Acórdão Nº 0000845-85.2011.8.24.0007 do Quinta Câmara de Direito Público, 23-02-2021

Número do processo0000845-85.2011.8.24.0007
Data23 Fevereiro 2021
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoQuinta Câmara de Direito Público
Classe processualApelação
Tipo de documentoAcórdão










Apelação Nº 0000845-85.2011.8.24.0007/SC



RELATOR: Desembargador HÉLIO DO VALLE PEREIRA


APELANTE: MUNICÍPIO DE BIGUAÇU/SC E OUTRO APELADO: GEAN CARLO DA CRUZ


RELATÓRIO


Gean Carlo da Cruz ajuizou ação indenizatória em relação ao Estado de Santa Catarina e ao Município de Biguaçu pretendendo a reparação por dano moral.
Em maio de 2008 sua esposa, então com 37 anos de idade, sofreu ataque cardíaco na própria residência, ficando inconsciente. Quando se deparou com a cena, tentou carregá-la, mas sem sucesso, pois não tem uma das mãos. Acionou o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), o qual não pôde socorrê-la sob a justificativa de que a ambulância estava quebrada. Com o auxílio de vizinhos, finalmente conseguiu levá-la ao posto de saúde municipal, onde foi novamente solicitado o Samu, o qual, dessa vez, o atendeu. Ainda assim, a cônjuge faleceu, mesmo depois de inúmeras tentativas de reanimação em decorrência de "edema e congestão pulmonares-cardiopatia isquêmica". Imputou a responsabilidade à Administração Pública na medida em que o evento em regra é fatal apenas em pessoas idosas, tendo a demora no atendimento contribuído de forma decisiva para o óbito. Em razão do ocorrido, apresentou reclamação administrativa e recebeu resposta do Coordenador Médico do Samu no sentido de que "o procedimento adotado no atendimento do cidadão foi totalmente inadequado e inaceitável dentro dos padrões do SAMU".
O autor sustenta que a negligência do Poder Público se traduziu na perda de uma chance, uma vez que a possibilidade de salvamento desapareceu à vista da ausência de transporte hábil.
Pediu a reparação moral no valor de R$ 109.000,00 (equivalente a 200 salários-mínimos à época do ajuizamento).
A sentença foi de parcial procedência para condenar solidariamente os réus ao pagamento de R$ 50.000,00.
Os demandados apelam.
O Município de Biguaçu debate sua ilegitimidade na medida em que o corréu é o responsável pelo gerenciamento do Samu. Sobre a questão, ainda que exista parceria com a União e o Estado, é viável verificar em qual esfera de atuação ocorreu o dano. No tema de fundo, sustenta que inexiste comprovação do nexo de causalidade entre a sua conduta e o resultado danoso, sendo que foi "o próprio Apelado quem ligou para o SAMU e este lhe informou que a ambulância estava quebrada, e somente após é que foi atendida pelo posto de saúde do Apelante, quando recebeu os primeiros socorros depois de ligar novamente para o SAMU. Portanto, não restou comprovado a ação ou omissão geradora da responsabilidade quanto ao Apelante, posto que as ligações foram efetuadas diretamente ao SAMU, localizado no Município de Florianópolis e administrado pelo Estado de Santa Catarina".
O Estado de Santa Catarina reconhece que houve falha operacional do Samu; contudo, entende que não há comprovação de que daí se deu o falecimento da vítima. Em outros termos, carece de provas de que se o serviço tivesse sido prestado corretamente a companheira do autor teria, com certeza, sobrevivido ao infarto, o que afasta a sua obrigação de indenizar. Subsidiariamente, questiona o valor arbitrado a título de dano moral, que compreende ser desarrazoado e incompatível com as circunstâncias de fato, pois não foi pautado nas provas, mas na "experiência pessoal do juiz". Relembra ainda que a Fazenda Pública é isenta de custas.
Houve contrarrazões a ambos os recursos.
A Procuradoria-Geral de Justiça se absteve de manifestação.
Converti o julgamento em diligência para que fosse realizada perícia.
Retornando os autos com o laudo, as partes se manifestaram

VOTO


1. O caso deve ser analisado pela ótica da responsabilidade objetiva, ainda que seja usual o enveredamento pela análise da culpa ou dolo de parte da doutrina e da jurisprudência (pela compreensível influência de Celso Antônio Bandeira de Mello, que faz essa defesa), certamente temerosos de um possível alargamento excessivo quanto à obrigação de indenizar da parte da Administração nas hipóteses de condutas por omissão.
A Constituição (art. 37, § 6º), todavia, não faz a diferenciação e não haverá muito menos espaço para condenações imerecidas da Fazenda Pública. Responsabilidade objetiva não é responsabilidade integral. Haverá necessidade de avaliação do nexo causal, o que afastará hipóteses que poderiam ser consideradas imputáveis indevidamente à Administração. A aplicação, por exemplo, das teorias da causalidade adequada ou do dano direto e imediato levará as coisas a bom trilho. Ademais, não será bastante dizer que o Poder Público não agiu. A vítima deverá demonstrar "uma obrigação legal específica de impedir o resultado" (para repetir o dito pelo Min. Luiz Fux no precedente em seguida citado). Uma causalidade normativa será exigida, como se diz costumeiramente no âmbito criminal.
O Supremo Tribunal Federal resumiu em repercussão geral:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE DETENTO. ARTIGOS 5º, XLIX, E 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.1. A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral.2. A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso.(...) (RE 841.526, rel. Min. Luiz Fux)
2. Ainda que sob perspectivas diversas, os réus sustentam a mesma ideia: a ausência de comprovação do nexo causal entre a conduta e o dano.
O Estado de Santa Catarina diz que inexiste demonstração de que o dano tenha ocorrido em virtude da falha operacional, que é mesmo incontroversa; o Município de Biguaçu, por sua vez, defende que em nada contribuiu para o resultado.
As provas aclaram os fatos:
Eis o que foi narrado pelo autor quando da reclamação feita na ouvidoria ("informação 50" no ev. 247):
O cidadão relata que no dia 03/05/2008, às 22:00hrs, sua esposa Vera sofreu um ataque cardíaco. O Sr. Gean tem uma mão amputada e por isso não teria como levantar sua esposa do chão e colocá-la em um veículo.Foi solicitado neste momento o SAMU, mas a atendente informou que a ambulância estava quebrada, logo não teria como socorrê-la. Desesperado com a situação e sem alguma orientação por parte do serviço, o reclamante buscou ajuda dos vizinhos e conseguiu então levar sua esposa ao Posto Central de Biguaçu, onde a enfermeira que realizou os primeiros socorros prontamente acionou o SAMU pela gravidade da situação e este atendeu a chamada. Tentaram reanimar a Sra. Vera, mas não foi possível.
Esta a posição fornecida:
Em resposta a manifestação, o Coordenador Médico do SAMU informou que só foi possível localizar esta ocorrência pelo telefone (o mesmo que consta na solicitação da ouvidoria). A ligação durou 1 minuto, não houve regulação médica, nenhum dado da ocorrência foi preenchido e a ligação não foi repassada para o médico regulador. Procedimento totalmente inadequado e inaceitável dentro dos padrões do SAMU. Toda a ligação deve passar pelo médico. Uma unidade do SAMU estar quebrada jamais justifica o não envio do recurso, visto que o SAMU funciona como uma rede e em casos de urgência sempre uma unidade de outra região será enviada para atender aquela ocorrência. Da mesma forma toda ligação deve ser repassada para o médico regulador do SAMU, pois ele, além de poder enviar o recurso, pode orientar o solicitante ou o paciente. Portanto, o procedimento do TARM (técnico e regulação médica, que recebe as ligações) foi totalmente indevido e o mesmo foi notificado e as medidas cabíveis está sendo tomadas.
Foi colhido o depoimento do Coordenador Médico do SAMU (responsável pela resposta acima), que esclareceu:
"(...) é Coordenador Estadual do SAMU desde 2007; que achou pelo nome do autor uma reclamação feita na ouvidoria e acharam o prontuário eletrônico; que o procedimento sempre foi o mesmo; que são três profissionais dentro da central, que tem o técnico (TARM) que atende o telefone, e sua função é anotar quem está ligando e onde está a vítima, só isso, não pergunta sobre o quadro clínico; (...) que o médico decide se envia a ambulância ou não, mas só envia em caso de urgência; porém, no caso específico, a ligação não foi repassada para o médico, o TARM atendeu a ligação; (...) hoje, em 30 segundos, eles repassam a ligação; que em 2008 ainda era técnico de enfermagem que era TARM; que desconectavam o gravador dos atendimentos então, na época não tinha a gravação desta ligação e não tem até hoje o registro de áudio dela; hoje em dia a gravação é da própria central telefônica; que naquela época "sumiam" com o conector responsável pela gravação das ligações; o TARM que não trabalha mais lá gerou outros problemas; (...) que ele não passou para o médico e [isso] é uma conduta inadmissível para TARM, porque ele tem só que pegar o ponto de referência, quem é que está ligando e a localização; não deve em hipótese alguma dar orientação, sem passar para o médico; quem dá orientação é sempre o médico; e a orientação sempre dada é que o SAMU é uma central de escuta permanente, não é uma central única e...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT