Acórdão Nº 0313944-88.2017.8.24.0023 do Quinta Câmara de Direito Público, 08-11-2022

Número do processo0313944-88.2017.8.24.0023
Data08 Novembro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoQuinta Câmara de Direito Público
Classe processualApelação
Tipo de documentoAcórdão
Apelação Nº 0313944-88.2017.8.24.0023/SC

RELATOR: Desembargador HÉLIO DO VALLE PEREIRA

APELANTE: IUSSANA FLAVIA KERCHNER FERRARO (AUTOR) E OUTRO APELADO: CELESC DISTRIBUIÇÃO S.A. (RÉU)

RELATÓRIO

Vanderlei Schlucubier e Iussana Flávia Kerchner Ferraro ajuizaram ação de procedimento comum em face da Celesc Distribuição S/A.

Relataram a aquisição de terreno no Loteamento Recreio Santos Dumont, localizado no bairro Carianos, nesta Capital. Iniciaram a construção de casa em meados de 2013, finalizada em 2016. Solicitaram a ligação de energia elétrica, mas o pedido foi negado sob o argumento de que o lote se encontrava em área de preservação permanente.

Em janeiro de 2016 foram notificados acerca de uma decisão judicial do TRF4, pela qual se determinou a suspensão do fornecimento de energia elétrica aos imóveis localizados em APPs de Santa Catarina. Diante disso, os autores solicitaram o posicionamento da Prefeitura Municipal de Florianópolis, uma vez que a área onde está localizado o Loteamento Recreio Santos Dumont não se encontra registrada como área de preservação permanente.

Requereram a concessão de tutela de urgência para que a ré fosse compelida a promover a imediata instalação de energia elétrica em seu imóvel, sob pena de multa diária em caso de descumprimento.

O Juiz de Direito julgou improcedente o pedido.

Os autores apelam.

Reiteram os pedidos trazidos na inicial ao argumento de que o imóvel não está localizado em área de preservação permanente, inclusive estando regularmente registrada perante o Cartório de Registro de Imóveis de Florianópolis. Salientam que o terreno está devidamente aprovado pela Prefeitura Municipal.

Afirmam que os vizinhos dispõem de energia elétrica fornecida pela ré. Por isso, a alegação da Celesc sobre a impossibilidade de fornecer a utilidade fere a dignidade da pessoa humana e a isonomia - direitos garantidos pela Constituição Federal.

Em relação à fundamentação da sentença recorrida, sustentam a ausência da norma que determine a apresentação de alvará de construção ou habite-se para o fornecimento de energia elétrica. Mencionam que a Lei Municipal 10.384/2018 estabelece alguns critérios para fornecimento de energia elétrica, e que todos os critérios foram cumpridos antes do início da construção do imóvel.

Destacam que a negativa foi abusiva, visto que "não encontra amparo no ordenamento jurídico brasileiro, quer seja na norma jurídica quer seja nas decisões judiciais analisadas". Entendem que como teve o acesso a serviços básicos injustamente negado, faz jus à indenização por danos morais

Requerem a reforma da sentença.

A Celesc argumenta que há impossibilidade de fornecer energia elétrica ao imóvel, uma vez que o pedido formulado pelos particulares se encontra desamparado de documentos indispensáveis (alvará para construção da residência ou ainda habite-se). Manifesta que por causa do regramento existente e do entendimento jurisprudencial está impedida de implantar ligações à margem de qualquer processo urbanístico de regularização e sem as devidas autorizações do ente municipal.

A Procuradoria-Geral de Justiça se manifestou pelo desprovimento do recurso.

VOTO

1. A discussão posta neste caso é de enorme magnitude. Aborda os requisitos necessários à concessão de energia elétrica no imóvel dos autores. A questão de fundo, portanto, contrapõe o acesso a um serviço público essencial diante respeito à ordem urbanística.

Recentemente foi apreciado nesta 5ª Câmara de Direito Público a Ação Civil Pública nº 0900015-65.2019.8.24.0023 proposta pelo Ministério Público de Santa Catarina que buscava, em caráter abstrato, regulamentar e limitar o fornecimento genérico e irrestrito de energia elétrica em Florianópolis, com o intuito garantir a segurança, a salubridade, a sustentabilidade e o regular ordenamento do meio ambiente urbano. Lá se decidiu que não compete ao Judiciário fixar abstratamente limitações ao amplo fornecimento de energia, assumindo ares de legislador positivo, muito menos compete ao legislador municipal estabelecer requisitos, em âmbito local, que vedem o acesso da utilidade, ainda que sob o anseio de se disciplinar o urbanismo. Fixou-se a necessidade de se observarem as regras existentes emanadas pela Aneel sobre o tema:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ENERGIA ELÉTRICA - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO - RESOLUÇÃO DA ANEEL - PREPONDERÂNCIA - REGRAMENTO LIBERAL LOCAL CONVERGENTE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - COMPATIBILIZAÇÃO COM O URBANISMO - PEDIDO IMPROCEDENTE.

1. A energia elétrica é serviço público essencial. Promove a dignidade humana. Recusá-la é um vaticínio de inferioridade social. É especialmente censurar a pobreza, aqueles que vivem nas beiradas dos núcleos urbanos, no limite da proscrição.

2. Nenhum valor é absoluto, mesmo os constitucionais. O objetivo é obter uma harmonização, mesmo quando haja tensão. O urbanismo vela por diversos postulados importantes (o saneamento básico, a segurança, o transporte, as comunicações e assim por diante). Mas a dignidade, a moradia e o mínimo existencial são postulados superiores. O anseio será por fornecer o acesso da energia a todos, perseguindo-se a harmonização com o planejamento urbano. Não é justo que se censurem os humildes porque existe um desamparo, por exemplo, quanto ao acesso a lotes regulares.

A Lei 10.384/2018, do Município de Florianópolis, foi liberal, propiciando o mais fácil acesso à energia elétrica e deve ser vista com simpatia.

3. É da União a competência legislativa exclusiva para deliberar sobre a energia elétrica, firmou o STF na ADPF 452, o que prepondera mesmo diante do anseio de disciplinar o urbanismo (e vedar o acesso da utilidade para construções irregulares).

Essa atribuição está especialmente exercida pela Resolução 1.000 da Aneel, que regulamentou o fornecimento da energia elétrica; e a Agência que tem aptidão para, no sistema de deslegalização, cuidar dos meandros técnicos na área.

Normas federal e municipal, de todo modo, que podem ser compreendidas de maneira convergente, sem declaração de invalidade do ato local.

4. Ação civil pública que pretendia afastar a aplicação da lei municipal que é julgada improcedente, visto que a regra local, se entendida em conjunto com a Resolução da Aneel, pode ser tomada como válida.

5. Recursos providos.

(rel. o signatário)

Transcrevo ainda parcela dos fundamentos que constaram do voto:

5. Há sempre um dilema entre o acesso a um serviço público dos mais relevantes e o respeito à ordem urbanística.

Vejo, já estabelecendo premissa, que o fornecimento de energia elétrica deve ser apreciado a partir dos postulados constitucionais da dignidade da pessoa humana, do direito à moradia e da garantia do mínimo existencial. É serviço essencial e constitui uma necessidade básica contemporânea, devendo ser universalizado no sentido de, tanto quanto possível, estar disponível a todos.

Claro que isso não lhe dá um status absoluto, tal como valor culminante e único, outorgando-lhe imunidade em face de qualquer outra avaliação. O urbanismo, bem compreendida a preocupação, merece identicamente atenção, vendo-se ali, em perspectiva ideal, a possibilidade de se prestigiarem outros tantos pontos relevantes (como o acesso ao saneamento básico, o abandono de áreas de risco, a defesa ambiental e assim sucessivamente),

Nesse contexto, muitos advogam que uma autorização genérica, que dispense em abstrato eventual chancela do Poder Público municipal, poderia incentivar uma ocupação desenfreada do espaço urbano, com a proliferação de imóveis em situação de clandestinidade. Quer dizer, deverá ser observada a ordenação previamente planejada como forma de atenção àqueles plúrimos valores já cogitados.

Nessa simplicidade, todavia, o pensamento deve ser rejeitado e antecipo que não vejo como fugir de uma ponderação quanto aos princípios em aparentemente antagonismo.

É que, se mirada apenas a adequação urbana, serão punidos essencialmente os pobres, aqueles que ocupam áreas consolidadas, mas que até hoje não tiveram a atenção pública no sentido de obterem regularização. Daqui, de onde digito este acórdão no Tribunal de Justiça, vejo muitas e muitas casas, creio que todas em situação de irregularidade urbanística. Mas vidas estão ali, famílias foram constituídas e se formaram nas tais condições.

6. O sistema jurídico é composto de normas, que se dividem em regras e princípios. As primeiras, dotadas de proposições mais objetivas, definem propriamente condutas; os outros encampam valores, trazendo proposições fluidas. A preferência deve ser por regras. Os princípios valem muito, mas não se pode permitir que tudo seja resolvido com base na tal abertura, gerando um direito que possa levar a um decisionismo.

Relembro, sendo mais dogmático, que "as regras e princípios são duas espécies de normas; a distinção entre regras e princípios é uma distinção entre duas espécies de normas" (Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 4ª ed., p. 1.124).

Os princípios, encampando um valor, não têm a mesma conotação descritiva das regras. Trazem valores, proposições abertas. Não há uma predefinição de um resultado, mas se conclama o aplicador e o intérprete a se inspirarem no aspecto axiológico que propõe.

Tornou-se mais recentemente, porém, um chavão evocar princípios de maneira perigosamente abstrata. Daí se falar, por exemplo, em razoabilidade e proporcionalidade, mas sem real atenção aos seus significados.

Hélio Schwartsman, o filósofo que escreve no primeiro caderno da Folha de São Paulo quase diariamente, deu ótimo exemplo: a dignidade da pessoa humana garante ou proíbe o aborto (como também já tinha exemplificado com a eutanásia)? Serão achados com facilidades aqueles que defenderão respostas antagônicas, mas a partir do mesmo princípio!

É por isso que o Ministro Luís Roberto Barroso fala que "princípios da dignidade da pessoa humana, razoabilidade e solidariedade não são cheques em branco para o exercício de escolhas pessoais e idiossincráticas" (Curso de direito...

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