Acórdão Nº 0069298-79.2019 do Conselho da Magistratura, 11-12-2019

Número do processo0069298-79.2019
Data11 Dezembro 2019
Tribunal de OrigemNavegantes
Classe processualRecurso Administrativo
Tipo de documentoAcórdão


ACÓRDÃO


Recurso Administrativo n. 0069298-79.2019.8.24.0710 (2019.900011-0), de Navegantes


Relator: Des. Roberto Lucas Pacheco


RECURSOS ADMINISTRATIVOS. SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE NAVEGANTES. ESCRITURA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL URBANO APRESENTADO PARA REGISTRO. QUALIFICAÇÃO REGISTRAL NEGATIVA. NOTA DEVOLUTIVA. INSURGÊNCIA DOS SUSCITADOS.


DOAÇÃO DE BEM PÚBLICO AFETADO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PRÉVIA DESAFETAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIA NÃO VERIFICADA NO CASO CONCRETO. ALIENAÇÃO NULA. DESAFETAÇÃO FÁTICA NÃO ADMITIDA NO DIREITO BRASILEIRO.


Verificado nos autos que o bem (terreno) público doado não foi previamente desafetado, a alienação constitui negócio jurídico absolutamente nulo, de acordo com o disposto no art. 100 do Código Civil.


Ainda, não há falar em desafetação fática do bem público, pois "o comportamento, omissivo ou comissivo, da coletividade ou dos agentes públicos, a despeito de sua extensão temporal e de boa-fé, não se revela capaz de alterar a vinculação formal de um bem público a uma ou mais destinações primárias. A afetação fática, conquanto possa ser reconhecida no plano dos conceitos, não se afigura válida no direito brasileiro, pois, caso fosse, representaria o reconhecimento de que o costume constitui fonte de normas jurídico-administrativas, o que contraria os princípios constitucionais da legalidade e da moralidade [19 - Sobre o papel do costume no direito administrativo, cf., entre outros, GORDILLO, Agustin. Tratado de derecho administrativo, t. 1. pp. VII-43-45; ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo, p. 64; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, pp. 70-71 e MARRARA, Thiago. As fontes do direito administrativo e o princípio da legalidade. Revista digital de direito administrativo, nº 1, p. 40] (MARRARA, Thiago. Uso de bem público. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017 Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/31/edicao-1/uso-de-bem-publico).


PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE REGISTRAL NÃO OBSERVADO. CONTRATO DE PERMUTA ANTERIOR NÃO LEVADO A REGISTRO. OFENSA AO ART. 195 DA LEI N. 6.015/73.


"Os registros devem ser perfeitamente encadeados, de forma que não haja vazios ou interrupções na corrente registrária. Em relação a cada imóvel, deve existir uma cadeia de titularidade à vista do qual só se fará o registro ou averbação de um direito se o outorgante dele figurar no registro como seu titular" (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos. Teoria e prática. 9.ª ed. rev., atual e ampl. Salvador: Juspodivm, 2018. pág. 594).


CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA. HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO DEMONSTRADA. PEDIDOS INDEFERIDOS.


A inexistência de qualquer prova da alegada hipossuficiência impede a concessão dos benefícios da Justiça Gratuita.


RECURSOS ADMINISTRATIVOS NÃO PROVIDOS.


Vistos, relatados e discutidos estes autos de Recurso Administrativo n. 0069298-79.2019.8.24.0710 (2019.900011-0), da comarca de Navegantes, em que são recorrentes Associação dos Servidores Públicos Municipais de Navegantes (ASPMN) e Emir Peron e recorrida Oficial de Registro de Imóveis de Navegantes:


O Conselho da Magistratura decidiu, por votação unânime, negar provimento aos recursos.


O julgamento, realizado no dia 9 de dezembro de 2019, foi presidido pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador Rodrigo Collaço e dele participaram os Excelentíssimos Senhores Desembargadores Carlos Adilson Silva, Altamiro de Oliveira, Júlio César Knoll, Gerson Cherem II, Denise de Souza Luiz Francoski, Artur Jenichen Filho, Luiz Neri Oliveira de Souza, Antônio Zoldan da Veiga e Henry Petry Júnior.


Funcionou como representante do Ministério Público o Excelentíssimo Senhor Procurador de Justiça Mário Luiz de Melo.


RELATÓRIO


Na comarca de Navegantes, a Oficial do Registro de Imóveis ingressou com suscitação de dúvida (autuada sob o n. 00033883120128240135), na forma do art. 198 e seguintes da Lei n. 6.015/73, em virtude da discordância por parte da Associação dos Servidores Públicos Municipais de Navegantes (ASPMN) em relação às exigências efetuadas para o registro da escritura pública de compra e venda do imóvel urbano matriculado sob o n. 3.599, notadamente a necessidade de desafetação do imóvel pelo município, de cumprimento dos requisitos do art. 17 da Lei n. 8.666/93 e de observância do princípio da continuidade registral (págs. 2 a 6).


A ASPMN e Emir Peron impugnaram as exigências da delegatária aduzindo, em síntese: a) a maioria das questões apresentadas na suscitação de dúvida estavam preclusas; b) a doação em favor da ASPMN teria se tornado ato jurídico perfeito e acabado, porquanto o município nunca teria destinado o imóvel para equipamentos comunitários, ocorrendo uma desafetação tácita; e c) o contrato de permuta foi apresentado a Oficial, pois foi inclusive juntado pela mesma às fls. 20 à 23 (págs. 24 a 26 e 59 a 66). Ainda, Emir Peron juntou documentos (págs. 69 a 75).


Intimado a se manifestar sobre a questão, o Município de Navegantes deixou transcorrer o prazo in albis (pág. 57 a 59).


O magistrado a quo, depois de o órgão ministerial se manifestar pela procedência da suscitação (págs. 77 a 79), julgou legítimas as exigências feitas pela Oficial, reconhecendo a necessidade de desafetação do imóvel, bem como que o título sequer poderia ser registrado, pois o imóvel foi primeiro objeto de contrato de permuta entre a ASPMN e a empresa Ana Pisos Comércio de Materiais de Construção Ltda. - EPP (págs. 80 a 82).


Na sequência, a ASPMN formulou requerimento de concessão dos benefícios da Justiça Gratuita (págs. 86 e 87) e, ainda, opôs embargos de declaração para que fosse esclarecido quem deveria pagar as custas processuais (pág. 90).


O togado singular negou o benefício da Justiça Gratuita por não estar cabalmente demonstrada a impossibilidade de a embargante arcar com os custos do processo e dos embargos de declaração, fundamentou que quem deu causa à ação (no caso, a própria embargante) deve arcar com as despesas do processo (págs. 92 e 93).


Não resignados, a ASPMN e Emir Peron interpuseram apelações.


A primeira alegou ter havido desafetação tácita do imóvel, visto que em vinte anos o município nunca utilizou o terreno para a finalidade de reserva a equipamentos comunitários ou qualquer outra destinação pública, tampouco houve impugnação quanto à destinação diversa efetuada pela ASPMN e por particular, não havendo falar, ainda, em prejuízo ao município. Diante disso, argumentou que as matérias aventadas pela Oficial de Registro estão preclusas. Ainda, aludiu que "com relação aos contratos firmados, a própria Oficial de Registro procedeu à juntada dos mesmos, logo, é certo que não poderia ser objeto de recusa do registro" (pág. 101). Assim, postulou a reforma do decisum, a fim de que sejam concedidos os benefícios da Justiça Gratuita e registrada a escritura pública de compra e venda (págs. 96 a 102).


Já o segundo repetiu os mesmos fundamentos e pedidos acima expostos, acrescentando que o imóvel atingiu sua finalidade social, visto que, de boa-fé, construiu sua residência sobre o terreno em questão (págs. 108 a 115).


Os recursos foram recebidos no duplo efeito (pág. 120).


A ASPMN apresentou contrarrazões dizendo que concordava com os fundamentos do recurso de Emir, bem como informou ter recebido do procurador da Câmara de Vereadores de Navegantes o Projeto de Lei municipal n. 046/1993 e a Lei n. 1028/1993 que autorizou o chefe do Poder Executivo a doar área de terra na qual está incluído o imóvel objeto do suscitação de dúvida (págs. 124 a 126). Juntou documentos (págs. 127 a 134).


Os autos ascenderam a esta Corte de Justiça, tendo o Des. Raulino Jacó Brüning, monocraticamente, determinado a redistribuição dos autos a este Conselho da Magistratura (págs. 138 a 140, na apelação cível n. 0003388-31.2012.8.24.0135).


Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. João Fernando Quagliareili Borrelli, que opinou pela conversão do feito em diligência, a fim de que a Oficial fosse intimada para, querendo, apresentar contrarrazões (pág. 145 a 148).


É o relatório.


VOTO


1 Inicialmente, quanto à manifestação da Procuradoria-Geral de Justiça, tem-se que não se faz necessária a intimação da Oficial para apresentação de contrarrazões, uma vez que "a dúvida é um procedimento de natureza administrativa, em que o registrador não é considerado parte. Assim, ele não tem interesse em recorrer. Apenas lhe resta cumprir o decidido [...]" (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos. Teoria e prática. 9.ª ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2018. pág. 678).


Ultrapassada essa questão, cabe analisar o mérito da demanda.


2 Depreende-se dos autos que a recorrente ASPMN apresentou para registro a escritura pública de compra e venda em que figura como outorgante e como outorgados o também recorrente Emir Peron e sua esposa, tendo como objeto do negócio jurídico o imóvel matriculado sob o n. 3.599 (págs. 10 a 13).


Feita a qualificação registral do título, esta foi negativa, tendo a Oficial do Registro de Imóveis de Navegantes expedido nota devolutiva elencando as razões da recusa do acesso do título ao cadastro imobiliário, nos seguintes termos (págs. 14 e 15 - ipsis litteris):


Trata-se de escritura pública de compra e venda em que são partes Associação dos Servidores Públicos Municipais de Navegantes e Emir Peron, lavrada no Tabelionato de Notas desta Comarca, no Livro 161, às fls. 096/099, em data de 06.02.2012, tendo como objeto o imóvel matriculado sob n°. 3.599, desta serventia.


Ocorre que na abertura da...

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