Acórdão Nº 0011370-52.2019.8.24.0038 do Segunda Câmara Criminal, 03-11-2020

Número do processo0011370-52.2019.8.24.0038
Data03 Novembro 2020
Tribunal de OrigemJoinville
ÓrgãoSegunda Câmara Criminal
Classe processualRecurso em Sentido Estrito
Tipo de documentoAcórdão



ESTADO DE SANTA CATARINA

TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recurso Em Sentido Estrito n. 0011370-52.2019.8.24.0038, de Joinville.

Relatora: Desembargadora Hildemar Meneguzzi de Carvalho

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. SUPOSTO CRIME DE ABORTO E COMUNICAÇÃO FALSA DE CRIME (ARTIGOS 124, CAPUT, E 340, CAPUT, AMBOS DO CÓDIGO PENAL). DECISÃO QUE REJEITOU A DENÚNCIA EM RELAÇÃO AO PRIMEIRO. INSURGÊNCIA DA ACUSAÇÃO. ALMEJADO RECEBIMENTO DA PEÇA EXORDIAL NA SUA ÍNTEGRA, COM CONSEQUENTE PERSECUÇÃO PENAL EM FACE DA ACUSADA. ALEGAÇÃO DE QUE HAVERIA NOS AUTOS INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA E MATERIALIDADE ACERCA DO COMENTIMENTO DO CRIME CONTRA A VIDA IMPUTADO À RECORRIDA. TESE AFASTADA. IMPOSSIBILIDADE DE PRECISÃO ACERCA DA REAL INTENÇÃO DA AUTORA. NOTÍCIAS NOS AUTOS DE QUE O ABORTAMENTO OCORREU, EM VERDADE, POR CONSEQUÊNCIA DE UMA TENTATIVA DE SUICÍDIO. HISTÓRICO PESSOAL E FAMILIAR DA DENUNCIADA QUE AUTORIZAM DEPREENDER QUE HOUVE TENTATIVA DE CEIFAR A PRÓPRIA VIDA. MANUTENÇÃO DA DECISÃO QUE SE IMPÕE.

RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Em Sentido Estrito n. 0011370-52.2019.8.24.0038, da comarca de Joinville Tribunal do Júri em que é Recorrente Ministério Público do Estado de Santa Catarina e Recorrido Daniela Biz.

A Segunda Câmara Criminal decidiu, por unanimidade, conhecer do recurso e negar-lhe o provimento. Custas na forma da lei.

O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pela Excelentíssima Senhora Desembargadora Salete Silva Sommariva, com voto, e dele participou o Senhor Desembargador Sérgio Rizelo.

Funcionou como representante do Ministério Público, o Excelentíssimo Senhor Procurador de Justiça Pedro Sérgio Steil.

Florianópolis, 3 de novembro de 2020.

Hildemar Meneguzzi de Carvalho

Relatora


RELATÓRIO

Denúncia (fls. 1/2): o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia em face de Daniela Biz, dando-a como incursa nas sanções do art. 33, caput, c/c art. 40, I, ambos da Lei n.º 11.343/2006, em razão dos seguintes fatos:

I - DO CRIME DE ABORTO

No dia 26 de dezembro de 2018, a denunciada DANIELA BIZ, em horário e local em que a instrução processual poderá melhor determinar, com animus necandi, ao retornar da agropecuária próxima de sua residência, provocou aborto em si mesma ao ingerir substâncias tóxicas (veneno para ratos e baratas) dando causa à morte do feto que permeava a 5ª semana, fato que se concretizou na Maternidade Darcy Vargas, em Joinville/SC.

Por ocasião dos fatos, a denunciada, apreensiva com sua gravidez indesejada e temendo o fim do relacionamento com seu companheiro, decidiu interromper a gestação de seu segundo filho.

Para tanto, após ter adquirido um sache granulado na cor rosa para rato e um vidro K Othtrine, veneno para baratas, ao retornar da agropecuária, onde obteve os produtos anteditos, ingeriu as substâncias compradas. O companheiro da denunciada ao verificar que DANIELA BIZ estava passando mal a encaminhou até a unidade hospitalar.

Ato contínuo, no dia 27 de dezembro de 2018, após atendimento no Hospital Regional Hans Dieter Schimidt (HRHDS), foi encaminhada à Maternidade Darcy Vargas, após orientação sobre o seu eventual direito de interrupção da gestação diante do suposto crime de estupro. Ao chegar na maternidade, verificouse a existência de sangramento moderado da paciente, sendo encaminhada ao pré-parto, oportunidade em que se realizou o procedimento de curetagem, tendo, no dia seguinte, após orientação psicológica, evadido-se da maternidade, mesmo sem alta.

A gestação da denunciada foi confirmada através de ultrassom transvaginal, o qual destacou a presença de útero AVF, grávido, contendo saco gestacional tópico e regular, mas, diante das alegações da denunciada e do seu quadro clínico após a ingesta indevida de substância tóxica, fez-se necessária a conclusão da interrupção da gestação.

Em assim procedendo, a denunciada Daniela Biz infringiu o disposto no art. 124, caput, do Código Penal.

II - DO CRIME DE COMUNICAÇÃO FALSA DE CRIME OU CONTRAVENÇÃO

No dia 25 de dezembro de 2018, por volta das 13h03min, a denunciada DANIELA BIZ, plenamente ciente da falsidade de suas declarações, provocou a ação da Autoridade Policial Civil da cidade de Joinville/SC, comunicando a ocorrência do crime de estupro (vide Boletim de Ocorrência acostado nas páginas 04 e 05).

A falsa comunicação de crime deu ensejo a desnecessário e prejudicial trabalho da Policial Civil, cuja conclusão não foi outra senão a absoluta inexistência delitiva, quanto ao crime de estupro, ao passo que DANIELA BIZ ao tomar ciência de que estaria grávida, compareceu à Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso comunicar que teria sido vítima violência sexual, no dia 03 de dezembro de 2018, com fito de interromper a gravidez indesejada.

Decisão interlocutória (fls. 150/152): O Juiz de Direito Gustavo Henrique Aracheski rejeitou a denúncia quanto ao crime de aborto, nos seguintes termos:

[...] O prontuário médico juntado às fls. 45/99 revela que a denunciada Daniela foi encaminhada pelo Hospital Regional à Maternidade Darci Vargas após tentativa de suicídio, em razão de gravidez decorrente de suposto estupro (fl. 50).

Exames complementares confirmaram que o embrião estava com aproximadamente cinco semanas (fl. 95), ou seja, dentro do primeiro trimestre gestacional. Após procedimentos administrativos e médicos, a denunciada foi levada ao centro cirúrgico, onde realizou o aborto (fls. 62/66).

O Supremo Tribunal Federal decidiu, em sua 1.ª Turma, no julgamento do HC n.º 124.306/RJ, que o aborto provocado pela gestante ou por ela consentido, até o terceiro mês de gestação, não é passível de criminalização:

"DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. O habeas corpus não cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal - que tipificam o crime de aborto - para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulher es, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus." (promovi os destaques) Embora a decisão tenha sido proferida "em controle difuso de constitucionalidade" e não vincule os demais órgãos do Poder Judiciário, afigura-se adequado, notadamente porque não houve mudança de entendimento, ajustar-se ao atual posicionamento do Supremo Tribunal Federal, por medida de segurança jurídica.

Diante do exposto, rejeito a denúncia em relação ao crime contra a vida (CPP, art. 395, II).

Recurso em sentido estrito do Ministério Público (fls. 166/171): a defesa sustentou, em síntese, que a prática de aborto ou o consentimento da gestante para a realização do mesmo, aquém dos permissivos legais, "revela-se um embate entre a proteção à vida do nascituro e o direito de livre escolha da gestante" (fl. 168).

Incorreu acerca da complexidade do tema, concluindo que no que tange ao aspecto jurídico, é...

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