Acórdão Nº 0309111-79.2017.8.24.0038 do Quinta Câmara de Direito Público, 07-06-2022

Número do processo0309111-79.2017.8.24.0038
Data07 Junho 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoQuinta Câmara de Direito Público
Classe processualApelação
Tipo de documentoAcórdão
Apelação Nº 0309111-79.2017.8.24.0038/SC

RELATOR: Desembargador HÉLIO DO VALLE PEREIRA

APELANTE: ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELADO: MARIA DUARTE DA SILVA JAEPELI (RÉU)

RELATÓRIO

O Estado de Santa Catarina apresentou ação de reintegração de posse em face de Maria Duarte da Silva Jaepeli.

Relatou que a ré ocupa uma casa de madeira em parte de terreno de propriedade estadual, onde funciona a Escola de Educação Básica Presidente Médici. Afirmou que o imóvel foi ocupado irregularmente e apresenta inconsistências na estrutura que geram insegurança para seus moradores, bem como para educandos e profissionais da escola. Defendeu que "a ocupação irregular de imóvel em área pública por particular não induz posse, sendo sempre precária e, portanto, pode ser desfeita a qualquer tempo", com isso requerendo a desocupação imediata da casa pela parte demandada. Pleiteou a reintegração de posse do imóvel, tido como esbulhado, e demolição da edificação.

O Juiz de Direito Roberto Lepper julgou improcedente o pedido: entendeu que deveria prevalecer o direito à habitação da requerida por estar em exercício da posse do imóvel. Ressaltou que a casa de madeira ainda não havia sofrido grave deterioração e, caso se constatasse precariedade, caberia à possuidora adequar o imóvel às regras de construção urbana.

O autor apela alegando que a casa está em situação precária, conforme vistoria técnica da Defesa Civil, mesmo após a apelada ter se comprometido a providenciar reparos. Faz ressalva no sentido de que o imóvel é bem público, não sendo possível a incidência de posse quando houver mera ocupação. É necessária a prévia autorização legislativa (art. 12, § 1°, da Constituição do Estado). Expõe que o contexto vale por esbulho e é passível de reintegração de posse, como previsto nos arts. 1.210 do Código Civil e 560 do Código de Processo Civil.

Não houve contrarrazões.

A Procuradoria-Geral de Justiça se posicionou pelo provimento, sem prejuízo de, ex officio, ser reconhecido o dever de as Administrações Estadual e Municipal providenciarem nova moradia à apelada.

VOTO

1. O, sem nenhum favor, brilhante Juiz de Direito Roberto Lepper resumiu os fatos e a solução jurídica que atendia ao seu espírito nestes termos:

É incontroverso que, com o intuito de propiciar a preservação e o asseio das dependências da Escola de Educação Básica Presidente Médici, o marido da ré foi contratado como "caseiro" da referida unidade educacional (Evento 1-3, pág. 2) e, em contrapartida, foi-lhe conferido o direito de ocupar, com a família, a residência de madeira que ainda encontra-se de pé.

Não se sabe a data exata em que Maria Duarte e seu (falecido) marido passaram a ocupar o imóvel. O não se desconhece é que essa situação remonta à década de 1980 e que, desde então, os Jaepeli passaram a ocupar a espartana residência de madeira fincada no mesmo terreno onde se vê o prédio da Escola de Educação Básica Presidente Médici, integrante do Sistema Estadual de Ensino Público. Nestas mais de três décadas, o casal partilhou o dia a dia com estudantes e educadores. Foi morando lá que Maria e o marido tiveram seus dois filhos (Evento 19), que, com o passar do tempo, consorciaram-se aos pais na execução dos serviços de limpeza e de conservação do espaço como um todo.

Após décadas fazendo a mesma coisa, Maria foi compelida a deixar a casa onde ainda mora com os filhos por ser a moradia antiga e encontrar-se infestada por cupins (evento 1-3, pág. 10). A despeito disso, deve ser reconhecido, em prol da autora, o direito de habitação do imóvel, mesmo após o perecimento do marido - a quem alhures foi concedida a posse agora questionada -, em contrapartida ao trabalho que ele prestou ao Poder Público na conservação do educandário. Isto porque não há como deixar de reconhecer que a ocupação do imóvel integrava o todo da remuneração do trabalhador porque, "além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações in natura que a empresa, por força do contrato ou costume, fornecer habitualmente ao empregado. Somente se afasta a feição salarial quando comprovado que a utilidade fornecida era indispensável para a realização do trabalho (Súmula nº 367, I, do TST), o que não ocorreu no caso dos autos¨ (sublinhei) (TRT-3 - RO nº 0010636-03.2015.5.03.0095, 5ª Turma, rel. Des. do Trabalho João Bosco de Barcelos Coura, publ. em 15.02.2016).

Com o falecimento do trabalhador, o direito de moradia que a ele assistia passou a integrar o patrimônio jurídico da cônjuge supérstite na medida em que "ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar" (CC, art. 1.831).

Com efeito, "o objetivo da lei é permitir que o cônjuge sobrevivente permaneça no mesmo imóvel familiar que residia ao tempo da abertura da sucessão como forma não apenas de concretizar o direito constitucional à moradia, mas também por razões de ordem humanitária e social, já que não se pode negar a existência de vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não somente residência, mas um lar" (STJ - REsp nº 1.582.178/RJ, Terceira Turma, unânime, rel. Min. Ricardo Villas Boas Cuêva, j. em 11.09.2018).

Objetivamente, o direito de habitação que outrora assegurou-se ao marido acabou herdado, em razão do seu passamento, pela esposa Maria, que o terá enquanto viva for de modo que não há razão jurídica para alijá-la do exercício da posse do imóvel que ainda ocupa, o que não significa alforriá-la da obrigação de cumprir as regras comuns de ocupação urbana, dentre as quais a de tomar medidas tendentes a evitar o risco de ruína da edificação ocupada.

2. O Estado não renega os fatos em si, ou seja, os aspectos antecedentes à ocupação, especialmente a origem relacionada ao marido da ré, bem como o prolongamento da moradia e a situação socialmente muito (muito!) sensível à qual exposta a acionada.

Seja como for, vejo com muita dificuldade impedir a retomada em si do bem, que é incontroversamente do Poder Público, não se podendo ver na ocupação, mesmo extensa temporalmente, o surgimento de um direito real de habitação, ou a preservação de alguma prerrogativa relacionada ao trabalho.

Aliás, o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento muito drástico, negando até mesmo que exista a posse sobre bens públicos.

Eis então a necessidade de trazer um aspecto adicional ao caso, como muito bem trazida pelo Procurador de Justiça Basílio Elias de Caro, que ainda ofereceu solução intermediária:

Com efeito, a despeito da peculiar situação vivida pela apelada e do entendimento do Magistrado, não há como se reconhecer o direito real de habitação à recorrida em detrimento da ocupação irregular por ela exercida em imóvel público.

Na espécie, é incontroversa a propriedade do terreno pelo Estado onde está edificada a casa ocupada pela apelada e a Escola Estadual de Educação Básica Presidente Médici, tratando-se, portanto, de bem público, insuscetível de gerar efeitos possessórios à ocupante, de modo que inquestionável a posse indevida exercida pela recorrida.

Isso porque, diante do princípio da indisponibilidade do bem público, torna-se incogitável qualquer tese para sustentar a posse pela apelada que possa inviabilizar a gestão da coisa pública, além do que a ocupação irregular não configura posse, mas mera detenção, tendo em vista que a lei impede os efeitos possessórios em favor do ocupante ilícito, nos termos dos arts. 1.198 e 1.200 do Código Civil:

"Art. 1.198. Considera-se detentor aquele que, achando-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas. "

"Art. 1.200. É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária. "

Nesse sentido, como preconiza o Superior Tribunal de Justiça, "a ocupação irregular de terra pública não pode ser reconhecida como posse, mas como mera detenção, caso em que se afigura inadmissível o pleito da proteção possessória contra o órgão público" (STJ. AgRg no REsp 1.200.736/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, 2ª Turma, j. 24/5/2011).

Assim, "admitir que o particular retenha imóvel público seria reconhecer, por via transversa, a posse privada do bem coletivo, o que não se harmoniza com os princípios da indisponibilidade do patrimônio público e da supremacia do interesse público" (REsp 1.183.266/PR, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki...

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