Acórdão Nº 5015084-27.2022.8.24.0038 do Segunda Câmara Criminal, 24-05-2022

Número do processo5015084-27.2022.8.24.0038
Data24 Maio 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoSegunda Câmara Criminal
Classe processualAgravo de Execução Penal
Tipo de documentoAcórdão
Agravo de Execução Penal Nº 5015084-27.2022.8.24.0038/SC

RELATOR: Desembargador NORIVAL ACÁCIO ENGEL

AGRAVANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA (AGRAVANTE) AGRAVADO: FABRICIO DOS SANTOS (AGRAVADO) ADVOGADO: CARLOS ROBERTO BORGES (OAB SC061051)

RELATÓRIO

Trata-se de Agravo em Execução Penal interposto pelo Ministério Público, em face da decisão proferida pelo Juiz de Direito da 3ª Vara Criminal da Comarca de Joinville, ao deferir pedido de alteração da fração para progressão de regime do Apenado Fabricio dos Santos, em relação ao delito de tráfico de drogas, para 20%, por considerar que, diante das alterações promovidas pela Lei 13.964/19, a figura típica não pode ser equiparada a hedionda (Seq. 90.1 do PEC no SEEU).

Em suas Razões (Evento 1 dos autos de origem), o Agravante sustenta, em síntese, que a equiparação do delito de tráfico de entorpecentes ao rol dos crimes hediondos se dá pela própria Constituição Federal, não podendo ser afastada por alterações promovidas pela Lei 13.964/19.

Aponta, nesse sentido, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, bem como o entendimento unânime das Câmaras Criminais desta Corte de Justiça no sentido da manutenção da equiparação a hediondo do crime de tráfico de drogas.

Requer, assim, a reforma da decisão agravada "que afastou o caráter de equiparado a hediondo ao crime de tráfico de drogas" (Evento 1 dos autos de origem).

Apresentadas as Contrarrazões (Evento 4 do processo de origem), e mantida a Decisão por seus próprios fundamentos (Evento 6 daquele feito), os autos ascenderam ao Segundo Grau, oportunidade em que a Douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer de lavra do Exmo. Sr. Dr. Gilberto Callado de Oliveira, manifestou-se pelo conhecimento e provimento da insurgência (Evento 7).

Este é o relatório.

VOTO

Presentes os pressupostos de admissibilidade, o recurso deve ser conhecido.

Sustenta o Ministério Público, em síntese, que o delito de tráfico de entorpecentes possui natureza equiparada a hedionda por previsão constitucional, não sofrendo alteração pela Lei 13.964/2019.

O pleito, adianta-se, merece provimento. Vejamos.

Compulsando os autos de origem, observa-se que o reeducando Fabrício dos Santos atualmente cumpre pena privativa de liberdade de 24 (vinte e quatro anos), 11 (onze) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, pela prática de delitos de tráfico de drogas, associação para o mesmo fim e participação em organização criminosa, tendo cumprido, de acordo com as informações do PEC no SEEU, aproximadamente 49% da reprimenda imposta.

Ao analisar o pedido defensivo de afastamento da hediondez do delito de tráfico de drogas em razão das alterações promovidas pela Lei 13.964/19, o Magistrado de origem o deferiu pelos seguintes fundamentos:

[...] No caso dos autos, o nó górdio da quaestio está na natureza do crime de tráfico (art.33, caput, da Lei n. 11.343/06), se equiparado ou não ao crime hediondo. E isso porque, conforme a resposta a ser dada, as frações para progressão de regime se alteram radicalmente.

Pois bem, segundo lembra Luciana Boiteux (Lemos, Clécio. et al. Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014), "A partir da Constituição de 1988 constata-se um grande paradoxo na política criminal, pois ao mesmo tempo que houve grandes conquistas, como o reconhecimento de direitos e garantias individuais, inclusive dos presos, foram também previstos indicativos repressivos de grande impacto no texto constitucional, tal como os crimes hediondos, posteriormente definidos pela Lei (8.072/1990), ao qual o tráfico de drogas foi equiparado expressamente (...)" (pág.87).

Para a doutrinadora, cujo olhar crítico é necessário ressaltar, com o crescente encarceramento em razão do tráfico, há um aumento de gastos penitenciários e humanos, com maior número de pessoas submetidas a péssimas condições de vida carcerária, in verbis: "Trata-se de um custo muito alto arcado pelo Estado brasileiro, que vem demonstrando grandes dificuldades para melhorar as condições de suas prisões, o que já levou, inclusive, a denúncia perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com relação às terríveis condições da Penitenciária conhecida como 'Urso Branco', no Acre (...)"(pags.98-99).

Pontualmente, como anotado, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIII, estabeleceu que "a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos."

Como se vê, a Constituição apenas apontou o tráfico como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Ela não o incluiu, porém, como crime hediondo, deixando em aberto a possibilidade de sua equiparação. Fosse contrária a intenção o constituinte teria feito constar expressamente a equiparação.

Destarte, foi apenas com a Lei dos Crimes Hediondos (8.072/1990), ainda em vigor, apesar de bastante alterada, que o crime de tráfico passou a ser considerado equiparado aos crimes hediondos, e isso pelas consequências idênticas a que restou incluído e não pela classificação, esta, até hoje inexistente.

O artigo 1º, da referida lei, aponta quais são os crimes considerados hediondos, como por exemplo o homicídio. No rol não está o tráfico de drogas, mas ele aparece, porém, expresso no caput do artigo 2º (Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de...), e o §2º o equipara, pelos efeitos: "A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal)."

Portanto, sem o artigo 2º, da Lei dos Crimes Hediondos, especificamente o seu 2º parágrafo, não haveria efeito algum e o crime de tráfico continuaria a ter status comum, inclusive e especialmente no respeitante à progressão de regime.

Entretanto, e essa a atual realidade, o dispositivo foi revogado pela Pacote Anticrime (Lei n.13.964/19). Independentemente da atecnia, contradição e ausência de fundamento científico, ao tratar da execução das penas, o referido diploma modificou o artigo 112 da Lei n.7.210/84 (Lei de Execução Penal), que assim passou a viger:

[...]

Resta nítido, portanto, que o novo dispositivo em nenhum momento colocou o tráfico de drogas como equiparado ao crime hediondo, aliás, em nenhum momento o dispositivo se referiu ao tráfico de drogas, como até então toda a legislação vinha fazendo.

Certo é que há posicionamentos no sentido de que o atual artigo 112 da LEP se aplica ao tráfico de drogas, em uma interpretação mais flexível dos dispositivos legais.

Ocorre que, pelos princípios da legalidade e da proibição de indeterminação da lei penal (taxatividade da norma penal) ( art. 5º, inciso XXXIX, da CF), não havendo mais na lei a especificação sobre quais seriam os crimes equiparados a hediondos, como antes do "Pacote Anticrime" acontecia, resta obstaculizada a aplicação extensiva e prejudicial ao apenado dos percentuais atuais previstos aos crimes hediondos para a progressão de regime.

É a lei que considerará o tráfico como hediondo. Com a revogação do art.2º, §2º, da Lei dos Crimes Hediondos, não há mais lei que assim o aponte!

Inclusive, nessa toada, o Superior Tribunal de Justiça já estabeleceu a tese n. 28: "Jurisprudência em Teses - ed. 131 de 23/08/2019", consignando que o crime de associação para o tráfico de entorpecentes (art.35 da Lei n.11.343/2006) não figura no rol taxativo de crimes hediondos ou de delitos a eles equiparados. Com isso, o STJ já deixou claro que não aceita a inclusão de crimes no rol dos hediondos ou a eles equiparado sem expressa taxação.

Relembre-se que o princípio da legalidade está previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso - art. 11); nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras 37 e 39; no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU(art. 9º, item 1); na Convenção Americana de Direitos Humanos ( art. 9º); no Conjunto de Princípios da ONU para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão(Princípio 2).

Para o brilhante professor Juarez Cirino dos Santos, "O princípio da legalidade é o mais importante instrumento constitucional de proteção individual no moderno Estado Democrático de Direito, porque proíbe (a) a retroatividade como criminalização ou agravação da pena de fato anterior, (b) o costume como fundamento ou agravação de crimes e penas, (c) a analogia como método de criminalização ou de punição de condutas e (d) a indeterminação dos tipos legais e das sanções penais (art.5º, XI,CR)"(DIREITO PENAL: parte geral. 3ª edição. Curitiba: Lumen Juris, pág.20).

Além do mais, mormente em sede de sistema de justiça criminal e execução penal, em contraposição à proscrita analogia in malam partem, é imperioso que se leve em consideração o princípio pro homine, trazido no art. 29, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), a saber: "Artigo 29. Normas de interpretação - Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de:[...] b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; [...]".

Sobre o tema, Luiz Flávio Gomes destaca que "por força do princípio interpretativo pro homine cabe enfatizar: quando se tratar de normas que asseguram um direito...

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