Acórdão Nº 5002435-31.2020.8.24.0028 do Primeira Câmara Criminal, 27-04-2023

Número do processo5002435-31.2020.8.24.0028
Data27 Abril 2023
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoPrimeira Câmara Criminal
Classe processualApelação Criminal
Tipo de documentoAcórdão










Apelação Criminal Nº 5002435-31.2020.8.24.0028/SC



RELATORA: Desembargadora ANA LIA MOURA LISBOA CARNEIRO


APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AUTOR) APELADO: CLENIR REGINA ELIAS (ACUSADO) APELADO: ADEMIR ELIAS (ACUSADO)


RELATÓRIO


Na Vara Criminal da Comarca de Içara, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia em face de ADEMIR ELIAS e CLENIR REGINA ELIAS pelo cometimento, em tese, do crime de apropriação indébita tributária, previsto no inciso II do artigo 2º da Lei 8.137/90, em continuidade delitiva por 48 (quarenta e oito) vezes, nos termos do artigo 71, do Código Penal, conforme constado na exordial acusatória (Evento 01, dos autos originários).
Descreve a denúncia que os denunciados são administradores da empresa Meta Indústria e Comércio de Peças Ltda (CNPJ n. 07.831.244/0001-65 e Inscrição Estadual n. 25.512.825-1), estabelecida na Rod. ICR 359, n. 2510, sala 01, Poço Três, Içara/SC, e, no exercício dessa função, durante os períodos de março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2012, além de todos os meses dos anos de 2013, 2014, 2015, e ainda no mês de janeiro de 2016, deixaram de recolher aos cofres públicos o montante atualizado de R$ 112.392,46 (cento e doze mil trezentos e noventa e dois reais e quarenta e seis centavos), relativos ao imposto de ICMS devidamente cobrado de seus consumidores, conforme declarado à Receita Estadual através do Programa Gerador do Documento de Arrecadação do Simples Nacional Declaratório (PGDAS-D), dando azo à Certidão de Dívida Ativa (CDA) n. 19045809284, que embasou a Noticia de Fato n. 01.2019.21522-8.
Recebida a denúncia e apresentada defesa prévia, sobreveio sentença de absolvição sumária com o seguinte dispositivo (Evento 30, idem):
"[...] Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia e, por consequência, ABSOLVO SUMARIAMENTE o acusado ADEMIR ELIAS e CLENIR REGINA ELIAS, já qualificado, da imputação que lhe foi feita no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, c/c artigo 71, caput, do Código Penal, por 48 vezes, diante da atipicidade da conduta, o que faço com fulcro no art. 397, III, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se (o réu pessoalmente) [...]".
Inconformada, a acusação interpôs recurso de apelação, nos termos do artigo 600, do Código de Processo Penal, pugnando, em suas razões recursais (Evento 43, idem), pela reforma da sentença para reconhecer a tipicidade formal do delito previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90, determinando o regular prosseguimento da ação penal sub judice, com o respectivo ingresso na fase instrutória.
Contrarrazões da defesa pela manutenção incólume da sentença recorrida (Evento 48, idem).
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Humberto Francisco Scharf Vieira que se manifestou pelo conhecimento e provimento do recurso interposto (Evento 13, dos autos recursais).
Este é o relatório

VOTO


Trata-se de recurso de apelação interposto pela acusação em face de sentença proferida pela Vara Criminal da Comarca de Içara que, julgando improcedente a pretensão acusatória, absolveu sumariamente ADEMIR ELIAS e CLENIR REGINA ELIAS quanto à prática do crime de apropriação indébita tributária (artigo 2º, inciso II, c/c artigo 11, da Lei 8.137/90), na forma continuada (por 48 vezes), nos termos do artigo 71, do Código Penal, conforme disposto no artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal.

1. Dos fatos sob recurso.
Conforme consta do incluso caderno processual, Ademir Elias e Clenir Regina Elias, na condição sócios-administradores da pessoa jurídica "Meta Indústria e Comércio de Peças Ltda" (CNPJ n. 07.831.244/0001-65 e Inscrição Estadual n. 25.512.825-1), deixaram de recolher aos cofres públicos, durante os períodos de março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2012, além de todos os meses dos anos de 2013, 2014, 2015, e ainda no mês de janeiro de 2016, o montante atualizado de R$ 112.392,46 (cento e doze mil trezentos e noventa e dois reais e quarenta e seis centavos), relativos ao imposto de ICMS devidamente cobrado de seus consumidores, conforme declarado à Receita Estadual através do Programa Gerador do Documento de Arrecadação do Simples Nacional Declaratório (PGDAS-D), dando azo à inscrição em dívida ativa sob a CDA n. 19045809284.

2. Da admissibilidade.
Presentes os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, conheço do recurso e passo ao exame do pleito recursal.

3. Do mérito recursal.
Da sentença de absolvição sumária extrai-se a seguinte fundamentação (Evento 30, dos autos originários):
"[...] De plano, cumpre analisar se efetivamente a conduta descrita nos autos subordina-se ou não ao mencionado dispositivo legal, ou seja, se o débito de ICMS declarado regularmente pelo réu e não quitado serve para caracterizar o ilícito penal acima descrito.
Inicialmente, cumpre consignar que me parece óbvia a conclusão de que o sujeito passivo a que alude o referido comando legal não pode, certamente, ser o contribuinte, sob pena de, nessa circunstância, estarmos ferindo - sob esse ângulo de interpretação - o axioma que veda a prisão por dívidas no Brasil.
Neste ponto, corroborando com a jurisprudência emanada pela nossa Corte Estadual de Justiça, entendo que "aqui, não se está a punir, no inciso da lei de que se cuida, pura e simplesmente a inadimplência tributária, mas sim a prática de não ser recolhido ao verdadeiro destinatário o valor que o contribuinte cobrou, precisamente para esse fim, de um terceiro." (grifei) (TJSC, Apelação Criminal n. 2011.015884-8, de Brusque, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 09-08-2011).
Assim colocada a questão, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade no preceito legal em comento. Justa me afigura a sanção penal, desde que a sujeito ativo efetivamente cometa a conduta descrita na norma, a qual consiste em deixar de recolher valor de tributo descontado ou cobrado de terceiro.
Por outro lado, não ignoro o posicionamento de que a hipótese em apreço configura crime contra a ordem tributária, ao argumento de que o comerciante (contribuinte de direito) realiza o tipo penal do art. 2°, II, da Lei 8.137/90 ao deixar de recolher ICMS que cobrou do consumidor (que seria um "terceiro"), este apontado como "contribuinte de fato" do imposto.
Todavia, a meu ver, malgrado a importância prática e jurídica desta classificação doutrinária - contribuinte de fato e contribuinte de direito - que, inegavelmente, rende inegáveis repercussões no âmbito do Direito Tributário, refletindo inclusive na questão da repetição do indébito tributário, por exemplo (CTN, art. 166 e STF, Súmula 546), em sede de Direito Penal creio que a matéria deve ser analisada sobre outros e diferentes contornos.
Isso porque, apesar da larga difusão da ideia de que o consumidor é o contribuinte de fato do ICMS, por ser este quem realmente arca com a carga tributária ao final, no particular, entendo que esta realidade não seja suficiente para desprezar a escolha do legislador em eleger o "comerciante" como verdadeiro e único contribuinte do imposto em comento.
Com efeito, dispõe o art. 121 do Código Tributário Nacional que o sujeito passivo da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento do tributo, que, segundo o parágrafo único do mesmo artigo, pode ser denominado contribuinte, aquele que possui relação direta e pessoal com a situação que constitui o fato gerador; ou responsável, cuja obrigação de pagamento decorre de imposição legal, sem que tenha relação direta com o fato gerador.
Ainda, segundo o Código Tributário Nacional (art. 114), o fato gerador da obrigação tributária "é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência".
No tocante ao ICMS, a Lei Complementar n. 87/1996, consoante permissivo constitucional (art. 146, III), dispõe acerca dos preceitos gerais do tributo, competindo aos Estados a regulamentação das disposições especiais. Já em Santa Catarina, é a Lei Estadual n. 10.297 que regula o ICMS no Estado.
Mencionada Lei Estadual prescreve em seu artigo 2º as hipóteses em que o ICMS é devido, de modo que a obrigação tributária surge com a concretização da hipótese legal de incidência - fato gerador -, o qual, segundo o artigo 4º, ocorre quando da saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte. Outrossim, referida lei considera contribuinte do ICMS qualquer pessoa física ou jurídica que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria (art. 8º).
Neste contexto, constata-se que quem realiza a hipótese legal de incidência é o comerciante, uma vez que é ele quem promove a circulação da mercadoria para o consumidor. E ao realizar a operação comercial (fato gerador), o comerciante passa a compor o polo passivo da respectiva obrigação tributária, ao tempo em que surge para ele o dever de pagar o tributo.
Assim, não se pode ignorar tal aspecto da realidade "jurídica" para, sob o pretexto de encontrar um outro contribuinte, dito "de fato", desfigurar a qualidade que a lei conferiu ao comerciante e, por conta dessa interpretação - importada do direito tributário -, tornar possível a conclusão, a meu sentir equivocada, de que é crime a omissão de pagamento, pelo comerciante, do débito de ICMS regularmente declarado.
Essa compreensão, entendo, configura inquestionável afronta ao postulado constitucional da reserva legal, cujo conteúdo, dentre várias...

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