Acórdão Nº 0900794-09.2018.8.24.0038 do Segunda Câmara Criminal, 17-11-2020

Número do processo0900794-09.2018.8.24.0038
Data17 Novembro 2020
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoSegunda Câmara Criminal
Classe processualApelação Criminal
Tipo de documentoAcórdão










Apelação Criminal Nº 0900794-09.2018.8.24.0038/SC



RELATOR: Desembargador SÉRGIO RIZELO


APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELADO: APARECIDA CAMPOS DE SOUZA (ACUSADO) ADVOGADO: THIAGO YUKIO GUENKA CAMPOS (DPE) APELADO: ALDEMAR DE SOUZA (ACUSADO) ADVOGADO: THIAGO KRELLING (OAB SC046231)


RELATÓRIO


Na Comarca de Joinville, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra Aldemar de Souza e Aparecida Campos de Souza, imputando-lhes a prática dos crimes previstos nos arts. 99, caput, em concurso formal impróprio e continuidade delitiva, e 100, IV, ambos da Lei 10.741/03, nos seguintes termos:
Fato 1
No dia 22/2/2018, em horário comercial, durante a realização de visita de inspeção conjunta, a Vigilância Sanitária Municipal e a Analista em Assistência Social do Ministério Público na instituição de longa permanência de idosos Recanto Feliz, constataram gravíssimas irregularidades nos serviços oferecidos aos idosos Celso da Silva (71 anos), Emílio Pereira dos Santos (65 anos), Terezinha Duarte (63 anos), Maximiano Gomes (64 anos), Juvêncio A. de Souza (88 anos), Maria Clotilde Correia da Silva (89 anos), Paulino Meurer (61 anos), Euclides Marques Dias (83 anos), José Horácio Correia (71 anos); tais violações aos direitos dos idosos ocorrem desde data a ser precisada na instrução.
Notou-se que os denunciados Aldemar e Aparecida, responsáveis pela prestação de cuidados aos idosos (na condição de proprietários, administradores e trabalhadores efetivos da ILPI "Recanto Feliz"), não mantinham a equipe de profissionais mínima exigida pela RDC nº 283/2005, pela Lei nº 10.741/2003 e pela Resolução CNAS nº 109/2009, e os serviços aos idosos eram prestados por pessoas sem a devida qualificação e em número insuficiente, ignorando o tratamento, o bem estar, a atenção, o acompanhamento e a dependência que os contratados desta faixa etária demandam naturalmente. Os idosos eram mantidos em estabelecimento insalubre e em condições gerais que colocavam em risco sua dignidade.
Outrossim, foram encontrados diversos alimentos estocados na cozinha do estabelecimento com prazo de validade vencido, bem como alimentos perecíveis sem a devida conservação, conforme relatório anexo.
Assim, naquela ocasião e na rotina diária da instituição, na condição de empreendedores e trabalhadores efetivos do local, Aldemar e Aparecida expuseram a perigo a saúde física e mental dos idosos residentes na entidade "Recanto Feliz", privando-os de cuidados indispensáveis, apesar de obrigados a prover a manutenção sadia deles por força de contrato de prestação de serviços.
Ressalta-se que a situação se prolonga desde 2014 e a entidade "Recanto Feliz" já foi inclusive interditada judicialmente em razão das irregularidades nas atividades desenvolvidas ali, as quais são também objetos da Ação Civil Pública n. 0903720-02.2014.824.0038.
Fato 2
A partir do dia 20/3/2018 (f. 819), apesar de regularmente intimados, os denunciados deixaram de cumprir, sem justo motivo, a ordem judicial (f. 801-802) de suspensão do estabelecimento, expedida na ação civil pública nº 0903720-02.2014.824.0038, mantendo em funcionamento instituição de longa permanência de idosos irregular interditada pelo Poder Judiciário.
Apesar de já terem incorrido em multa de R$ 13.000,00 e de já terem sido expressamente intimados a cumprir a ordem sob pena do crime de desobediência, os acusados continuaram recalcitrantes, afrontando a Administração da Justiça e mantendo em funcionamento a nefasta empresa de violação de direitos dos idosos (Evento 21).
Concluída a instrução, o Doutor Juiz de Direito julgou improcedente a exordial acusatória e absolveu Aldemar de Souza e Aparecida Campos de Souza da imputação da prática dos crimes previstos nos arts. 99, caput, e 100, IV, ambos da Lei 10.741/03, com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal (Evento 188, doc317).
Insatisfeito, o Ministério Público deflagrou recurso de apelação.
Nas suas razões de insurgência, requer a reforma parcial da sentença resistida, ao argumento de que a prova carreada ao feito é suficiente para demonstrar a materialidade, a autoria e o dolo dos Denunciados quanto ao crime previsto no art. 99, caput, da Lei 10.741/03, pleiteando, então, a condenação de ambos pelo cometimento de tal delito, em concurso formal impróprio e em continuidade delitiva (Evento 197).
Aldemar de Souza e Aparecida Campos de Souza ofereceram contrarrazões pelo conhecimento e desprovimento do reclamo (Eventos 203 e 215).
A Procuradoria de Justiça Criminal, em parecer lavrado pelo Excelentíssimo Procurador de Justiça Marcílio de Novaes Costa, posicionou-se pelo conhecimento e provimento do apelo (Evento 62)

VOTO


1. É preciso reconhecer a prescrição da pretensão punitiva com relação à parcela dos delitos.
A pena privativa de liberdade máxima em abstrato para o crime previsto no art. 99, caput, do Estatuto do Idoso é de 1 ano. Com isso, a pretensão punitiva prescreve em 4 anos (CP, art. 109, V).
De acordo com a denúncia, os crimes foram cometidos reiteradamente no período compreendido entre 2014 e 22.2.18. Mas o prazo prescricional só foi interrompido, com o recebimento da denúncia, em 12.12.18 (Evento 55).
Com isso, a pretensão punitiva de todos os possíveis crimes praticados antes de 13.12.14 encontra-se prescrita, tornando imperativa a decretação da extinção da punibilidade dos Apelados Aldemar de Souza e Aparecida Campos de Souza quanto a tais práticas, com fundamento no art. 107, IV, do Código Penal.
Ainda assim, o recurso não é totalmente prejudicado, pois preenche os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, e deve ser conhecido, quanto aos supostos delitos cometidos entre 13.12.14 e 22.2.18.
2. Destaca-se que, embora esta Segunda Câmara Criminal, por maioria, entenda pela retroatividade do art. 28-A do Código de Processo Penal (Ap. Crim. 0013790-62.2015.8.24.0008, deste relator, j. 19.5.20), o posicionamento não se aplica neste feito.
Isso porque, ao tratar da suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art. 89), instituto da mesma natureza despenalizadora do acordo de não persecução penal, o Superior Tribunal de Justiça entende que a não proposição gera nulidade relativa, sujeita à preclusão quando a parte não a alega em seu primeiro ato processual praticado (APn 912, Relª. Minª. Laurita Vaz, j. 7.8.19; AgRg no HC 496.414, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 26.3.19; AgRg no REsp 1.686.511, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 20.9.18; AgRg nos EDcl no REsp 1.611.709, Rel. Min. Félix Fischer, j. 4.10.16; e HC 208.051, Relª. Minª. Maria Thereza Assis de Moura, j. 11.3.14).
No caso, as contrarrazões de apelação foram protocoladas após a vigência da Lei 13.964/19 (15.6.20 e 19.8.20), esta nascedouro do acordo de não persecução penal, e os Apelados não suscitaram o tema, de modo que, então, foi alcançado pela preclusão.
3. A ocorrência material dos fatos e autoria são incontroversas e exsurgem do positivado no contrato social da pessoa jurídica Casa de Repouso Recanto Feliz Ltda. ME, apto a evidenciar que a administração da empresa era realizada em conjunto pelos Apelados (Evento 1, doc24-27); do relatório informativo do Serviço Social das Promotorias de Justiça da Comarca de Joinville (Evento 1, doc63-66) e do documento de fiscalização na instituição de longa permanência para idosos (Evento 1, doc69-76), ambos no sentido de que a empresa em questão apresentava diversas irregularidades, tais como "oferta de alimentos vencidos a idosos", "inexistência de dieta especial para pacientes diabéticos e hipertensos", "ausência de monitoramentos essenciais das condições de saúde" e "ausência de quadro funcional mínimo para atendimento dos idosos"; do auto de intimação de interdição administrativa (Evento 68); das fotografias das dependências do estabelecimento (Evento 1, doc77-88); e da prova oral amealhada ao feito.
A despeito disso, o Magistrado sentenciante optou por absolver os Apelados das imputações a eles dirigidas na exordial acusatória, com fundamento na dúvida quanto ao dolo. Nesse sentido, pontuou:
a única conclusão possível, volto a insistir, é de que os elementos probatórios carreados ao processo deixam de evidenciar a existência de dolo na conduta dos acusados, eles que, ao que consta, na medida no possível implementavam as orientações e melhorias determinadas pelos órgãos competentes.
[...]
Assim, embora convencido de que o lar de idoso Recanto Feliz deve adequar-se às condições sanitárias e regulamentares para o abrigamento dos idosos - tanto que até o momento não fora concedido o indispensável alvará -, compreendo que a questão refoge à competência criminal, afinal, a bem da verdade, não existe qualquer indicativo da vontade dos acusados em promover maus-tratos aos idosos, cujo problema social manifestado pelo fiscal de vigilância sanitária Carlos Roberto Koepp como de "incapacidade de gerenciamento do local" deve ser resolvido nas searas próprias (Evento 188, doc317, p. 9-10).
O entendimento lastreou-se na doutrina de Guilherme de Souza Nucci, o qual pontifica:
existir o elemento subjetivo específico implícito, consistente na vontade de maltratar o idoso. Por vezes, exemplificando, "A" pode submeter "B" a condições degradantes por falta de noção exata do que faz (insuficiência cultural) ou por ausência de poder aquisitivo. O mesmo se dá no contexto da privação de alimentos e cuidados indispensáveis. Em suma, não basta o dolo, é fundamental buscar-se a vontade de maltratar. Não se pune a forma culposa (Leis penais e processuais penais comentadas: volume 1. 13. ed. Rio de...

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