A abertura e o estado pluralista como busca de solução constitucional ao problema das 'duas bolívias'

AutorSalvador Schavelzon
CargoAntropólogo, Graduado na Universidade de Buenos Aires, Mestre e Doutorando pela Universidade Federal de Rio de Janeiro (PPGSA e PPGAS)
Páginas80-97

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Introdução: do dois para o múltiplo

Na Bolívia, muitas coisas aparecem sob o signo da dualidade: Oriente e Ocidente; terras baixas e terras altas; a fórmula de chacha-warmi (homem-mulher) na tradição de governo aimará; e a ideia das “duas bolívias” frequentemente mobilizada no discurso político boliviano. Ocuparei-me com a continuação desse problema das “duas bolívias”, que consiste na leitura da realidade boliviana com ênfase na fratura e na divisão irreconciliável. Esse problema apareceu formulado com claridade pelo indianismo de Felipe Quispe, protagonista de bloqueios na região do altiplano entre 2000 e 2005. Ele mobilizava uma política da memória histórica das rebeliões indígenas e do enfrentamento entre o país dos índios e o dos espanhóis, atualizado na época republicana como o país dos índios, e dos mestiços. Muitas vozes provindas do espectro político oposto aos camponeses indígenas, também utilizam a imagem das “duas bolívias” para criticar o que entendem como atropelo das libertais individuais por parte do governo de indígenas e sindicatos rurais. A ameaça da anarquia que muitos republicanos sentem quando se fala em pluralismo abre as portas para as formas de governo e de justiça indígenas.

A imagem da oposição de “duas bolívias”, no entanto, também deriva da cosmologia andina em imagens do encontro, da mistura e da combinação. A personagem híbrida do Pepino no carnaval representa a ambiguidade, e os que entendem de filosofia andina destacam a dualidade e a complementaridade como princípio onipresente (ESTERMANN, 1998), junto com a reciprocidade, base da economia das comunidades andinas históricas e, até hoje, presente nos Andes (TEMPLE, 1995). Essa é outra chave de leitura da realidade política que não parte da fratura, mas do encontro e do diálogo. Filemón Escóbar, um dos fundadores do MAS (Movimiento al Socialisto) e mentor de Evo Morales, agora distanciado e crítico, é um dos que aludem à cosmologia andina para pensar na política atual. Em recente livro (2008), ele defende essa visão que busca, na complementaridade, um contraponto da confrontação que ele encontra na política do atual governo boliviano e da oposição.

Evo Morales (empossado em janeiro de 2006) também pode ser lido à luz do dois. Os primeiros três anos do seu governo passaram entre a busca do consenso e o enfrentamento entre dois projetos políticos. A política do país aparece marcada pelo Dois com um cenário político sumamente polarizado entre os setores regionais dos governos departamentais do leste, com gás, soja e petróleo, e o governo dos camponeses e setores de esquerda com força eleitoral na parte ocidental do país, mais populosa e também mais pobre. Essa oposição se expressou entre agosto de 2006 e dezembro de 2007, durante a Assembleia Constituinte, que será o eixo da análise neste texto. Durante meses, todos os esforços em redigir uma Constituição de consenso fracassaram. Só depois do ponto mais álgido nos enfrentamentos entre governo central e as regiões de Oriente (em setembro 2008), o governo conseguiu conformar uma mesa de diálogo e viabilizar um acordo com a oposição no congresso nacional, para que em janeiro de 2009 os bolivianos votem a aprovação da nova Carta Magna, promulgada, finalmente, em fevereiro de 2009.

O desenlace com aprovação de nova Constituição pode ser lido como uma imposição do projeto de Evo Morales, depois de ter ganhado no referendo revocatório com o 67,4% dos votos. Não seria um encontro de diferentes, mas uma imposição. Essa é a leitura da

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oposição. Mas na leitura do texto constitucional aprovado que apresentarei a continuação, é evidente que o resultado final não foi o que o MAS (partido de governo) propôs, e sim um texto que, além da proposta do governo, inclui a revisão do texto realizada no Congresso por parlamentares da oposição e com mudanças propostas pelos prefeitos (governadores) das regiões opositoras. Nesse sentido, o problema das “duas bolívias” teria tido no processo constituinte uma resolução, fruto do acordo, como podemos ver nos conceitos centrais estabelecidos no primeiro artículo:

Artículo 1. Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo político, económico, jurídico, cultural y linguístico, dentro del proceso integrador del país.

No primeiro artigo da constituição, demandas centrais da oposição foram incluídas como o reclamo das autonomias e a ideia de Estado Social de Direito. Mas o encontro de diferenças vai além e aparece na opção pela multiplicidade, que pode ser pensada como solução política ao problema das “duas bolívias”, e que deve ser entendida não só como encontro do governo e a oposição, mas também do encontro dos diversos setores políticos indígenas, camponeses, mineiros, classe média urbana, etc, que formam parte da base do partido de governo. A opção pelo pluralismo é a proposta que visa a inclusão dos 36 povos indígenas considerados excluídos do poder político e econômico, por causa da discriminação e desvalorização cultural. A ideia de complementaridade de sistemas civilizacionais diferentes e do pluralismo, marca a inclusão dos diferentes povos indígenas a partir de reformas que tentam agregar um modelo de Estado alternativo ao “um”; sendo o “um”, no mundo político boliviano, a nação boliviana monocultural, falante de espanhol e de religião católica, a que, agora, se oporia ao Estado Plurinacional conformados por muitos povos e nações. Alguns trabalhos que podem ser citados como antecedentes dessas reformas estatais feitas da perspectiva pluralista são os do Grupo Comuna, cujos membros foram ativos participantes do processo constituinte, desde a análise intelectual ou a prática política (GARCIA LINERA; GUTIERREZ; PRADA; TAPIA; 2000; GARCIA LINERA; TAPIA; PRADA, 2007). A complementaridade e o dois, assim, dá lugar não só a duas, mas à multiplicidade de muitas bolívias que compõem o Estado Plurinacional, e que busca, também, se afastar do multiculturalismo incluído no Estado boliviano em reformas da década de 90, entendido como a inclusão subordinada da diferença e, portanto, uma nova versão do Dois que separa indígenas como cidadãos de segunda classe.

No processo constituinte, a solução pluralista que permitia incluir as diferenças não só políticas mas também “civilizacionais” e cosmológicas, não conformava à oposição que, em lugar de um pluralismo combinado com um governo centralizado, exigia poder político para as regiões e descentralização, mas a partir de uma lógica republicana e liberal tradicional marcada pela imagem da homogeneidade cultural, com o espanhol, por exemplo, como única língua oficial. A busca de um modelo de Estado que evitasse a fratura, então, não consistiu só no pluralismo do Estado Plurinacional Comunitário proposto pelo MAS, mas também na inclusão do reclamo da oposição. Além da inclusão dos conceitos citados, originalmente fora do projeto do MAS e presente nos primeiros rascunhos de Constituição da oposição, devia se construir uma ordem constitucional equilibrada. Nesse sentido, no

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primeiro artículo, também encontramos compromisso entre forças centrípetas e centrífugas na combinação do Estado Unitário, com a descentralização e a plurinacionalidade, que remite, antes, a formas políticas de tipo confederativo.

Na continuação, apresentarei algumas notas que surgem de uma pesquisa etnográfica do processo constituinte boliviano e que visam aportar elementos para entender o movimento contínuo — na realidade política boliviana — entre as relações que citamos acima: a unidade, a diversidade, a oposição, o acordo, a pluralidade. Esses movimentos marcam a atual fase da política boliviana no momento pós-constituinte em que devem ser implementadas as leis que regulamentam a constituição. Esse trabalho tem como centro o cenário parlamentar onde a marca da oposição entre “duas bolívias” se reedita em vários debates trazidos pela nova Constituição.

A ambivalência dos significados no estado boliviano e no governo de Evo Morales

Para pensar no sentido das reformais estatais abertas trazidas pela nova constituição, é interessante a ambivalência presente nos atos de governo e na própria direção do projeto político liderado por Evo Morales. O ubíquo lugar do indígena e a mistura de elementos ideológicos e identitários heterogêneos fazem do processo político boliviano um processo original e difícil de classificar. Para analisar o processo, é bom começar por tentar entender o governo Morales, que controlava a maioria na Assembleia Constituinte.

Em relação ao Estado, o sentido da atual administração não é unívoco: de um lado, a nova Constituição e gestão de governo parecem potenciar o componente da “descolonização” apoiando o mundo indígena em detrimento do Estado, foco colonial desta crítica. O processo político atual não pode ser analisado, nesse sentido, a partir das tradições do mundo das comunidades rurais de onde provém o núcleo do MAS e o maior apoio eleitoral. Nesse sentido, um processo de desestruturação da república teria se iniciado com a chegada dos campesinos e indígenas no Estado e se fortalecido com a aprovação da nova Constituição. Por outro lado, porém, a reforçada legitimidade da autoridade estatal na atual fase política, junto com os ingressos mais altos da história da Bolívia no tesouro estatal e dos municípios — por causa do gás — poderia significar uma revitalização da república que, ela primeira vez, aparece presente nas comunidades com um Estado que, longe de ser ameaçado, se mostra agora mais fortalecido. A posição...

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