Acórdão Nº 5000138-18.2019.8.24.0018 do Primeira Câmara de Direito Público, 05-04-2022

Número do processo5000138-18.2019.8.24.0018
Data05 Abril 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoPrimeira Câmara de Direito Público
Classe processualApelação
Tipo de documentoAcórdão
Apelação Nº 5000138-18.2019.8.24.0018/SC

RELATOR: Desembargador PEDRO MANOEL ABREU

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELANTE: ESTADO DE SANTA CATARINA (RÉU) APELADO: OS MESMOS

RELATÓRIO

O Estado de Santa Catarina interpôs recurso de apelação em face da sentença proferida nos autos da ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual com o objetivo de eximir os imigrantes hipossuficientes do pagamento de emolumentos de traduções juramentadas, cujo custeio ficará a encargo do Estado.

O decisum recorrido julgou o pedido para o fim de condenar o Estado de Santa Catarina a eximir os imigrantes hipossuficientes, residentes na Comarca de Chapecó, do pagamento de emolumentos de traduções juramentadas, cujo custeio ficará a encargo do Estado, cabendo a cada imigrante abrangido por esta ação demonstrar a sua condição de hipossuficiência financeira para que se beneficie dos efeitos desta decisão.

Irresignado, agitou o apelante a preliminar de competência absoluta da Justiça Federal, pois compete à União estabelecer a política de migrantes. Além disso, dessa incompetência decorreria a ilegitimidade ativa do Ministério Público Estadual. Nada obstante, também é parte ilegítima passiva o Estado de Santa Catarina, pois o serviço de tradução juramentada compete à Junta Comercial do Estado - JUCESC. No tocante ao mérito, verbera que o tradutor juramentado não tem relação direta com o Estado, não possuindo vínculo estatutário, devendo ser remunerados pelo Estado. Nesse caso, como não há como obrigar o aludido tradutor a deixar de cobrar emolumentos daquelas pessoas, de modo que a sentença é, no ponto, inexequível.

Nada obstante, verberou, ainda, que: a) o serviço de tradução juramentada não se encontra arrolado entre os atos necessários ao exercício da cidadania; b) a permanecer a isenção na forma concedida na sentença, todo e qualquer requerimento de tradução juramentada feito por imigrante hipossuficiente seria isento de custo, independentemente do teor e da natureza do documento a ser traduzido e bem assim da finalidade para a qual será usada a documentação traduzida, ainda que não tenha qualquer relação com garantias individuais; c) a via adequada seria o mandado de injunção; d) a isenção concedida apenas no âmbito do Município ofende o princípio da isonomia; e) a gratuidade da tradução de documento é expressamente condicionada aos termos de lei ordinária específica; f) não é possível conceder tal direito a estrangeiro quando o brasileiro nato ou naturalizado não o possui.

Ao final, pugnou pelo acolhimento das preliminares suscitadas e, no mérito, pela improcedência dos pedidos.

Em sede de contrarrazões, o apelado pugnou pela manutenção do decisum.

A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. César Augusto Grubba, manifestou-se pelo desprovimento do apelo.

Este é o relatório.

VOTO

Cuida-se de apelação cível interposta pelo Estado de Santa Catarina contra sentença que, nos autos da ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual, condenou o apelante a eximir os imigrantes hipossuficientes, residentes na Comarca de Chapecó, do pagamento de emolumentos de traduções juramentadas, cujo custeio ficará a encargo do Estado, cabendo a cada imigrante abrangido por esta ação demonstrar a sua condição de hipossuficiência financeira para que se beneficie dos efeitos desta decisão.

O apelante agitou preliminares, urgindo examiná-las conjuntamente com o mérito, pois se confundem.

Pois bem.

REFLEXÕES FILÓFICAS NECESSÁRIAS

Antes de examinar o pedido emergencial, é preciso lançar mão de alguma dose de reflexão sobre o tema, que é de uma atualidade intrigante em nível global e local, pelo ressurgimento da xenofobia, por exemplo, em nome de um ultranacionalismo conservador. Aqui, evidentemente não há espaço para esse discurso jurídico e acadêmico, já que estamos em sede de exame de tutela provisória, posto que em substituição do magistrado singular, no exame do pedido urgente. De toda sorte, é inadiável rememorar algumas lições básicas acerca da finalidade do Estado e de sua missão precípua, as quais, pensa-se, é necessário sublinhar no cenário brasileiro atual na tentativa ingente de preservação da democracia como regimente político e do estado de direito numa sociedade pretensamente civilizada.

A história, por vezes, como já pontuado pelo signatário em alguns textos acadêmicos, tem uma atualidade inquietante, principalmente quando se depara a humanidade, como agora, num momento de intensa crise de suas instituições, tendo o desafio ético da construção da democracia como expressão de resistência a toda forma retrocesso, de opressão, de corrupção, de injustiça social, de discriminação, de xenofobia, para a preservação dos valores sofridamente edificados no Estado para a preservação da moralidade social, da dignidade da pessoa humana e para a concretização da cidadania.

Tucídides, grande historiador grego, recolheu fragmentos do discurso de Péricles em louvor póstumo aos bravos atenienses, mortos na Guerra do Peloponeso. Um desses fragmentos chega até os nossos dias com uma atualidade intrigante, como um tributo à liberdade, à igualdade, à democracia, à ética, à civilidade, e também à fraternidade universal. Disse Péricles:

Nosso regime político é a democracia e assim se chama porque busca a utilidade do maior número e não a vantagem de alguns. Todos somos iguais perante a lei, e quando a República outorga honrarias o faz para recompensar virtudes e não para consagrar privilégios. Nossa cidade se acha aberta a todos os homens. Nenhuma lei proíbe nela a entrada de estrangeiros, nem os priva de nossas instituições, nem de nossos espetáculos; nada há em Atenas oculto e permite-se a todos que vejam e aprendam nela o que bem quiserem sem esconder-lhes sequer aquelas coisas, cujo conhecimento possa ser de proveito para os nossos inimigos, porquanto confiamos para vencer, não em preparativos misteriosos, nem em ardis e estratagemas, senão em nosso valor e em nossa inteligência.

Com efeito, o signatário tem defendido, com alguma ênfase, sempre que possível, que o conjunto de Leis e atos normativos que viabilizam o funcionamento do Estado - e o mantém - está voltado à consecução da felicidade (leia-se bem-estar social na acepção liberal, pragmática e utilitarista americano ou de justiça social, na acepção do Estado Providência).

Ao se remontar a história, ver-se-á que as grandes conquistas humanitárias estão situadas, grande parte delas, em torno desse valor primordial, integrante e indissociável da dignidade da pessoa humana. Não se pode, por tais razões, tratá-la como um aspecto trivial do Direito e da Ciência Política. As sucessivas Declarações de Direitos, no plano internacional, e Leis como o Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, Lei Maria da Penha, o Código Civil - verdadeiro estatuto das relações sociais -, a LINDB, o próprio Código Penal - focado na repressão de crimes sem descurar da necessária ressocialização - todo esse plano normativo volta-se à felicidade (bem-estar social), que na Carta Política Norte Americana está expresso na fórmula "We the People", assim traduzida:

Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranqüilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América.

Essa formulação está muito claramente voltada ao "bem-estar", que não é outra cousa, senão a própria felicidade, esse bem-estar geral que se quis assegurar ao criar todo e qualquer Estado de Direito. Declaração semelhante - quiçá tomada de empréstimo pelo constituinte, consta na Constituição da República Federativa do Brasil. Confira-se o texto, até onde ele importa:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e à justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos (...).

Bem se sabe que o prêambulo não tem força normativa, mas é inegável, ao mesmo tempo, as normas e princípios insertos na Constituição Federal - estes sim dotados da aludida normatividade -- ainda são reflexo direto da declaração registrada pelo Poder Constituinte, instalado a 5 de outubro de 1988.

Jorge Miranda, constitucionalista de escol, destaca duas perspectivas primárias nas quais o Estado deve ser estudado. Observe-se citação direta do próprio autor, porque o disse melhor:

Conhecem-se também as duas perspectivas primárias das quais o Estado pode ser encarado: como Estado-Comunidade e como Estado-poder; como sociedade, de que fazemos parte e em que se exerce um poder para a realização de fins comuns, e como poder político manifestado através de órgãos, serviços e relações de autoridade. Mas estas perspectivas não devem cindir-se, sob pena de se perder a unidade de que depende a subsistência do político; e essa unidade é, para o que aqui interessa, uma unidade jurídica, que resulta de normas jurídicas (MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 2).

O que aqui se vê, no tocante a uma anunciada e incontroversa inação estatal, é o Estado-poder, na percepção de Miranda, dissociar-se...

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