Acórdão Nº 0024689-54.2013.8.24.0020 do Quinta Câmara de Direito Público, 26-11-2020

Número do processo0024689-54.2013.8.24.0020
Data26 Novembro 2020
Tribunal de OrigemCriciúma
ÓrgãoQuinta Câmara de Direito Público
Classe processualApelação Cível
Tipo de documentoAcórdão


Apelação Cível n. 0024689-54.2013.8.24.0020, de Criciúma

Redator designado: Desembargador Hélio do Valle Pereira

USUCAPIÃO - DEMONSTRAÇÃO BASTANTE DE POSSE COM ANIMUS DOMINI - COMPRA E VENDA VERBAL DE FRAÇÃO DELIMITADA DE TERRENO MAIOR - NULIDADE ABSOLUTA - CASO CARACTERÍSTICO DE SUPERAÇÃO PELA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA - HIPOTECA SOBRE O IMÓVEL COMO UM TODO - INDICATIVOS DE CONHECIMENTO DE USUCAPIENTE NA OUTORGA DA GARANTIA - VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM - RECONHECIMENTO DA AQUISIÇÃO DO DOMÍNIO, SEM PREJUÍZO À HIPOTECA - RECURSO PROVIDO EM PARTE.

1. A posse é conceito de fato. Vale pelo reconhecimento social de que alguém tem a disponibilidade (ou a potencialidade de dispor) de um bem corpóreo. Abstrai-se avaliação quanto à propriedade mesmo porque "Não há, no mundo fático, proprietários e não proprietários" (Pontes de Miranda).

A intenção é que se mantenha essa situação a menos que haja superação pelos mecanismos legais. Deseja-se proibir o uso das próprias forças; quer-se a manutenção da estabilidade das relações jurídicas, a proteção da aparência.

Quieta non movere!

A posse ofendida é que corresponde a fato jurídico. Ela sozinha "não gera efeito jurídico algum" (Adroaldo Furtado Fabrício).

2. São identicamente possuidores o inquilino, o esbulhador ou o proprietário. Uma das diferenças é que o proprietário poderá se servir de meios possessórios (uma ação de reintegração) e petitórios (uma ação reivindicatória), enquanto o inquilino e o esbulhador não terão em seu favor o segundo mecanismo. (Em tese, se for vítima de exercício arbitrário das próprias razões, o esbulhador pode até invocar ação de reintegração de posse.)

3. O animus domini é um qualificativo eventual da posse. É um comportamento que revela uma atuação equivalente à esperada de um dono. Age-se com o desiderato de excluir outro poder simultâneo sobre a coisa. Por isso, um locatário, enquanto se comportar nos limites próprios do negócio jurídico, tem posse (direta), mas não conta com animus domini e não pode usucapir.

4. Quem adquire imóvel tem animus domini. Atua em oposição a outro poder e com a postura de quem anseia a coisa como sua perenemente.

Por essa razão que uma das hipóteses clássicas de usucapião é reservada àquele que detém título de compra e venda nulo. A usucapião tem como missão justamente superar máculas pela passagem do tempo. Se o título não for justo ou houver má-fé, caberá pelo menos a usucapião extraordinária.

5. O contrato de compra e venda de imóvel de valor superior a 30 salários mínimos é absolutamente nulo (art. 108 do Código Civil). Não há como meramente invocar este suposto título aquisitivo para obter o registro. Ele não se prestará a uma adjudicação compulsória, ou outra ação congênere.

A solução estará na ação de usucapião; e comprador tem posse ad usucapionem. Uma conjecturável exceção haveria se ainda pendesse pagamento, quando subsistiria uma posse indireta (mas não é o caso dos autos: revelou-se um vínculo de exclusividade com o objeto).

6. A usucapião é forma originária de aquisição, rompendo os outros direitos que se vinculavam à coisa.

A hipótese dos autos, porém, tem uma particularidade. A gleba maior fora ofertada em hipoteca (em prol de empresas familiares), inclusive com a intervenção de sociedade que hoje é até administrada por uma das usucapientes. Negar a garantia ao credor valeria pelo venire contra factum proprium, propiciando que a garantia real fosse diminuída por vias transversas.

7. A usucapião, de todo modo, não é fato gerador do imposto de transmissão. É uma decorrência constitucional, tanto mais que o direito tributário fica submetido aos conceitos de direito civil (art. 110 do CTN). Não há como, no anseio de proteger interesses fazendários, retirar o direito à prescrição aquisitiva.

8. Recurso provido em parte: confirma-se a usucapião, mas se determina que se mantenha a hipoteca sobre a área desmembrada.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 0024689-54.2013.8.24.0020, da comarca de Criciúma - 1ª Vara da Fazenda em que é Apelante Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul BRDE e Apelada Quiteria Comin Moretti.

A Quinta Câmara de Direito Público decidiu, na forma do art. 942, do CPC/2015, unanimidade, conhecer do recurso e do reexame necessário e, por maioria de votos, dar provimento parcial ao recurso e ao reexame, vencido o relator, que votou no sentido de prover o recurso e o reexame necessário para julgar improcedentes os pedidos. Custas legais.

Participaram do julgamento, realizado nesta data, os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Denise de Souza Luiz Francoski, Artur Jenichen Filho, Vilson Fontana (relator vencido que irá declarar voto) e Paulo Ricardo Bruschi.

Florianópolis, 26 de novembro de 2020.

Desembargador Hélio do Valle Pereira

Presidente e redator designado


RELATÓRIO

Adoto o relatório da sentença:

Quitéria Comin Moretti e Silvestro Moretti Filho, ajuizaram a presente ação de "usucapião extraordinária", na qual alegaram possuírem a posse mansa e pacífica por quase 15 (quinze) anos de uma área de 704,00m² dentro de uma área maior de 145.750,00 m² que está matriculada sob o n. 6.774 situado na Rua Projetada, s/ n., Bairro Ex-Patrimônio, Siderópolis/SC. A parte autora aduziu ainda que o registro de direito real de hipoteca na matrícula não tem o condão de impedir o curso da prescrição aquisitiva.

À vista de tais alegações, dentre outros provimentos, requereram: a citação dos confrontantes, das Fazendas Públicas e dos exequentes do processos em que o imóvel encontra-se penhorado; a intimação do Ministério Público e ao final seja reconhecido e declarado o domínio do imóvel mencionado aos autores (fls. 2-7).

Recebida a emenda à inicial com a inclusão da citação dos proprietários do imóvel no polo passivo de Natalino Comin e Maria Uggioni Comin e da confrontante Ieda Maria Alumaier Gonçalves e determinada a citação dos confrontantes e interessados (fl. 30).

Citados (fl. 53-v e 56), o Município de Siderópolis e a União manifestaram não possuir interesse na demanda (fls. 62 e 76).

Igualmente citados (fl. 52-v, 55-v e 66-v), Natalino Comin e Maria Uggioni Comin, a Fazenda Estadual e os confrontantes José Carlos Gonçalves e Ieda Maria Alumaier Gonçalves não se manifestaram (fl. 167).

Foi oficiado à 4ª Vara Cível desta Comarca (autos n. 020.07.004802-9) e ao Juízo da Vara Federal Criminal de Execuções Fiscais e JEF Criminal de Criciúma (autos n. 2006.72.04.002684-7) - fls. 44-45 - comunicando a existência da presente ação.

Também citado, o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul - BRDE apresentou contestação às fls. 79-93, na qual sustentou que os requerentes não detêm a posse com animus domini; a hipoteca gravada no imóvel de matrícula n. 6.774 foi instituída pelos pais da requerente; ainda, a requerente é sócia da empresa devedora na ação de execução n. 020.03.007010-4 em que a contestante é a exequente; não há prova do tempo da posse e o registro do ato constritivo no ofício imobiliário interrompe o prazo prescricional. Por fim, a hipoteca é anterior ao termo inicial do exercício da posse. Pleitearam, dentre outros provimentos, que o pedido inicial seja julgado improcedente. Sucessivamente, requereu a manutenção da hipoteca sobre o imóvel de matrícula n. 6.774 do 2º CRI de Criciúma.

Eventuais interessados foram citados por edital (fls. 47-49), não apresentaram resposta.

Houve réplica (fls. 153-160).

O réu BRDE foi intimado dos documentos de fls. 161-165, sendo que requereu o julgamento antecipado (fls. 172-173).

Foi decretada a revelia dos réus Natalino Comin e Maria Uggioni Comin, bem como indeferida a expedição de ofício à 4ª Vara Cível desta Comarca e designada audiência de instrução e julgamento (fl. 174).

Durante a instrução do processo foram ouvidas duas testemunhas arroladas pela parte autora, sendo desistida da terceira, tudo pelo sistema audiovisual (fls. 176-177 e mídia audiovisual).

Em alegações finais por memoriais a parte autora reiterou seus argumentos e pretensões (fls. 178-181).

O réu BRDE, apesar de intimado, não ofertou alegações finais (fl. 182).

O Ministério Público emitiu parecer às fls. 183-185 pugnando pela procedência do pedido inicial.

Adito que o pedido foi julgado procedente.

O recurso é do BRDE. Afirma que não restou demonstrada a existência da posse com animus domini, pois a área em questão está inseria em terreno dos pais da autora, de sorte que o que existiria seria uma mera permissão de uso sobre a porção do imóvel. Não é crível, nessa linha, que uma filha "alimente esse tipo de pretensão em face de seus ascendentes". Adverte, sob outro ângulo, que a acionante é sócia-administradora de empresa que figura em ação judicial como executada da aqui apelante, tudo decorrente de hipoteca instituída pelos pais da postulante quanto ao referido bem. Registra, ainda, que sobre o imóvel recaem diversas penhoras, eventos que fizeram interromper o exercício da posse mansa e pacífica em relação à coisa. Por fim defende que a garantia real por si só impede a usucapião, devendo, quando menos (eis um pleito subsidiário), ser mantida em caso de confirmação da aquisição originária.

Em contrarrazões os apelados sustentaram que a sentença deve ser mantida, pois existente prova do direito perseguido em questão.

A Procuradoria-Geral de Justiça negou interesse na causa.

O Desembargador Vilson Fontana, relator, opinou pelo provimento do recurso, extinguindo-se o processo sem resolução do mérito pela falta de interesse de agir, cabendo aos autores, nas vias ordinárias, pleitear a regulariação da situação registral.

VOTO

1. Inverto a sequência natural para, antecipando o final, dizer que reconheço o direito à usucapião, encampando as razões da sentença. Mas faço um aditamento, então dando pelo parcial provimento da apelação: entendo que se deve estender a hipoteca também à gleba usucapida.

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