Acórdão Nº 5000804-60.2021.8.24.0014 do Terceira Turma Recursal - Florianópolis (Capital), 06-10-2021

Número do processo5000804-60.2021.8.24.0014
Data06 Outubro 2021
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
Classe processualAPELAÇÃO CRIMINAL
Tipo de documentoAcórdão
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 5000804-60.2021.8.24.0014/SCPROCESSO ORIGINÁRIO: Nº 5001129-06.2019.8.24.0014/SC

RELATOR: Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELADO: EDUARDO BETINCOURT (ACUSADO)

RELATÓRIO

Relatório dispensado (art. 46 da Lei n. 9.099/1995).

VOTO

1. Trato de recurso de Apelação interposto contra sentença que rejeitou a denúncia em que se imputada ao acusado EDUARDO BETINCOURT a prática da infração de posse de drogas para consumo próprio, descrita no art. 28 da Lei n. 11.343/06.

1.1. Postula o Ministério Público, em suma, a reforma do julgado para que seja recebida a denúncia ofertada.

1.2. Contrarrazões pugnando pela manutenção da rejeição.

2. Conheço do recurso, porque próprio e tempestivo.

3. Passo ao julgamento do mérito.

3.1. O discurso matreiro da guerra "contra às drogas" movimenta o que há de mais básico no ser humano: seu desalento constitutivo em busca de segurança. Esse discurso, fomentado ideologicamente, impede o enfrentamento da questão de maneira democrática e não na eterna luta ilusória entre o bem e o mal. Há farta bibliografia devidamente exorcizada1, em especial Carvalho2, Batista (Vera e Nilo), Orlando Zaccone3, Luís Carlos Valois4, Rosilvado Toscano dos Santos Júnior5 e Rosa Del Olmo6. De qualquer forma, no senso comum teórico (Warat) prevalecem as every day theories (Baratta).

A abordagem da questão da drogadição pressupõe que se saiba que o discurso oficial escamoteia o interesse no fomento da droga. Girando o discurso, ou seja, dizendo o que se quer que se acredite, induz-se a população no discurso do "inimigo interno", do "mal", da "cultura do medo", mantidos com inconfessáveis interesses ideológicos.

Com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, para justificação da opressão, precisou-se de um novo inimigo, não mais externo, mas interno7. Nesse contexto, o discurso de almanaque tornou a droga o grande bode expiatório (René Girard), convertendo-se em "todos os males que afligem o mundo contemporâneo porque a própria palavra está funcionando como estereótipo, mais do que como conceito"8. O desconhecido, o estrangeiro9, o mito, o demônio com nova roupagem, materializado pela droga.

É preciso se dar conta de que nas "Drogarias" existem muitas que causam dependência sim, mas não constam da Portaria - que completa o tipo penal em branco da Lei n. 11.343/06. O diferencial é que são proibidas, somente. Não importam os efeitos, mas somente se está na lista10.

Procede, desta forma, o argumento de Del Omo: "O importante, portanto, não parece ser nem a substância nem sua definição, e muito menos sua capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano, mas muito mais o discurso que se constrói em torno dela. Daí o fato de se falar da 'droga', e não das 'drogas'"11.

Assim é que se acresce ao condicionante econômico a consequência ideológica e geopolítica do manejo discursivo do inimigo, capaz de justificar a opressão no mundo da vida12, da forma mais naturalizada possível, fazendo que muitos incautos sejam seduzidos por este discurso, tolerando inclusive a violação da Democracia em nome da internacionalização do combate.

Vera Batista13 assinala:

Não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a atual guerra santa contra as drogas, com a figura do traficante - herege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças. Essa cruzada exige uma ação sem limites, sem restrições, sem padrões regulativos. A droga se converte no grande eixo - moral, religioso, político e étnico - da reconstrução do inimigo interno, ao mesmo tempo que produz verbas para o capitalismo industrial de guerra. Esse modelo bélico produz marcas no poder jurídico, produz a banalização da morte. Os mortos desta guerra têm uma extração social comum: são jovens, negros/índios e são pobres.

Mas não é só.

No caso de porte de substâncias tóxicas não existe crime porque, ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06 é a "integridade física" e não a "incolumidade pública", diante da ausência de transcendência da conduta, e a Constituição da República (art. 3º, inciso I, e art. 5º, inciso X), de cariz "Liberal", declara, como Direito Fundamental, consoante a Teoria Garantista (Ferrajoli), a liberdade da vida privada, bem como a impossibilidade de penalização da autolesão sem efeitos a terceiros14.

Para seu reconhecimento pode-se declarar a nulidade parcial sem redução do texto15 do art. 28 da Lei n. 11.343/06, nos casos de porte de pequenas quantidades para uso próprio, nos quais os usuários devem ser encaminhados para tratamento, se quiserem, e não segregados, dado que o simples aniquilamento da liberdade pouco contribui para o efetivo enfrentamento da questão.

Cumpre recordar a discussão proposta por Rodriguez entre os modelos de Hart e Dworkin16 acerca dos casos difíceis (hard cases), na qual analisa o julgamento de um cidadão que requereu junto à Corte Suprema da Colômbia a autorização para o porte e o consumo de doses pessoais de droga. Após discorrer sobre a textura aberta das normas jurídicas, os problemas da discricionariedade judicial, a partir da proposta de Hart, Rodriguez assevera que a inconstitucionalidade da proibição do porte e uso de...

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