Acórdão Nº 0018396-50.2008.8.24.0018 do Quinta Câmara de Direito Público, 29-09-2020

Número do processo0018396-50.2008.8.24.0018
Data29 Setembro 2020
Tribunal de OrigemChapecó
ÓrgãoQuinta Câmara de Direito Público
Classe processualApelação Cível
Tipo de documentoAcórdão




Apelação Cível n. 0018396-50.2008.8.24.0018, de Chapecó

Relator: Desembargador Vilson Fontana

APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. PORTARIA N. 1.535/2002 DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. REINCORPORAÇÃO AO PATRIMÔNIO DA UNIÃO. TERRAS ORIGINALMENTE TITULADAS E CONCEDIDAS PELO ESTADO DE SANTA CATARINA. TESE DE EVICÇÃO. PLEITO DE REPARAÇÃO DOS DANOS MORAIS E MATÉRIAS DECORRENTES DA PERDA DA TERRA NUA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DO ESTADO.

PRELIMINAR. AGRAVO RETIDO. CONHECIMENTO.

PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. DEMARCAÇÃO QUESTIONADA PERANTE A JUSTIÇA FEDERAL. PRETENSÃO SURGIDA APENAS COM O ABANDONO FORÇADO DAS TERRAS. AÇÃO PROPOSTA DOIS ANOS DEPOIS. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL NÃO VERIFICADA.

LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO. CONSTATAÇÃO IN STATUS ASSERTIONIS. SUPOSTA CORRELAÇÃO ENTRE A CONDUTA ESTATAL NA EMISSÃO DOS TÍTULOS E A ANULAÇÃO DO DOMÍNIO. LEGITIMIDADE RECONHECIDA. PRECEDENTES.

MÉRITO.

TERRAS DA SEDE TRENTIN, EM CHAPECÓ, TITULADAS EM 1922. CONCESSÃO GRATUITA AOS COLONIZADORES EM 1932. ONEROSIDADE SEQUER ARGUIDA. INSUBSISTÊNCIA, POR ISSO, DA TESE DE EVICÇÃO. AUSÊNCIA DE "PREÇO PAGO" A SER RESTITUÍDO PELO ESTADO AOS PARTICULARES DA CADEIA DE DOMÍNIO.

AUSÊNCIA, OUTROSSIM, DE NEXO DE CAUSALIDADE ADEQUADO A PROPÓSITO DE ATO ILÍCITO. TERRAS TITULADAS E CONCEDIDAS AOS COLONOS EM TEMPOS REMOTOS, QUANDO SEQUER HAVIA PROTEÇÃO LEGAL OU CONSTITUCIONAL ÀS ÁREAS INDÍGENAS. REINCORPORAÇÃO DAS TERRAS AO PATRIMÔNIO DA UNIÃO DECORRENTE DE ORDEM CONSTITUCIONAL SUPERVENIENTE (ART. 20, IX). FALTA DE PROVA, ADEMAIS, QUANTO À NEGLIGÊNCIA DO ESTADO DIANTE DA SUPOSTA EVIDÊNCIA DO ALDEAMENTO NO CONTEXTO REMOTO DA COLONIZAÇÃO. PERDA DAS TERRAS, NESSE CENÁRIO, QUE NÃO PODE SER IMPUTADA AO ATO ENTÃO REGULAR DO ESTADO DE SANTA CATARINA. NEXO CAUSAL ANÊMICO QUANTO AO ESTADO.

DISTINÇÃO, ALÉM DISSO, EM RELAÇÃO AOS PRECEDENTES DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. RECONHECIMENTO DA ILEGALIDADE HISTÓRICA NO BOJO DA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO DAQUELE ESTADO.

REPARAÇÃO DEVIDA APENAS NOS TERMOS DO ART. 231, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTES.

APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO PROVIDOS. SENTENÇA REFORMADA. PEDIDOS IMPROCEDENTES.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 0018396-50.2008.8.24.0018, da comarca de Chapecó - 1ª Vara da Fazenda Acidentes do Trabalho e Registros Públicos, em que é apelante o Estado de Santa Catarina e apelados Ademir José Baggio e Nelci Ana Maraschini Baggio.

A Quinta Câmara de Direito Público decidiu, em votação unânime, conhecer e negar provimento ao agravo retido e conhecer e dar provimento ao recurso e ao reexame necessário, para julgar improcedentes os pedidos. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Exmos. Srs. Des. Hélio do Valle Pereira (presidente com voto) e Desª. Denise de Souza Luiz Francoski.

Florianópolis, 29 de setembro de 2020.

Desembargador Vilson Fontana

Relator


RELATÓRIO

Ademir José Baggio e Nelci Ana Maraschini Baggio moveram ação de indenização por danos morais e materiais contra o Estado de Santa Catarina. Narraram, em apertado resumo, que eram proprietários de terras que foram tituladas e cedidas nos anos de 1922 e 1932 pelo Estado de Santa Catarina, mas que em 2002 o Governo Federal reconheceu as terras como sendo de ocupação permanente dos indígenas, o que determinaria que fossem reincorporadas ao patrimônio da União, nos termos da Constituição Federal de 1988.

Disseram que, a partir daí, além das disputas legais, entraram em conflitos tensos com os indígenas, inclusive com episódios de violência, até que finalmente abriram mão de suas terras.

Argumentaram, então, que o Estado de Santa Catarina deve indenizar o valor da terra nua, porque as terras rurais não lhe pertenciam e tal defeito acarretou a nulidade da operação, resultando na evicção. Além disso, apontam também que houve omissão quanto ao reassentamento dos autores, tudo causando danos morais.

Os pedidos foram julgados parcialmente procedentes, sob os seguintes fundamentos: Qualquer operação sobre terras indígenas é nula nos termos do art. 231, § 6º da CRFB; a Portaria n. 1.535/2002 do Ministério da Justiça, que demarcou as terras dos autores à ocupação indígena, foi declarada válida em ação popular própria; o Estado de Santa Catarina é civilmente responsável pela perda da propriedade que originalmente loteou, titulou e alienou; o INCRA certificou que os autores não foram reassentados; o valor do imóvel ficou definido em laudo pericial não impugnado pelo Estado; os transtornos experimentados pelos autores em virtude dos conflitos e perda da propriedade geraram dano moral indenizável.

Nestes termos, o Estado foi condenado ao pagamento de R$ 458.396,82 a título de indenização pela terra nua e R$ 30.000,00 a cada autor pelo dano moral.

O Estado apela. Preliminarmente, ratifica o agravo retido interposto às fls. 180/183, no qual sustenta a sua ilegitimidade passiva, uma vez que as terras foram tituladas originalmente pelo Estado do Paraná, passando após à Santa Catarina em vista do Acordo de Limites. Suscitou também a prescrição.

No mérito, argumenta que as terras não foram loteadas e vendidas; que na realidade em 1893 houve legitimação de posse pelo Estado do Paraná, o que consistia no mero reconhecimento do caráter privado daquelas terras, com emissão dos títulos de propriedade aos agricultores, de forma que não houve onerosidade, afastando a tese em torno da evicção.

Disse que não foi demonstrado que aquelas terras eram, em 1893, tradicionalmente de ocupação indígena; que na época as terras devolutas pertenciam aos Estados, inclusive os territórios indígenas, de modo que foram alienadas terras próprias e portanto a operação não seria nula - inclusive porque inexistia, então, proteção legal ou constitucional das terras indígenas.

Asseverou que os precedentes do Rio Grande do Sul não se aplicam ao caso concreto, uma vez que lá o próprio Estado havia demarcado as terras de ocupação indígena, mas posteriormente alienou onerosamente as mesmas terras aos colonos, além do que a Constituição Sul-Rio-Grandense prevê expressamente a obrigação de reassentar os colonos irregulares, o que inexiste no Estado de Santa Catarina.

Continuou defendendo a legitimidade da alienação operada pelos Estados, de modo que caberia à União indenizar os agricultores pela reincorporação das terras ao seu patrimônio em vista da demarcação.

Disse que não há prova do abalo moral e questionou o valor das indenizações - tanto de dano moral quanto material. Questionou o termo inicial dos consectários de mora. Requereu a redução dos honorários.

Intimados, os autores não apresentaram contrarrazões (fl. 370).

Os autos sobem também pelo reexame necessário.

A Procuradoria-Geral de Justiça negou interesse no feito.

Este é o relatório.


VOTO

1. ADMISSIBILIDADE.

A sentença foi publicada já na vigência do Código de Processo Civil de 2015, assim, preenchidos os pressupostos de admissibilidade, o recurso e o reexame são com base nele conhecidos.

2. PRELIMINARMENTE: DO AGRAVO RETIDO.

2.1. DA PRESCRIÇÃO.

O Estado argumenta que o fato motivador da ação de indenização é a Portaria do Ministério da Justiça n. 1.535, de 18/11/2002, pela qual a área em que estava inserida a terra dos autores foi declarada de ocupação tradicional dos indígenas Kaingang - e que seria este o marco inicial da prescrição.

Não obstante, o referido ato administrativo foi prontamente questionado em ação popular perante a Justiça Federal (2003.72.02.000654-4) a qual veio a transitar em julgado apenas em 15/08/2012.

Assim, se a validade do ato que lhes retirava a propriedade das terras estava em discussão, não havia ate então pretensão indenizatória a ser exercida pelos autores.

Por outro lado, os autores informam que neste interregno, em vista da escalada de tensões, deixaram as terras em favor dos indígenas em 28/07/2006 - de modo que é este o marco inicial da pretensão indenizatória.

Logo, proposta a ação em 26/08/2008, não se operou a prescrição, uma vez que o prazo é o quinquenal previsto no Decreto n. 20.910/32.

Veja-se precedente deste Tribunal tratando do mesmo caso:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. PORTARIA N. 1.535/2002 DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA QUE DECLAROU COMO DE POSSE PERMANENTE DA COMUNIDADE INDÍGENA KAINGANG A ÁREA EM QUE RESIDIAM OS AGRICULTORES DEMANDANTES. PRETENSÃO REPARATÓRIA DEDUZIDA CONTRA O ESTADO DE SANTA CATARINA. PREJUDICIAL DE MÉRITO DE PRESCRIÇÃO. DEMANDA AJUIZADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. APLICABILIDADE DO DECRETO N. 20.910/1932. PRAZO PRESCRICIONAL DE 5 (CINCO) ANOS. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. TERMO INICIAL. DESAPOSSAMENTO DOS AGRICULTORES. DEMANDA AJUIZADA 2 (DOIS) ANOS APÓS A EFETIVA ENTREGA DA ÁREA AOS SILVÍCOLAS. PREJUDICIAL RECHAÇADA. (...) (Agravo de Instrumento n. 2011.098981-0, de Chapecó, rel. Des. Nelson Schaefer Martins, Segunda Câmara de Direito Público, 02-10-2012).

Assim, afasta-se a prejudicial.

2.2. DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO.

Os autores narraram que propuseram a demanda contra o Estado de Santa Catarina, em suma, porque "(...) foi este o responsável pelo ilegal loteamento e assentamento de agricultores com a concessão de escrituras de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas aos Autores, mormente porque é o primitivo proprietário e transmitente do domínio." (fl. 7).

Suscitaram que o Estado teria falhado em reassentar os agricultores evictos, assim causando também o abalo moral.

No mais, trouxeram ainda documentos que corroborariam que o Estado teria legitimado a colonização das terras indígenas (fls. 21/29).

Pelo que se vê, in status assertionis, não há razão para afastar a demanda contra o Estado sem análise do mérito, uma vez que - em tese - há correlação pertinente entre o pedido e a conduta estatal narrada.

É como tem decidido este Tribunal nos precedentes a respeito:

AGRAVO DE...

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