Acórdão Nº 2013.900020-2 do Conselho da Magistratura, 13-10-2014

Número do processo2013.900020-2
Data13 Outubro 2014
Tribunal de OrigemItapema
Classe processualRecurso de Decisão
Tipo de documentoAcórdão


Recurso de Decisão n. 2013.900020-2


Relatora: Desa. Denise Volpato


PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO EM SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA. OFÍCIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE ITAPEMA/SC. REGISTRO DE ESCRITURA DE COMPRA E VENDA APÓS O FALECIMENTO DO PROPRIETÁRIO DE BEM IMÓVEL. POSSIBILIDADE. TRANSFERÊNCIA IMEDIATA DA HERANÇA AOS HERDEIROS (ARTIGO 1.784 DO CÓDIGO CIVIL). INSTRUMENTO PÚBLICO DE COMPRA E VENDA LAVRADO EM VIDA PELO DE CUJUS. SUSCESSÃO DOS HERDEIROS NÃO SÓ NOS DIREITOS, MAS IGUALMENTE NAS OBRIGAÇÕES DO AUTOR DA HERANÇA. DEVER ASSUMIDO PELO VENDEDOR FALECIDO DE NÃO OBSTAR A TRANSFERÊNCIA DO BEM QUE NÃO SE EXTINGUE COM SUA MORTE. VIABILIDADE, PORTANTO, DO REGISTRO DO TÍTULO TRANSLATIVO DA PROPRIEDADE MESMO APÓS A EXTINÇÃO DA PERSONALIDADE CIVIL DO PROPRIETÁRIO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.


Vistos, relatados e discutidos estes autos de Pedido de Providências n. 2014.900063-9, em que é recorrente Antonio Cetenareski e recorrido Guilherme Torquato de Figueiredo Valente:


O Conselho da Magistratura, decidiu, por votação unânime, dar provimento ao recurso.


O julgamento realizado nesta data foi presidido pelo Des. Nelson Juliano Schaefer Martins, e dele participaram os Exmos. Srs. Des. Luiz Cézar Medeiros, Des. Torres Marques, Des. Ricardo Fontes, Des. Lédio Rosa de Andrade, Des. Jorge Luiz de Borba, Desa. Rejane Andersen, e Des. Cláudio Valdyr Helfenstein.


Florianópolis, 13 de outubro de 2014.


Denise Volpato


Relatora




RELATÓRIO


Instado pelo interessado (Antonio Cetenareski), o Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Itapema/SC, Guilherme Torquato de Figueiredo Valente, suscitou dúvida acerca da possibilidade de registro de título translativo da propriedade de bem imóvel (Escritura Pública de Compra e Venda) nas matrículas n. 11.879 e 11.880, após o falecimento do proprietário.


Às fls. 29/40 o suscitado, Antonio Cetenareski apresentou manifestação.


Dada vista ao Ministério Público, a promotora Carla Mara Pinheiro Miranda opinou pelo julgamento de procedência da suscitação de dúvida.


Sobreveio Sentença (fls. 94/96) aos autos julgando o procedimento especial nos seguintes termos:


"JULGO PROCEDENTE o pedido de suscitação de dúvida formulado pelo Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Itapema, devendo o suscitado, para auferir registro de escritura pública, cumprir as exigências feitas pelo Oficial na forma pretendida ou optar por alguma das alternativas supramencionadas."


Irresignado, o suscitado interpôs recurso de Apelação (fls. 98/112). Com fulcro na doutrina de Washington Monteiro de Barros, e jurisprudência de tribunais pátrios, alega o interessado a possibilidade de efetuar o registro do imóvel após a morte do proprietário.


Lavrou parecer neste Grau de Jurisdição o douto Procurador de Justiça, Dr. Sandro José Neis, opinando pelo desprovimento do apelo (fls. 131/134).


Este é o relatório.




VOTO


Trata-se de recurso de Apelação, interposto em âmbito administrativo com fulcro no artigo 202, da Lei n 6.015/1953, no qual postula o apelante a reforma da sentença que, nos autos do procedimento suscitação de dúvida n. 0009695-65.2011.824.0125, desautorizou a averbação do registro da escritura de compra e vende de imóvel de fls. 10/13.


Em Sentença, restou consignado pela Magistrada a quo a necessidade de arrolamento em inventário do imóvel adquirido por meio de Escritura de Compra e Venda pelo suscitado.


Com efeito, no entendimento do Oficial Imobiliário suscitante, e da Magistrada de Primeiro Grau, após a morte do proprietário do bem, mesmo que a Escritura de Compra e Venda tenha sido lavrada em vida, não se afigura possível o registro do título translativo da propriedade de bem imóvel, em face do princípio da saisine (artigo 1.784, do Código Civil).


Cinge-se o recurso, portanto, a possibilidade ou não de realizar-se registro de título translativo da propriedade após o falecimento do proprietário do imóvel.


Com razão o apelante.


Inicialmente, convém ressaltar caber ao Conselho da Magistratura manifestar-se acerca da matéria colacionada aos autos, haja vista lhe competir, em âmbito administrativo, exercer a correição disciplinar (artigo 25, § 1º, do Código de Organização e Divisão Judiciária do Estado de Santa Catarina).


Ademais, cumpre destacar restar atribuída às Câmaras Cíveis desta Corte (artigo 29, II, a, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça de Santa Catarina) a tarefa de julgar os recursos de "Apelação Cível" (previsto no artigo 515, do Código de Processo Civil), procedimento de natureza jurisdicional contenciosa diverso do recurso de "Apelação" estatuído no artigo 202 da Lei n. 6.015/1953, de natureza eminentemente administrativa (artigo 204, da Lei n. 6.015/1953).


Pois bem.


Não se olvida do disposto nos artigos 1.227 e 1.245, caput, e parágrafos, e 1.784, do Código Civil, in verbis:


"Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código."


"Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.


§1° Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.


§2° Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel."


"Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários."


Isso, contudo, não obriga a parte adquirente a postular a satisfação da obrigação regularmente pactuada com o de cujus, mediante a outorga de escritura pública de compra e venda (fls. 10/13), com seus respectivos herdeiros após a morte.


A despeito do princípio da saisine, segundo o qual todos os direitos e deveres do falecido se transferem aos herdeiros (em universalidade indivisível, chamada de herança) no momento da cessação da personalidade civil (morte), o entendimento de que o bem imóvel passa a ser automaticamente de propriedade dos herdeiros não se coaduna com os preceitos legais atinentes ao direito das sucessões.


Apesar da aparente lógica jurídica, o raciocínio apresentado pelo oficial de registro imobiliário afronta um dos preceitos basilares do direito das sucessões, qual seja, o da universalidade da herança (artigo 1.791, do Código Civil).


Nessa senda, colaciona-se o conceito de herança segundo Maria Berenice Dias:


"Herança é o conjunto de direitos e obrigações que se transmitem, em razão da morte, a uma pessoa ou a um conjunto de pessoas, que sobrevivam ao falecido. É o patrimônio composto de ativo e passivo deixado pelo falecido por ocasião de seu óbito, a ser recebido por seus herdeiros.


Os sucessores passam a ter a mesma situação jurídica do falecido - chamado de autor da herança -, quer com relação aos direitos, quer quanto aos seus bens. A herança constitui uma universalidade de direitos (CC91): complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico. Até a partilha, a herança é indivisível (CC 1.791 parágrafo único), os bens não podem ser fracionados (CC 88). Também por força da lei é considerada bem imóvel (CC 80, II).


O acervo hereditário, no âmbito judicial, recebe o nome de espólio. Não tem personalidade jurídica, mas tem capacidade jurídica para demandar e ser demandado (CPC 12, V). Trata-se de universalidade de bens de existência transitória. Não dispõe de patrimônio próprio e tem proprietários conhecidos. 'São bens provisoriamente reunidos que pertencem aos herdeiros em condomínio.'" (Manual das Sucessões. 3.ed. São Paulo: RT, 2013. p.33)


Nessa medida, não há como se considerar de forma individual a transferência imediata da propriedade de cada um dos bens do proprietário em razão de sua morte, porquanto havendo pendência de registro de venda pregressa - com ou sem a efetivação da lavratura de escritura de compra e venda -, incumbe aos herdeiros tão somente o dever de satisfazer a obrigação assumida em vida pelo vendedor.


Não é cada um dos bens individualmente considerado que passa ao patrimônio dos herdeiros, mas "o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico" (artigo 91, CC), ou seja, em verdade, na prática, é transmitida aos herdeiros tão-somente a obrigação assumida pelo de cujus de transferir ao comprador a titularidade do imóvel deixado pelo de cujus.


Por mais que, in thesi, não só a obrigação de transferência, mas o imóvel em si também lhes seja transmitido, considerando-se em conjunto o complexo de relações jurídicas atinentes ao bem em comento, remanesce aos herdeiros, em razão da morte do autor da herança unicamente a obrigação de perfectibilizar a transação imobiliária realizada em vida.


O raciocínio a ser aplicado ao caso em análise é idêntico ao comumente empregado nas Cortes pátrias para o compromisso particular de compra e venda - contrato preliminar de compra e venda (artigo 462, do Código Civil) -, situação na qual há muito tempo consolidou-se o entendimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal (Súmula 590, de 15/12/1976). Apesar da inexistência de registro pretérito da transação, o bem não compõe a herança, na medida em que representa unicamente um débito, obrigação de fazer do de cujus que não fora integralmente satisfeita em vida (não sendo causa eficiente para cobrança de Imposto Causa Mortis).


Extrai-se da jurisprudência deste Tribunal de Justiça (em Acórdão de minha lavra):


"AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. PEDIDO DE REFORMA DA DECISÃO QUE RECONHECEU A INCIDÊNCIA DE IMPOSTO DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS SOBRE BENS IMÓVEIS ALIENADOS POR MEIO DE PROMESSA PARTICULAR DE COMPRA E VENDA (NÃO LEVADA A REGISTRO) PELA AUTORA DA HERANÇA EM VIDA. SUBSISTÊNCIA. POSSIBILIDADE DE ANÁLISE DA MATÉRIA PELO JUÍZO...

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