Acórdão Nº 5004368-70.2023.8.24.0016 do Primeira Câmara Criminal, 21-03-2024

Número do processo5004368-70.2023.8.24.0016
Data21 Março 2024
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoPrimeira Câmara Criminal
Classe processualRecurso em Sentido Estrito
Tipo de documentoAcórdão










Recurso em Sentido Estrito Nº 5004368-70.2023.8.24.0016/SC



RELATORA: Desembargadora ANA LIA MOURA LISBOA CARNEIRO


RECORRENTE: CLAUDIA FERNANDA TAVARES (RECORRENTE) RECORRIDO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (RECORRIDO)


RELATÓRIO


No Juízo da 2ª Vara da Comarca de Capinzal/SC, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ofereceu denúncia em face de Cláudia Fernanda Tavares, pela prática, em tese, da infração penal contra a vida prevista no art. 121, § 2º, III e IV, e dos crimes conexos dispostos no art. 211 e art. 299, caput, todos do Código Penal, em razão dos fatos assim narrados na inicial acusatória (Ev. 1.1):
I HOMICÍDIO QUALIFICADO
No dia 14 de novembro de 2022 (segunda-feira), em horário incerto, mas provavelmente entre 11h e 16h30min, na residência localizada na Linha São Braz, interior do Município de Lacerdópolis/SC, nesta Comarca de Capinzal/SC, a denunciada CLÁUDIA FERNANDA TAVARES, dolosamente, ciente da ilicitude e da reprovabilidade de sua conduta, agindo com evidente ânimo homicida, matou Valdemir Hoeckler, seu esposo, utilizando-se de recurso que impossibilitou ou, pelo menos, dificultou sobremaneira a defesa da vítima e, ainda, mediante asfixia e outro meio cruel.
No dia dos fatos, por volta das 9 horas, Valdemir Hoeckler chegou em casa depois de seu trabalho e, após tomar café da manhã, desentendeu-se com Cláudia Fernanda Tavares, sua esposa.
O motivo do desentendimento teria sido o fato de Valdemir não aceitar a ida de Cláudia, junto de suas colegas de trabalho, até uma pousada na cidade de Abdon Batista/SC.
Na sequência, enquanto Valdemir tomava banho, Cláudia arrumou os medicamentos de rotina da vítima, incluindo, de forma dissimulada, 3 (três) comprimidos do medicamento "hemitartarato de zolpidem" (indicado para tratamento de insônia), de 10 mg cada cápsula.
Decidida a ceifar a vida de seu esposo, Cláudia aguardou até Valdemir deitar em seu quarto e entrar em sono profundo e, então, amarrou suas pernas, assim como seus pés e braços, utilizando-se de cordas para imobilizá-lo.
Ato contínuo, Cláudia colocou uma sacola plástica na cabeça de Valdemir, apertando-a com um pedaço de borracha preta compatível com tiras de câmara de ar (utilizadas em pneus), a fim de impedir completamente a passagem de ar.
Enquanto a vítima agonizava na tentativa de salvar sua vida, a denunciada segurou-o firmemente, apertando suas vias aéreas, até o seu desfalecimento e óbito.
O crime foi praticado por recurso que impossibilitou ou, pelo menos, dificultou a defesa da vítima, na medida em que a denunciada, de forma dissimulada, ocultando sua intenção hostil do projeto criminoso, fez com que Valdemir tomasse 3 (três) comprimidos de "hemitartarato de zolpidem", de 10 mg cada cápsula, medicamento que induz fortemente o sono, o que certamente embaraçou, senão impossibilitou, sua reação de defesa.
A denunciada valeu-se, ainda, do emprego de asfixia e outro meio cruel, pois sufocou a vítima com uma sacola plástica e um pedaço de borracha de câmara de ar, após ter amarrado suas mãos e pernas com cordas. A asfixia, por si só, por representar o impedimento da função respiratória, com a consequente falta de oxigênio no sangue do indivíduo, já revela a crueldade e a insensibilidade de seu modo de agir, mas a denunciada foi além, pois, ao imobilizar o corpo nu da vítima com cordas, agiu com brutalidade fora do comum e notável contraste com o mais elementar sentimento de piedade, submetendo a vítima a sofrimento desmedido e desnecessário, tudo sob absoluta ausência de qualquer sentimento humanitário.
II OCULTAÇÃO DE CADÁVER
Entre os dias 14 e 19 de novembro de 2022, na Linha São Braz, interior do Município de Lacerdópolis/SC, nesta Comarca de Capinzal/SC, a denunciada CLÁUDIA FERNANDA TAVARES, dolosamente, ciente da ilicitude e da reprovabilidade de sua conduta, ocultou o cadáver de Valdemir Hoeckler dentro de um freezer horizontal, localizado em uma área de serviço anexa à cozinha da casa onde ambos residiam.
Após consumar o homicídio no dia 14 de novembro de 2022, a denunciada escondeu, dentro do freezer em funcionamento e embaixo de alimentos e bebidas, o corpo de Valdemir Hoeckler, de 1,87m e de aproximadamente 100kg.
Com o objetivo de ocultar o cadáver das pessoas que estavam procurando pela vítima, até então desaparecida, a denunciada chaveou a porta direita do freezer e colocou objetos (como toalhas e vasos) sobre o equipamento.
Após a retirada dos alimentos e bebidas do freezer, o cadáver da vítima foi encontrado "coberto por um lençol azul, amarrado com cordas e pedaços de pano, e com uma sacola plástica na cabeça amarrada com uma borracha preta compatível com tiras de câmara de ar (utilizadas em pneus)", conforme laudo pericial n. 2022.23.02232.22.003-942
O referido exame técnico ainda constatou que "O cadáver encontrava-se íntegro, sem vestes, deitado em decúbito lateral direito, em posição fetal com os braços acima da cabeça" e que "Não foi possível estimar o lapso temporal desde sua morte, pois encontrava-se completamente congelado, tendo sido conservado pela baixa temperatura, retardando os sinais de putrefação".
Fez-se necessário, inclusive, utilizar água morna para a retirada do cadáver do interior do freezer, "pois partes do corpo estavam unidas às paredes do equipamento devido ao congelamento".
O corpo somente foi localizado no dia 19 de novembro de 2022, quando Ivonei Coeli, policial militar, e João Paulo Bucco, amigo da vítima, desconfiaram da conduta da denunciada, abriram o freezer e ali encontraram o cadáver de Valdemir Hoeckler.
Durante o período de ocultação do cadáver, a denunciada recebeu equipes de busca em sua residência, servindo-lhes bebidas do próprio freezer em que armazenado o corpo de seu esposo, demonstrando malícia e frieza na sua conduta. Cabe ressaltar, também, que auxiliaram na procura pela vítima policiais civis e militares, bombeiros e até mesmo inúmeros vizinhos e amigos do casal, não tendo Cláudia se solidarizado e compadecido com tal situação. Pelo contrário, escondeu de todos e por quase uma semana a morte de seu esposo e a ocultação do cadáver.
III FALSIDADE IDEOLÓGICA
No dia 15 de novembro de 2022, às 9h23min, na Delegacia de Polícia do Município de Lacerdópolis/SC, nesta Comarca de Capinzal/SC, a denunciada CLÁUDIA FERNANDA TAVARES, dolosamente, ciente da ilicitude e da reprovabilidade de sua conduta, fez inserir, em documento público, declaração falsa, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.
Um dia depois de ter praticado o crime de homicídio contra Valdemir Hoeckler, seu esposo, a denunciada CLÁUDIA FERNANDA TAVARES, imbuída de má-fé e objetivando ludibriar as autoridades policiais, simulou o desconhecimento do paradeiro da vítima, com o registro de boletim de ocorrência sobre o seu desaparecimento.
Em razão da falsa notícia de desaparecimento, diversos policiais civis e militares, bombeiros e até mesmo inúmeros vizinhos e amigos, procuraram, incessantemente, pela vítima por quase uma semana, até a descoberta do cadáver dentro do freezer da residência do casal.
Com a declaração falsa, a denunciada alterou a verdade sobre a morte da vítima e a ocultação de seu cadáver, fatos juridicamente relevantes para a investigação criminal.
Encerrada a instrução processual e apresentadas alegações finais pelas partes, sobreveio decisão de pronúncia, que admitiu a pretensão acusatória, para submeter a acusada a julgamento Popular pelo suposto cometimento do crime de homicídio duplamente qualificado, e dos delitos conexos de ocultação de cadáver e falsidade ideológica, nos termos descritos na peça vestibular. A deliberação contou com o seguinte dispositivo (Ev. 414.1):
À vista do exposto, julgo ADMISSÍVEL a denúncia e, em consequência PRONUNCIO CLÁUDIA FERNANDA TAVARES, qualificada nos autos, pela prática dos delitos previstos no artigo 121, §2º, incisos III e IV, artigo 211 e, artigo 299, caput, todos do Código Penal, em concurso material (artigo 69, caput, do Código Penal), contra a vítima Valdemir Hoeckler, para que seja submetida a julgamento pelo Tribunal do Júri Popular, nos termos do artigo 413 do Código de Processo Penal.
Inconformada com o decisum, a acusada interpôs o presente recurso em sentido estrito. Nas suas razões recursais pretende, em suma: a) a impronúncia por ausência de provas da materialidade delitiva, indicando que a morte da vítima decorreu de causas naturais; b) o afastamento da qualificadora da asfixia, igualmente por inexistência de elementos probatórios seguros acerca do emprego de tal meio para provocar o óbito da vítima; e c) o decote da qualificadora do recurso que dificultou a defesa, vez que a ação criminosa não pode ser tida como surpresa ou inesperada, já que a acusada era vítima constante de violência doméstica, física, financeira, psíquica e sexual (Ev. 6.1).
Em contrarrazões, o ministério público e o assistente de acusação manifestaram-se pela manutenção incólume da decisão recorrida (Ev. 10.1 e 13.1).
Após a manutenção da decisão hostilizada pelo Juízo de origem (Ev. 15.1), lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Dr. Procurador Pedro Sérgio Steil, que se manifestou pelo conhecimento e desprovimento do recurso (Ev. 12.1).
Este é o relatório.


VOTO


Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto por Cláudia Fernanda Tavares contra decisão do Juízo da 2ª Vara da Comarca de Capinzal que, ao julgar admissível o pedido formulado na denúncia, prolatou sentença de pronúncia, submetendo-a a julgamento perante o Conselho de Sentença em razão do suposto cometimento da infração penal contra a vida prevista no art. 121, § 2º, III e IV, e dos crimes conexos dispostos no art. 211 e art. 299, caput, todos do Código Penal.

1. Admissibilidade
O recurso interposto preenche integralmente os pressupostos de admissibilidade, motivo pelo comporta conhecimento.

2. Mérito
2.1 Da...

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