Acórdão Nº 0906011-96.2019.8.24.0038 do Primeira Câmara Criminal, 04-08-2022

Número do processo0906011-96.2019.8.24.0038
Data04 Agosto 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoPrimeira Câmara Criminal
Classe processualApelação Criminal
Tipo de documentoAcórdão
Apelação Criminal Nº 0906011-96.2019.8.24.0038/SC

RELATOR: Desembargador CARLOS ALBERTO CIVINSKI

APELANTE: JOAO EDUARDO CAMPOS LEHMANN (ACUSADO) ADVOGADO: ICARO STUELP (OAB SC031982) APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR)

RELATÓRIO

Denúncia: o Ministério Público ofereceu denúncia perante o juízo da comarca de JOINVILLE em face de João Eduardo Campos Lehmann, dando-o como incurso nas sanções do art. 2º, II, da Lei 8.137/1990, por oito vezes, na forma do art. 71, caput, do Código Penal, em razão dos seguintes fatos:

O denunciado, na condição de sócio-administrador de 'TBB CONFECÇÕES LTDA.', CNPJ n. 08.576.135/0001-01 e Inscrição Estadual n. 25.536.115-7, estabelecida na Rua Petrópolis, n. 610, Bairro Itaum, em Joinville, deixou de efetuar, no prazo legal, o recolhimento de R$ 405.512,19 (quatrocentos e cinco mil quinhentos e doze reais e dezenove centavos) a título de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS cobrado de consumidores, locupletando-se ilicitamente mediante este tipo de apropriação de valores em prejuízo ao estado de Santa Catarina, conforme declarado pelo sujeito passivo da obrigação nas DIMEs (Declarações do ICMS e do Movimento Econômico) dos meses de março, abril e maio de 2012 e agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2013, documentos geradores das Notificações Fiscais n. 126030313163, de 23/06/2012, 136030505027, de 30/10/2013, 136030523629, de 29/11/2013, 136030533500, de 18/12/2013, 146030006818, de 03/02/2014 e 146030014721, de 26/02/2014.

É de se registrar que os débitos das Notificações Fiscais n. 126030313163 e 136030505027 foram objetos de Processos Contenciosos perante o Tribunal Administrativo Tributário (autos n. 1270000029744 e 1370000063047, respectivamente), restando integralmente confirmados, ocorrendo a suspensão da pretensão punitiva do Estado e do curso prescricional nos períodos de 12/07/2012 a 20/11/2013 e 25/11/2013 a 08/05/2014, nesta ordem, de acordo com decisão proferida em HC n. 81.611-8/DF, em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal de 10/12/2003.

Ainda, é de se registrar que os débitos das Dívidas Ativas n. 14004684400, 14006179258 e 14007363397 (relativos às Notificações Fiscais n. 136030523629, 136030533500 e 146030014721, respectivamente), foram objetos do Parcelamento n. 41100115877, o qual foi cancelado por inadimplemento, ocorrendo a suspensão da pretensão punitiva do Estado e do curso prescricional no período de 19/08/2014 a 31/07/2019.

Por fim, os débitos das Dívidas Ativas n. 14004193172, 14006988601 e 14005755727 (referentes às Notificações Fiscais n. 126030313163, 136030505027 e 146030006818, respectivamente), foram alvos do Parcelamento n. 41100115842, o qual foi cancelado por inadimplemento, ocorrendo a suspensão da pretensão punitiva do Estado e do curso prescricional no período de 19/08/2014 a 31/07/2019, tudo conforme preceitua o §2º do art. 83 da Lei n. 9.430/96, com nova redação dada pelo art. 6º da Lei n. 12.382/11 (evento 1/PG - PET1 - em 4-9-2019).

Sentença: o juiz de direito Felippi Ambrosio julgou procedente a denúncia para:

[...] condenar JOAO EDUARDO CAMPOS LEHMANN ao cumprimento da pena privativa de liberdade de 10 (dez) meses de detenção, em regime aberto (art. 33, § 2º, "c" do CP), além do pagamento de 16 (dezesseis) dias-multa, cada qual no valor mínimo legal (art. 49, § 1º do CP), por infração ao art. 2º, II da Lei nº 8137/90, por 8 vezes, em continuidade delitiva (art. 71, caput, do CP).

Custas pelo acusado (CPP, art. 804).

Substituo as penas por restritivas de direito, nos termos da fundamentação [prestação de serviços à comunidade, pelo mesmo prazo da pena privativa, em uma hora de tarefa por dia de condenação]. Permito o recurso em liberdade (art. 387, § 1º, do CPP), já que, para além da incompatibilidade da custódia com a reprimenda aplicada, "segundo o entendimento desta Corte, aquele que respondeu solto à ação penal assim deve permanecer após a condenação em primeira instância, se ausentes novos elementos que justifiquem a alteração de sua situação" (STJ, HC nº 384831/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca) (evento 102/PG - em 16-5-2022).

Trânsito em julgado: foi certificado o trânsito em julgado da sentença para o Ministério Público, ocorrido em 18-5-2022 (evento 116/PG - em 1-6-2022).

Recurso de apelação de João Eduardo Campos Lehmann: a defesa interpôs recurso de apelação, no qual sustentou que:

a) não houve comprovação segura da autoria delitiva, porquanto a acusação se pautou apenas no contrato social que aponta o recorrente como administrador da empresa à época do não recolhimento de ICMS, todavia, a defesa produziu prova testemunhal, no sentido de que a administração de fato era exercida pelo tio do apelante, o que incute dúvida razoável apta a ensejar a absolvição;

b) a absolvição igualmente é imperativa face à atipicidade da conduta imputada ao apelante, visto que a empresa deixou de recolher ICMS-próprio, não se confundindo com a apropriação ilícita, sobretudo ante a falta de demonstração de que houve cobrança ou desconto de tributo pago por terceiro, razão pela qual o presente processo desagua na vedação constitucional de prisão por dívida;

c) o caso em exame ainda revela a inexigibilidade de conduta diversa, porquanto demonstrado que a pessoa jurídica enfrentou dificuldades financeiras que a impediram o pronto recolhimento de ICMS, o que torna viável o édito absolutório;

d) outrossim, mostra-se oportuna a absolvição ante a falta de comprovação do dolo na conduta atribuída ao apelante, inexistindo, ainda, o "suposto aproveitamento doloso de créditos", cenário que deve ser enfrentado à luz das balizas estabelecidas pelo STF no julgamento do RHC 163.334, com destaque para a necessidade de comprovação do dolo de apropriação e da contumácia delitiva.

Requereu o conhecimento e provimento do recurso para reformar a sentença, nos termos da fundamentação (evento 9/SG - em 21-6-2022).

Contrarrazões do Ministério Público: a acusação impugnou as razões recursais, ao argumento de que a autoria delitiva ficou comprovada tanto pelo contrato social quanto pelo depoimento de uma testemunha da defesa que apontou o apelante como gestor à época dos fatos, não havendo falar, no mais, em atipicidade da conduta, porque houve a apropriação ilícita do imposto recolhido por consumidor final, da qual se infere o dolo genérico na conduta do recorrente, cuja criminalização encontra respaldo na própria jurisprudência do STF.

Postulou o conhecimento do recurso e a manutenção da sentença condenatória (evento 12/SG - em 5-7-2022).

Parecer da Procuradoria-Geral de Justiça: o procurador de justiça Luiz Ricardo Pereira Cavalcanti opinou pelo conhecimento e desprovimento do recurso (evento 15/SG - em 11-7-2022).

VOTO

Do juízo de admissibilidade

O recurso preenche os requisitos intrínsecos (legitimidade e interesse recursais) e extrínsecos (tempestividade, cabimento, adequação e ausência de fatos impeditivos ou extintivos da pretensão recursal) de admissibilidade, motivo pelo qual deve ser conhecido.

Do mérito

Contrariamente ao que foi defendido pelo apelante neste grau recursal, nos termos do resumo apresentado no relatório deste voto, as versões da defesa não lograram derruir os elementos amealhados pela acusação, tampouco a convicção formada pelo Juízo a quo, no sentido de que o agente perpetrou o delito previsto no art. 2º, II, da Lei 8.137/1990.

De início, cumpre pontuar que o art. 2º, II, da Lei 8.137/1990 não padece de inconstitucionalidade em virtude do disposto no art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que veda a prisão civil por dívida.

A lição do emérito jurista Andreas Eisele é clara e demonstra a impropriedade da tese:

A prisão é uma modalidade de sanção e, como tal, configura em consequência jurídica da ocorrência do fato ilícito.

Portanto, não é classificada em face de sua configuração própria, pois é um instrumento acessório que visa conferir efetividade a uma norma (principal).

Como consequência dessa relação de acessoriedade, a natureza da sanção é dependente (e decorrente) da natureza da norma em face da qual é cominada.

Ou seja, a sanção cominada em relação a uma norma civil possui natureza civil, o mesmo ocorrendo no âmbito penal.

Tal ocorre porque, conforme afirma Bustos Ramírez, "a sanção não aparece como definidora da norma nem sequer, das demais regras jurídicas: o caráter e a natureza destas não estão dados pela pena".

Por este motivo, Decomain afirma que "não se trata de prisão civil por dívida, mas sim da criminalização do não pagamento de uma".

A distinção é relevante, pois as finalidades das sanções civil e penais são diversas, eis que, enquanto a primeira é um instrumento coercitivo de imposição do cumprimento de uma prestação (cobrança), a segunda busca efeitos preventivos e retributivos.

Álvaro Villaça alude à diferença, ao afirmar que a prisão civil "é a que se realiza no âmbito, estritamente, do Direito Privado (...), não importando, pois em condenação criminal, uma vez que é tão-somente meio legal compulsório de obter o cumprimento de determinado dever. (...) A prisão penal, portanto, decorre da aplicação de pena criminal. (...) A prisão civil, ao contrário, não apresenta o caráter de pena, mas de meio coercitivo, imposto ao cumprimento de determinada obrigação."

O mesmo entendimento expressa Pinto Ferreira, quando esclarece que "a locução constitucional prisão civil distingue-se da prisão penal, devem ser entendidas diferentemente. Aquela é um meio compulsório de execução, enquanto esta resulta de uma infração penal."

Dessa forma, como a prisão (pena privativa de liberdade) cominada como sanção correspondente ao crime de omissão de omissão de recolhimento de tributos indiretos ou devidos por agentes de retenção, possui natureza penal, não está abrangida na vedação constitucional, conforme esclarece Cretella Júnior.

Estabelecida a distinção no âmbito literal, é relevante analisar o conteúdo da norma mediante a abordagem teleológica (abstraída do contexto...

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