eram preparados em espaço próprio, separado da residência, projetado para garantir a segurança da família, ligada por um alpendre.

As habitações sempre enfeitadas com “lambrequins” e “aduelas” fazem a diferença estética do conteúdo arquitetônico imigrante. No acervo cultural, convém destacar as romarias, as procissões, de devoção popular como Nossa Senhora de Caravaggio, Corpus Christi, Festa da Colheita (hoje a nacional Festa da Uva), animada pelas famílias que cantavam músicas de saudade da mãepátria, a Itália, misturada com a terra nova. As gaitas – introduzidas pelos colonos italianos na província – animavam ainda mais as cantorias, acompanhadas de vinhos, massas, polentas e galetos, expressavam a produção colonial.

No cotidiano desses grupos sociais encontramos os torneios de bocha, de mora, jogos de baralho como a “bisca”, a “escova”, o “quatrilho”, a “caxeta”, as particularidades e pertinências do multiculturalismo, da diversidade cultural, que compõem a sociabilidade dos diversos grupos italianos, com seus dialetos e ritos, que se integraram e interagiram na cultura sul-rio-grandense. No âmago da integração percebem-se vários conflitos, inerentes às diversidades dos grupos de colonização, como o sentimento de pertencimento da cultura italiana. TambémPage 118 o processo de ocupação da terra e a transformação da natureza diversificaram a zona de colonização italiana. As concepções de educação e as suas práticas pedagógicas também são marcos referenciais de uma época e fazem parte do imaginário social dos imigrantes.

Ao longo do processo foram sendo construídos espaços de sociabilidade e tensão, dos quais alguns só existem na memória individual, nas fotografias e relatos daqueles que viveram aquele momento, como testemunhas dos diversos acervos de imigrantes dos “lugares da memória”, preservados em instituições como museus, arquivos, casas de cultura, espaços privados familiares, em diversas fontes iconográficas, orais e escritas. As antigas avenidas antes movimentadas, vivas e arborizadas, onde circulava...

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