Acórdão Nº 0009965-60.2018.8.24.0023 do Terceira Câmara Criminal, 01-02-2022

Número do processo0009965-60.2018.8.24.0023
Data01 Fevereiro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoTerceira Câmara Criminal
Classe processualApelação Criminal
Tipo de documentoAcórdão
Apelação Criminal Nº 0009965-60.2018.8.24.0023/SC

RELATOR: Desembargador LEOPOLDO AUGUSTO BRÜGGEMANN

APELANTE: MARCOS PEREIRA DOS SANTOS (RÉU) APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR)

RELATÓRIO

Na comarca da Capital, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra Marcos Pereira dos Santos, dando-o como incurso nas sanções dos arts. 330 e 331, ambos do Código Penal, pela prática das condutas assim descritas na inicial acusatória:

No dia 6 de julho de 2018, por volta das 1h50, os policiais militares estavam em rondas pela Avenida Paulo Fontes, no Centro desta Capital, nas proximidades do bar Amarelinho, conhecido ponto de tráfico de drogas, avistaram Marcos Pereira dos Santos em atitude suspeita e realizaram sua abordagem.

Emanada ordem de parada, o denunciado desobedeceu, mantendo-se em caminhada na direção oposta à força policial. Posteriormente, o denunciado ainda desobedeceu a todas as ordens legais subsequentes, atinentes à busca pessoal, emanadas dos funcionários públicos no exercício de suas funções.

Em seguida, Marcos desacatou os funcionários públicos nos exercício de suas funções, usando diversas vezes de palavras de baixo calão e impropérios, como 'seus policiais de merda', dentre outras ofensas, no claro intuito de desprestigiar a função por eles exercida (ev. 16).

Concluída a instrução do feito, a denúncia foi julgada procedente para condenar o acusado à pena de 08 (oito) meses e 24 (vinte e quatro) dias de detenção, em regime inicial semiaberto, por infração ao disposto nos arts. 330 e 331, ambos do Código Penal. Foi-lhe concedido o direito de recorrer em liberdade (ev. 67).

Irresignada, a defesa interpôs recurso de apelação, no qual requereu a absolvição do acusado em relação a ambos os delitos, argumentando, para tanto, a atipicidade do crime de desacato, uma vez que o tipo penal conflita com o art. 13 do Pacto San Jose da Costa Rica, o qual dispõe acerca da liberdade de pensamento e de expressão, entendendo pela prevalência do tratado internacional, que possui status supralegal. E, ainda, no que tange ao crime de desobediência, sustenta a ausência de materialidade, arguindo que o denunciado não agiu com dolo, porquanto sequer percebeu a presença da viatura policial ou, alternativamente, ainda que tenha se evadido, assim agiu para preservar sua liberdade, tendo em vista que estava descumprindo com o recolhimento noturno, condição do benefício da saída temporária que estava usufruindo. No mais, de forma subsidiária, pugnou pela fixação da pena-base no mínimo legal, através do afastamento dos maus antecedentes, argumentando a ocorrência de bis in idem ao se reconhecer maus antecedentes e, também, a agravante da reincidência e, por fim, pela alteração do regime inicial de cumprimento de pena do semiaberto para o aberto (ev. 73).

Juntadas as contrarrazões (ev. 79), ascenderam os autos a esta instância, e a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Exmo. Sr. Dr. Rogério A. da Luz Bertoncini, opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso interposto (ev. 11 SG).

Este é o relatório.

VOTO

Trata-se de recurso de apelação contra decisão que julgou procedente a denúncia e condenou o acusado às sanções previstas pelo art. 330 e art. 331, ambos do Código Penal.

O recurso é de ser conhecido, porquanto presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade.

Do crime de desacato (art. 331 do Código Penal)

Inicialmente, cumpre registrar que o objeto do presente apelo no que tange ao crime previsto no art. 331 do CP cinge-se à alegada atipicidade da conduta, não havendo qualquer insurgência em relação à autoria e à materialidade delitivas.

A defesa postula a absolvição do apelante, arguindo, em suma, a inconstitucionalidade do tipo penal, com fundamento no art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica e art. 5º, IX, da Constituição Federal.

Sem razão.

Tem-se conhecimento da controvérsia existente quanto à inconvencionalidade do delito de desacato.

É possível verificar a existência de julgado do Superior Tribunal de Justiça que entendeu pela incompatibilidade do tipo penal com a Convenção Americana de Direitos Humanos (REsp 1.640.084/SP, rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 15/12/2016). No entanto, o posicionamento que prevaleceu na Colenda Corte, é pela compatibilidade do crime de desacato com a referida Convenção:

HABEAS CORPUS. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO E DOS ARTS. 330 E 331 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE DESACATO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. DIREITOS HUMANOS. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA (PSJCR). DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO QUE NÃO SE REVELA ABSOLUTO. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. INEXISTÊNCIA DE DECISÃO PROFERIDA PELA CORTE (IDH). ATOS EXPEDIDOS PELA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). AUSÊNCIA DE FORÇA VINCULANTE. TESTE TRIPARTITE. VETORES DE HERMENÊUTICA DOS DIREITOS TUTELADOS NA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO. PREENCHIMENTO DAS CONDIÇÕES ANTEVISTAS NO ART. 13.2. DO PSJCR. SOBERANIA DO ESTADO. TEORIA DA MARGEM DE APRECIAÇÃO NACIONAL (MARGIN OF APPRECIATION). INCOLUMIDADE DO CRIME DE DESACATO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO, NOS TERMOS EM QUE ENTALHADO NO ART. 331 DO CÓDIGO PENAL. INAPLICABILIDADE, IN CASU, DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO TÃO LOGO QUANDO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. WRIT NÃO CONHECIDO.

1. O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), denominada Pacto de São José da Costa Rica, sendo promulgada por intermédio do Decreto n. 678/1992, passando, desde então, a figurar com observância obrigatória e integral do Estado.

2. Quanto à natureza jurídica das regras decorrentes de tratados de direitos humanos, firmou-se o entendimento de que, ao serem incorporadas antes da Emenda Constitucional n. 45/2004, portanto, sem a observância do rito estabelecido pelo art. 5º, § 3º, da CRFB, exprimem status de norma supralegal, o que, a rigor, produz efeito paralisante sobre as demais normas que compõem o ordenamento jurídico, à exceção da Magna Carta. Precedentes.

3. De acordo com o art. 41 do Pacto de São José da Costa Rica, as funções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos não ostentam caráter decisório, mas tão somente instrutório ou cooperativo. Desta feita, depreende-se que a CIDH não possui função jurisdicional.

4. A Corte Internacional de Direitos Humanos (IDH), por sua vez, é uma instituição judiciária autônoma cujo objetivo é a aplicação e a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, possuindo atribuição jurisdicional e consultiva, de acordo com o art. 2º do seu respectivo Estatuto.

5. As deliberações internacionais de direitos humanos decorrentes dos processos de responsabilidade internacional do Estado podem resultar em: recomendação; decisões quase judiciais e decisão judicial. A primeira revela-se ausente de qualquer caráter vinculante, ostentando mero caráter "moral", podendo resultar dos mais diversos órgãos internacionais. Os demais institutos, porém, situam-se no âmbito do controle, propriamente dito, da observância dos direitos humanos.

6. Com efeito, as recomendações expedidas pela CIDH não possuem força vinculante, mas tão somente "poder de embaraço" ou "mobilização da vergonha".

7. Embora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já tenha se pronunciado sobre o tema "leis de desacato", não há precedente da Corte relacionada ao crime de desacato atrelado ao Brasil.

8. Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos se posicionou acerca da liberdade de expressão, rechaçando tratar-se de direito absoluto, como demonstrado no Marco Jurídico Interamericano sobre o Direito à Liberdade de Expressão.

9. Teste tripartite. Exige-se o preenchimento cumulativo de específicas condições emanadas do art. 13.2. da CADH, para que se admita eventual restrição do direito à liberdade de expressão. Em se tratando de limitação oriunda da norma penal, soma-se a este rol a estrita observância do princípio da legalidade.

10. Os vetores de hermenêutica dos Direitos tutelados na CADH encontram assento no art. 29 do Pacto de São José da Costa Rica, ao passo que o alcance das restrições se situa no dispositivo subsequente. Sob o prisma de ambos instrumentos de interpretação, não se vislumbra qualquer transgressão do Direito à Liberdade de Expressão pelo teor do art. 331 do Código Penal.

11. Norma que incorpora o preenchimento de todos os requisitos exigidos para que se admita a restrição ao direito de liberdade de expressão, tendo em vista que, além ser objeto de previsão legal com acepção precisa e clara, revela-se essencial, proporcional e idônea a resguardar a moral pública e, por conseguinte, a própria ordem pública.

12. A CIDH e a Corte Interamericana têm perfilhado o entendimento de que o exercício dos direitos humanos deve ser feito em respeito aos demais direitos, de modo que, no processo de harmonização, o Estado desempenha um papel crucial mediante o estabelecimento das responsabilidades ulteriores necessárias para alcançar tal equilíbrio exercendo o juízo de entre a liberdade de expressão manifestada e o direito eventualmente em conflito.

13. Controle de convencionalidade, que, na espécie, revela-se difuso, tendo por finalidade, de acordo com a doutrina, "compatibilizar verticalmente as normas domésticas (as espécies de leis, lato sensu, vigentes no país) com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no território nacional." 14. Para que a produção normativa doméstica possa ter validade e, por conseguinte, eficácia, exige-se uma dupla compatibilidade vertical material.

15. Ainda que existisse decisão da Corte (IDH) sobre a preservação dos direitos humanos, essa circunstância, por si só, não seria suficiente a elidir a deliberação do Brasil acerca da aplicação de eventual julgado no seu âmbito doméstico, tudo isso por força da soberania que é inerente ao Estado...

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