Acórdão Nº 0901553-85.2018.8.24.0033 do Segunda Câmara de Direito Público, 19-09-2023

Número do processo0901553-85.2018.8.24.0033
Data19 Setembro 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoSegunda Câmara de Direito Público
Classe processualApelação
Tipo de documentoAcórdão










Apelação Nº 0901553-85.2018.8.24.0033/SC



RELATOR: Desembargador CARLOS ADILSON SILVA


APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELADO: ELISETE FURTADO CARDOSO (RÉU)


RELATÓRIO


Trata-se de apelação cível interposta pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina contra sentença proferida pelo juízo da Vara da Fazenda Púb, Exec. Fis., Acid. do Trab. e Reg. Púb. da Comarca de Itajaí que, em ação civil pública por atos de improbidade administrativa ajuizada em face de Elisete Furtado Cardoso, julgou improcedente o pedido formulado na inicial, em decorrência da superveniência da Lei n. 14.230/21, denominada nova Lei de Improbidade Administrativa, que alterou profundamente o art. 11, caput e I, da Lei n. 8.429/92.
Em suas razões recursais, o órgão ministerial sustenta que: a) a reforma legislativa advinda com a Lei n. 14.230/21 não pode retroagir para beneficiar quem praticou ato de improbidade administrativa, privilégio extensível apenas às normas de natureza penal; e b) alterações promovidas pela Lei n. 14.230/21 são inconstitucionais e implicam proteção deficiente ao controle da probidade administrativa (evento 78, 1G).
Foram apresentadas as contrarrazões (eventos 87, 1G).
A douta Procuradoria-Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (evento 07, 2G).
O processo foi sobrestado em função do Grupo de Representativos n. 16 desta Corte, mas se determinou o levantamento da condição de sobrestamento em 25-08-2023, limitando-se a suspensão processual aos recursos perante a 2ª Vice-Presidência.
O feito, portanto, está apto para julgamento.
É o relatório

VOTO


1. Admissibilidade:
Embora existam processos mais antigos pendentes de julgamento sob minha relatoria, o julgamento deste reclamo não caracteriza violação ao art. 12 do CPC, diante da flexibilização da obrigatoriedade de a jurisdição ser prestada conforme a ordem cronológica, consoante inovação da Lei n. 13.256/16, que retirou o caráter absoluto da regra.
Referida modificação traz melhoria da gestão de gabinete, permitindo a apreciação imediata de demandas repetitivas, visando desafogar a distribuição de processos, cada vez mais exacerbada neste Tribunal.
Com efeito, afigura-se cabível o recurso, porquanto tempestivo e preenchidos os requisitos de admissibilidade previstos nos arts. 1.009 e seguintes do CPC.
2. Mérito:
Controverte-se sobre a premissa utilizada na origem quanto à retroatividade da reforma legislativa operada pela Lei n. 14.230/21, chamada de nova Lei de Improbidade Administrativa.
O recorrente entende que apenas as normas de natureza penal retroagem para beneficiar o réu.
Razão não lhe assiste.
A Lei n. 14.230/21 promoveu profundas alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/92), a exemplo da extinção do ato de improbidade por dano ao erário culposo, previsto na redação originária do art. 10, a extinção do tipo aberto de improbidade por violação aos princípios vetores da Administração Pública, previsto no antigo art. 11, a possibilidade de celebração de acordo de não persecução civil (art. 17-B), a fixação de prazo prescricional único de 08 anos (art. 23, caput), inclusive nova hipótese de prescrição intercorrente, contada pela metade do prazo prescricional, interrompido sucessivamente a partir de marcos temporais fixos (art. 23, §§ 4º, 5º, 8º), a exigência do periculum in mora para a decretação cautelar da indisponibilidade de bens (art. 16, § 3º) e a supressão do reexame necessário.
Extrai-se do art. 17-D da Lei n. 14.230/21:
"Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos."
Do art. 17-D, caput, da Lei n. 8.429/92, inserido pela Lei n. 14.230/21, resulta claro o caráter sancionatório da ação por improbidade administrativa, aproximando-a da esfera penal.
A par disso, a Primeira Turma do STJ já assentou que "(...) o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador" (STJ, RMS 37.031/SP, relª. Minª. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 20-02-2018).
De acordo com lição de Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega:
"(...) se a irretroatividade da lei gravosa protege o indivíduo contra uma sanha persecutória que pretende, por via legiferante abusiva, destilar de modo direcionado intuito punitivo ao arrepio da segurança jurídica, a retroatividade da lei benigna retira seu fundamento do fato de que o que orienta a sanção não há de ser a satisfação de um desejo repressor, senão a correspondente proporcionalidade que a conduta deva merecer segundo a exata, e atualizada, menor medida de sua reprovação. Sobre esse último aspecto, aliás, lapidar julgado da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, digno de nota: 'A retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal (...) se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage (RESP 1.153.083)'" (Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e retroatividade. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-22/improbidade-debate-reforma-lei-improbidade-administrativa-retroatividade. Acesso em: 25-01-2022)
No mesmo sentido, segundo Rafael Carvalho Rezende Oliveira e Erick Halpern:
"(...) Independentemente das eventuais tentativas de distinção entre os dois campos principais do Direito Público Sancionador, é possível sustentar que os dois ramos jurídicos decorrem de um ius puniendi estatal único, inexistindo diferença ontológica, mas apenas de regimes jurídicos, em conformidade com a discricionariedade conferida ao legislador.
As sanções penais e administrativas, em razão de suas semelhanças, submetem-se a regime jurídico similar, com a incidência de princípios comuns que conformariam o Direito Público Sancionador, especialmente os direitos, garantias e princípios fundamentais consagrados no texto constitucional, tais como: a) legalidade, inclusive a tipicidade (art. 5º, II e XXXIX; art. 37); b) princípio da irretroatividade (art. 5º, XL); c) pessoalidade da pena (art. 5º, XLV); d) individualização da pena (art. 5º, XLVI); e) devido processo legal (art. 5º, LIV); f) contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV); g) razoabilidade e proporcionalidade (art. 1º e art. 5º, LIV); etc
No rol exemplificativo, destaca-se o princípio da irretroatividade previsto no art. 5º, XL, da CRFB que dispõe: "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Não obstante a expressa referência à "lei penal", o referido princípio deve ser aplicado, também, ao Direito Administrativo Sancionador, inclusive no campo da improbidade administrativa. Em consequência, a norma sancionadora mais benéfica deve retroagir para beneficiar o réu na interpretação e aplicação dos dispositivos da Lei de Improbidade Administrativa.
A aplicação da retroatividade da norma sancionadora mais benéfica encontra previsão, ainda, no art. 9º do Pacto de São José da Costa Rica, que não restringe a incidência do princípio ao Direito Penal, motivo pelo qual seria plenamente possível a sua aplicação às ações de improbidade administrativa.
Conforme sustentamos em outra oportunidade, no âmbito do processo administrativo, a vedação da retroatividade da nova interpretação administrativa, prevista no art. 2º, parágrafo único, XIII, da Lei 9.784/1999, fundamenta-se na necessidade de proteção da boa-fé e da confiança legítima do administrado, o que não impede a retroatividade da nova interpretação desde que esta seja favorável aos administrados. Assim, por exemplo, a nova interpretação no campo do Direito Administrativo Sancionador que beneficie determinado particular ou agente público, punido em processo administrativo anterior, pode retroagir para abrandar ou afastar a sanção.
A possibilidade da retroatividade da norma mais benéfica no âmbito da improbidade administrativa é reforçada pelo art. 1º, § 4º, da Lei de Improbidade Administrativa, inserido pela Lei 14.230/2021, que determina a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador ao sistema da improbidade." "A retroatividade da lei mais benéfica no Direito Administrativo Sancionador e a reforma da Lei de Improbidade pela Lei 14.230/2021. Disponível em: http://genjuridico.com.br/2021/11/08/reforma-da-lei-de-improbidade/. Acesso em: 25-01-2022).
A compreensão acerca da retroatividade das disposições da Lei n. 14.230/21 já tem orientado as decisões dos Tribunais.
Para o TJSP:
"APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTATIVA - Dispensa de licitação - Contratações diretas realizadas no exercício de 2006 pela EMDHAP em favor de diversas empresas, que atingiram o total de R$ 1.007.934,65 - Montante negociado que ultrapassa em muito o limite permitido dos incisos I e II do art. 24 da lei nº 8.666/93 - Dispensa de licitação indevida - Dano ao erário presumido - Inteligência do artigo 10 inciso VIII da Lei nº 8.429/92 - Superveniência da Lei n. 14.203/2021 que, em seu artigo 1º § 4º determina a aplicação, no sistema de improbidade, dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador - Retroatividade da norma mais benéfica - Supressão do dano presumido constante na antiga...

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