Acórdão Nº 5002187-97.2019.8.24.0061 do Terceira Câmara Criminal, 22-11-2022

Número do processo5002187-97.2019.8.24.0061
Data22 Novembro 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoTerceira Câmara Criminal
Classe processualApelação Criminal
Tipo de documentoAcórdão
Apelação Criminal Nº 5002187-97.2019.8.24.0061/SC

RELATOR: Desembargador LEOPOLDO AUGUSTO BRÜGGEMANN

APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELADO: FRANCIELE LUIS MULLER (RÉU) APELADO: BRENDA APARECIDA PAULO ALDIGOR (RÉU)

RELATÓRIO

Na comarca de São Francisco do Sul, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia contra Franciele Luis Muller e Brenda Aparecida Paulo Aldigor, dando-as como incursas nas sanções do art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, pela prática da conduta assim descrita na inicial acusatória:

Em 11 de dezembro de 2019, por volta de 22h50min, na Avenida Atlântica, próximo à quadra de esportes, Enseada, em São Francisco do Sul/SC, FRANCIELE LUIS MULLER e BRENDA APARECIDA PAULO ALDIGOR traziam consigo, para venda, 17 pedras da droga conhecida como crack, embaladas individualmente, pesando aproximadamente 2g, e 1 porção da droga popularmente conhecida como maconha, pesando aproximadamente 7g, substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência física e psíquica, relacionadas na Portaria n. 344/98 do Ministério da Saúde, estando proibido seu uso e comércio em todo território nacional, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Ainda, em 11 de dezembro de 2019, na residência localizada na Rua Mato Grosso, 325, Enseada, São Francisco do Sul/SC, FRANCIELE LUIS MULLER e BRENDA APARECIDA PAULO ALDIGOR tinham em depósito, para venda, 1 pedra média da droga conhecida como crack, pesando aproximadamente 5g, 3 compridos de ecstasy e 1 porção da droga conhecida como cocaína, pesando aproximadamente 1g, substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência física e psíquica, relacionadas na Portaria n. 344/98 do Ministério da Saúde, estando proibido seu uso e comércio em todo território nacional, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Registra-se que no local foram encontrados um rolo de plástico filme, utilizado para embalar droga, e a quantia de R$ 2.049,00.

[...] (ev.1).

Concluída a instrução do feito, a denúncia foi julgada parcialmente procedente para condenar a acusada Franciele às penas de 5 (cinco) anos de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de 500 (quinhentos) dias-multa, em seu mínimo legal, por infração ao disposto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06. Foi-lhe concedido o direito de recorrer em liberdade. Ainda, para absolver a acusada Brenda da imputação que lhe foi feita, com fulcro no art. 386, VII, do CPP. (ev. 437).

Irresignado, o representante do Ministério Público interpôs recurso de apelação e arguiu, preliminarmente, a validade das provas coletadas na residência de Franciele. No mérito, intentou pela condenação de Brenda pela prática do crime previsto no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06 (ev. 481).

Juntadas as contrarrazões (ev. 487 e 488), ascenderam os autos a esta instância, e a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Exmo. Sr. Dr. Rogério A. da Luz Bertoncini, opinou pelo conhecimento e provimento do recurso interposto (ev. 21).

Este é o relatório.

VOTO

Trata-se de recurso de apelação interposto pela acusação contra decisão que julgou parcialmente procedente a denúncia e condenou a acusada Franciele às sanções previstas no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/2006.

O apelo deve ser conhecido, porquanto presentes os requisitos objetivos e subjetivos de admissibilidade.

Da inviolabilidade de domicílio

Preliminarmente, a acusação busca a validade das provas obtidas no interior da residência de Franciele, porquanto o ingresso decorreu de situação flagrancial.

Com razão.

No contexto que envolve o caso concreto, as acusadas foram abordadas em via pública por conta de sua atitude suspeita.

In casu, os policiais militares Sd. Haccourt e Sd. Marcel estavam praticando atividades físicas na rua em período noturno quando visualizaram as apeladas nas proximidades de uma quadra de esportes, mexendo em algumas telhas que estavam depositadas ao lado da arquibancada desta.

Realizada a abordagem de ambas e iniciada a entrevista pessoal, um usuário se aproximou e solicitou 4 (quatro) pedras de crack às duas. Ao perceber que os indivíduos que estavam conversando com elas eram policiais, o viciado empreendeu fuga.

Todavia, procedidas as buscas nas telhas que Franciele e Brenda estavam mexendo, foram encontradas 17 (dezessete) pedras de crack.

Em seguida, após a chegada da Sd. Caroline, esta realizou busca pessoal nas acusadas e encontrou, homiziada no sutiã de Franciele, 1 (uma) pequena porção de maconha e R$ 39,00 (trinta e nove reais).

Desse modo, diante da evidente situação flagrancial do crime de tráfico de drogas - delito de natureza permanente -, era prescindível autorização judicial para realização de busca e apreensão em domicílio, onde fora encontrado o restante do entorpecente, pelo que as provas decorrentes da referida diligência não estão tomadas de nulidade.

Contudo, sua excelência, assim deliberou quando da prestação da tutela jurisdicional:

[...] Então, tem-se o seguinte cenário: as rés foram encontradas na região da praia com 17 pedras de crack, uma porção de 7g de maconha e dois celulares, e, a partir daí, a ré Franciele teria livremente informado que possuía mais entorpecentes em sua residência e os levado espontaneamente até o local, onde seu irmão autorizou as buscas e os policiais, com o auxílio de sua filha criança, encontraram as demais drogas, dinheiro e plástico utilizado para embalar os entorpecentes.

Os relatos das rés e do irmão são incompatíveis com a autorização para ingresso na residência. Além dessa incompatibilidade, segundo recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (HC 598.051/SP), uma vez afirmado pelos policiais que a ré autorizou a entrada na residência, incumbe àqueles o ônus de comprovar o consentimento espontâneo e livre de coação, por meio de documento assinado pelo réu e testemunhas ou pela gravação em vídeo.

[...]

Como dito, as rés Brenda e Franciele confirmaram que estavam nas proximidades da quadra de esportes da Enseada quando os policiais foram até elas e questionaram sobre o comércio de entorpecentes e que durante a ação, de fato, um usuário se aproximou do grupo pedindo por drogas. Não obstante, a acusada Franciele disse em nenhum momento os policiais perguntaram onde a ré residia, pois já tinham conhecimento em razão de abordagens anteriores, ou se tinha drogas na residência, e também não pediram autorização para entrar no local. Lucas, irmão de Franciele, também negou ter autorizado a entrada na casa, afirmando que os policiais pediram para a filha de Franciele buscar a chave para abrir o portão (eventos 147 e 119).

Na primeira abordagem, as rés foram encontradas com 17 pedras de crack, uma porção de 7g de maconha e dois celulares. Os policiais conheciam a ré Franciele por ser esposa de um masculino preso anteriormente por tráfico de drogas, mas afirmaram que a ré quem informou onde era sua residência, a exceção do policial Haccourt que disse já saber onde ficava a casa e que foram diretamente sem questionar à acusada onde seria. Independentemente da versão exata sobre esse ponto, a verdade é que somente se chegou à residência após a abordagem das rés na quadra de esportes da Enseada, e o ingresso na casa baseou-se unicamente em um suposto consentimento (seja da ré ou de seu irmão) que, como dito, não foi suficientemente comprovado.

Diante do cenário descrito, impossível validar o procedimento de busca domiciliar adotado. Não deixo de considerar o estimável trabalho da Polícia Militar no combate aos crimes na Comarca. Contudo, a inviolabilidade do domicílio é constitucionalmente assegurada (art. 5º, XI) e o precedente do Superior Tribunal de Justiça é claramente um marco na defesa intransigente do direito fundamental pelo Poder Judiciário. Tanto é que ao final foi determinada a comunicação do julgado aos Presidentes dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais.

É impossível sanar o vício de consentimento e há evidente prejuízo às rés, razão pela qual declaro a nulidade da busca domiciliar e das provas obtidas a partir do ingresso na residência, amparado no direito fundamental à inviolabilidade do domicílio (CF, art. 5º, inciso XI). Assim, todas as provas decorrentes do ingresso na residência da ré serão desconsideradas, diante da ilicitude em sua obtenção, quais sejam: a) 5g da substância conhecida como crack, acondicionada individualmente em uma porção; b) 3 comprimidos coloridos; c) 1g da substância conhecida como cocaína, acondicionada individualmente em uma porção; d) 1 rolo de plástico filme e e) R$ 2.049,00 em dinheiro (itens 3, 4, 5, 6 e 8 do auto de apreensão de evento 1, fl. 22, dos autos de APF n. 5002114-28.2019.8.24.0061).

O art. 5º, XI, da Constituição da República ressalva a possibilidade: "XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".

O Supremo Tribunal Federal, em recurso representativo de controvérsia, confirmou a desnecessidade de autorização judicial para a violação domiciliar, nas hipóteses de crimes permanentes. Veja-se:

Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio - art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos - flagrante delito, desastre ou para prestar socorro - a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade...

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