Acórdão Nº 0018501-02.2019 do Conselho da Magistratura, 12-08-2019

Número do processo0018501-02.2019
Data12 Agosto 2019
Tribunal de OrigemBalneário Piçarras
Classe processualProcesso Administrativo
Tipo de documentoAcórdão


ACÓRDÃO


Recurso Administrativo n. 0018501-02.2019.8.24.0710, de Balneário Piçarras


Relator: Des. Henry Petry Junior


RECURSO ADMINISTRATIVO. REGISTROS PÚBLICOS. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. NEGATIVA DE REGISTRO. - PROCEDÊNCIA NA ORIGEM.


RECURSO DA SUSCITADA. REGISTRO. ORGANIZAÇÕES RELIGIOSAS. ATOS CONSTITUTIVOS E NECESSÁRIOS AO FUNCIONAMENTO. REGRAS GERAIS DAS PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO. INCIDÊNCIA. NORMAS ESPECÍFICAS DAS ASSOCIAÇÕES. INAPLICABILIDADE.


- As organizações religiosas, sob os auspícios do Estado laico e da liberdade religiosa, têm liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento, não podendo o poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento (art. 44, § 1º, do Código Civil). Contudo, para efeitos jurídicos, devem reverência, inclusive nos seus registros, às regras gerais relativas às pessoas jurídicas de direito privado (arts. 45 a 52 do Código Civil), mas, não, às normas específicas das associações (arts. 53 a 61 do Código Civil), porquanto figuras autônomas no elenco das pessoas jurídicas de direito privado (art. 44, incs. I e IV, do Código Civil).


SENTENÇA ALTERADA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.


Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Administrativo n. 0018501-02.2019.8.24.0710 da comarca de Balneário Piçarras, em que é recorrente Congregação Cristã no Brasil e é recorrido Ofício de Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas, das Pessoas Jurídicas e de Títulos e Documentos da comarca de Balneário Piçarras:


O Conselho da Magistratura decidiu, por votação unânime, conhecer do recurso administrativo e dar-lhe parcial provimento.


O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Rodrigo Collaço e dele participaram os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Moacyr de Moraes Lima Filho, Roberto Lucas Pacheco, Carlos Adilson Silva, Altamiro de Oliveira, Júlio César Knoll, Denise de Souza Luiz Francoski, Artur Jenichen Filho, Luiz Neri Oliveira de Souza e Antônio Zoldan da Veiga. Funcionou como Representante do Ministério Público o Excelentíssimo Senhor Procurador de Justiça Mário Luiz de Melo.


Florianópolis, 12 de agosto de 2019.


Henry Petry Junior


RELATOR


RELATÓRIO


1 O processo administrativo


1.1 A suscitação de dúvida


Perante a 2ª Vara da comarca de Balneário Piçarras, o OFICIAL DO CARTÓRIO DE REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS E DE INTERDIÇÕES E TUTELAS, DAS PESSOAS JURÍDICAS E DE TÍTULOS E DOCUMENTOS DA COMARCA DE BALNEÁRIO PIÇARRAS apresentou, em 4.10.2018, "suscitação de dúvida" (autos n. 0002986-07.2018.8.24.0048) (fls. 1/8 do Documento n. 0168180)


Narrou, em síntese, que: [a] em 18.5.2018, a CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL¿ requereu a averbação da ata de assembleia geral ordinária realizada em 24.3.2018, evento no qual houve a eleição e a posse do conselho fiscal; [b] em 18.6.2018, emitiu nota devolutiva com exigências a serem sanadas; [c] em 28.6.2018, a CONGREGAÇÃO apresentou documentos; [d] em 19.7.2018, emitiu nova nota devolutiva com exigências a serem sanadas; [e] em 6.8.2018, a CONGREGAÇÃO apresentou novos documentos; [f] em 3.9.2018, emitiu nova nota devolutiva com exigências a serem sanadas, apontando os elementos que deveriam ser adequados aos requisitos legais no estatuto da entidade antes da realização de qualquer ato registral (arts. 54, 57 e 59 do Código Civil); [g] houve a apresentação, por CONGREGAÇÃO, de "reconsideração", com pedido subsidiário de "declaração de dúvida", datada de 14.9.2018 (fls. 20/27 do Documento n. 0168180); e, [h] em 2.10.2018, indeferiu a reconsideração.


Requereu, por fim, fosse dirimida a dúvida.


A inicial veio instruída com os documentos de fls. 9/19, 28/54, 57/58 e 93 do Documento n. 0168180, donde se inferem: [a] "emenda à inicial", datada de 8.10.2018 (fls. 55/56 do Documento n. 0168180); e [b] "impugnação", datada de 22.10.2018 (fls. 59/92 do Documento n. 0168180), de CONGREGAÇÃO.


Instado o Ministério Público à manifestação (fl. 94 do Documento n. 0168192), opinou o Promotor de Justiça LUIS FELIPE DE OLIVEIRA CZESNAT pela necessidade de adequação aos requisitos impostos pelo OFICIAL, uma vez que condizem com a legalidade e não acarretam afronta à Constituição (fls. 97/101 do Documento n. 0168192).


Após, sobreveio sentença (fls. 102/105 do Documento n. 0168192).


1.2 A sentença


No ato compositivo da lide (fls. 102/105 do Documento n. 0168192), proferido em 19.12.2018, a Magistrada REGINA APARECIDA SOARES FERREIRA julgou procedentes os pedidos no sentido de se dirimir a dúvida a fim de condicionar a averbação da ata da eleição e posse dos membros do Conselho Fiscal da CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL ao cumprimento integral do art. 54 do Código Civil.


Custas pelo interessado e sem honorários advocatícios.


1.3 O recurso administrativo


Irresignada, a suscitada interpõe recurso administrativo (fls. 114/139 do Documento n. 0168192).


Sustenta, em síntese, que: [a] as organizações religiosas não são associações civis e não podem ser a elas equiparadas, sobretudo diante de seus dogmas, sendo o vínculo do fiel com a religião, e não com a igreja; [b] o princípio da continuidade registral obsta a exigência de alteração do ato constitutivo da entidade, pois a normativa de regência, no ponto, não foi alterada pelo Código Civil de 2002 em relação ao Código Civil de 1916; [c] as exigências feitas às organizações religiosas com base nas normas de regência das associações afrontam a liberdade religiosa e o Estado laico, bem como as normas alteradas pela Lei n. 10.825/2003; [d] as organizações religiosas são livres no que toca à criação, à organização, à estrutura interna e ao funcionamento, estando sujeitas apenas às normas fundantes e estruturantes de cada culto, e não àquelas genéricas destinadas às demais pessoas jurídicas; e [e] as exigências feitas dissonam da realidade do seu ato constitutivo, que, em verdade, atende aos pontos destacados nas notas devolutivas.


Requer, por fim, seja dado provimento ao recurso administrativo a fim de reformar a sentença para que dirimida a dúvida no sentido de que seja averbada a ata da eleição e posse dos membros do conselho fiscal da CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL, nos termos em que apresentada.


O recurso administrativo veio instruído com os documentos de fls. 140/152 do Documento n. 0168192.


Sem contrarrazões (fl. 155 do Documento n. 0168192).


Com a ascensão dos autos a esta Corte de Justiça, foram distribuídos à Quarta Câmara de Direito Civil, sob a relatoria do Des. HELIO DAVID VIEIRA FIGUEIRA DOS SANTOS (fls. 157/158 do Documento n. 0168192).


A Procuradoria-Geral de Justiça, por parecer da lavra do Procurador de Justiça ALEXANDRE HERCULANO ABREU, opinou pelo conhecimento e parcial provimento do recurso administrativo, afastando-se a imposição dos arts. 53 a 61 do Código Civil, contudo, declarando-se a submissão das organizações religiosas aos arts. 46 a 52 do Código Civil (fls. 163/169 do Documento n. 0168192).


O Relator, por decisão monocrática de 24.6.2019, decidiu não conhecer do recurso administrativo e determinou a redistribuição dos autos ao Conselho da Magistratura (fls. 171/173 do Documento n. 0168192).


Após, vieram-me os autos conclusos em 12.7.2019 (Documento n. 0168234).


É o relatório possível e necessário.


VOTO


2 A fundamentação


2.1 O juízo de admissibilidade


Satisfeitos os pressupostos de admissibilidade, conhece-se do recurso administrativo.


2.2 O juízo de mérito


2.2.a O registro dos atos das organizações religiosas


2.2.a.1 A introdução necessária


As organizações religiosas têm características que as tornam especiais no elenco das personalidades jurídicas existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque a Constituição traz, enquanto direito fundamental, a liberdade religiosa, clausulando, petreamente (art. 60, § 4º, inc. IV, da Constituição da República Federativa do Brasil), ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando-se o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo-se, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (art. 5º, incs. VI, VII e VIII, da Constituição da República Federativa do Brasil), sendo assegurado, também, o direito à livre associação (art. 5º, incs. XVII, XVIII, XIX e XX, da Constituição da República Federativa do Brasil).


Com efeito, durante a Colônia e o Império, o Estado e a religião caminhavam juntos no Brasil, isto é, tinha-se um Estado confessional, sendo que a religião católica apostólica romana era a oficial, e, portanto, a única confissão religiosa reconhecida pelo Estado era a da Igreja Católica, com todas as outras permitidas, mas, apenas, em culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem qualquer exteriorização ao templo (art. 5º da Constituição Política do Império do Brasil de 1824).


Por ocasião da proclamação da República, desligou-se o Estado da religião, com relação a qual se tornou imparcial, passando-se a ter, no Brasil, além de um Estado laico ou secular, também plena liberdade religiosa (Decreto n. 119-A/1890 e art. 11, item 2º, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891), o que foi ratificado pela atual Constituição (arts. 5º, incs. VI, VII e VIII, e 19, inc. I, da Constituição da República Federativa do Brasil). Além disso, à época, as igrejas e as confissões religiosas foram juridicamente personalizadas, para a aquisição e a administração de bens, tendo sido dispensadas, porém, de registro público (art. 5º do Decreto n. 119-A/1890).


Nesse diapasão, importante mencionar que o Decreto n. 119-A/1890 foi revogado pelo Decreto n. 11/1991, mas expressamente revigorado pelo Decreto n. 4.496/2002, sem posterior revogação, mas isso, contudo, não tem o condão de afastar a incidência das regras do Código Civil de 1916 e, depois, do superveniente Código Civil de 2002, bem...

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