Acórdão Nº 5034560-68.2022.8.24.0000 do Quinta Câmara Criminal, 18-08-2022

Número do processo5034560-68.2022.8.24.0000
Data18 Agosto 2022
Tribunal de OrigemTribunal de Justiça de Santa Catarina
ÓrgãoQuinta Câmara Criminal
Classe processualHabeas Corpus Criminal
Tipo de documentoAcórdão
Habeas Corpus Criminal Nº 5034560-68.2022.8.24.0000/SC

RELATOR: Desembargador ANTÔNIO ZOLDAN DA VEIGA

REPRESENTANTE LEGAL DO PACIENTE/IMPETRANTE: GABRIELA VOLLSTEDT BASTOS VILLAS BOAS (Impetrante do H.C) REPRESENTANTE LEGAL DO PACIENTE/IMPETRANTE: ADMAR GONZAGA NETO (Impetrante do H.C) REPRESENTANTE LEGAL DO PACIENTE/IMPETRANTE: MARCELLO DIAS DE PAULA (Impetrante do H.C) PACIENTE/IMPETRANTE: CAIO CESAR DE SOUZA (Paciente do H.C) IMPETRADO: Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Palhoça

RELATÓRIO

Os advogados Admar Gonzaga Neto, Gabriela Vollstedt Bastos Villas Boas e Marcello Dias de Paula impetraram habeas corpus em favor de Caio Cesar de Souza, contra ato atribuído ao Juízo da 2ª Vara Criminal da comarca de Palhoça que, nos autos da Ação Penal n. 0900140-98.2018.8.24.0045, indeferiu pedido de reconhecimento de nulidade das provas que lastrearam a denúncia.

Alegaram que a ação penal é resultado da instauração, de ofício, de Procedimento Investigatório Criminal pelo Ministério Público, a partir de informações obtidas mediante acesso direto ao Sistema de Administração Tributário - SAT. Isso porque a Promotoria de Justiça, através de acesso ao SAT, por meio de login e senha próprios, tomou conhecimento da existência das Notificações Fiscais nº 126030057213 e 126030057230 contra o paciente, e requisitou à Fazenda Estadual os documentos que as instruíam, para, então, denunciar Caio Cesar de Souza e Jayson Passos Vieira.

Afirmaram que o acesso direto ao Sistema de Administração Tributária pela Promotoria de Justiça foi confirmado, em audiência, "pela servidora Bruna Medeiro das Neves, que à época ocupava o cargo de assistente na 20ª Promotoria de Justiça de Florianópolis, responsável por realizar o procedimento investigatório da ação penal movida em desfavor do paciente. No depoimento, [...] Bruna confessa que efetivou o login no SAT, em login próprio, sem qualquer autorização judicial ou prévio ofício expedido pela Secretaria de Estado da Fazenda".

Asseveraram que "em momento algum ou sobre pretexto válido, o Ministério Público requereu autorização judicial para acessar os referidos documentos fiscais, em face dos quais os envolvidos deveriam ter respeitado o necessário sigilo, em obediência ao art. 5º, inc. X, da Constituição Federal".

Destacaram precedente recente da 3ª Seção do STJ (RHC 83.233/SP), que estabeleceu não ser autorizado ao Ministério Público requerer ou obter acesso a dados fiscais, sem permissão judicial, bem como pontou a existência de precedente do STF sobre a matéria (HC n. 201.965/RJ).

Frisaram, também, que a ilegalidade não encontra óbice no julgamento do Tema 990 do STF, porquanto este "assentou que o compartilhamento de dados pela Receita Federal, de ofício, ao Ministério Público, para fins de instrução criminal, não exige autorização judicial, ao contrário da requisição feita por iniciativa do Ministério Público à Receita Federal".

Diante disso, alegaram a ilegalidade das provas colhidas pelo Ministério Público sem prévia autorização judicial, pois resultantes de quebra de sigilo fiscal do paciente.

Nesses termos, pugnaram "pela concessão da presente ordem de habeas corpus em favor do paciente, Caio César de Souza, já qualificado nos autos, para o trancamento da ação penal nº 0900140-98.2018.8.24.004, em trâmite perante a 2ª Vara Criminal da Comarca de Palhoça/SC, tendo em vista que foram utilizadas provas ilícitas, protegidas por sigilo fiscal" (doc. 2).

Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Excelentíssimo Senhor Doutor Jorge Orofino da Luz Fontes, que se manifestou pelo conhecimento do writ e pela denegação da ordem (doc. 22).

É o relatório.

VOTO

A ação de habeas corpus preenche os requisitos legais e, portanto, merece conhecimento.

A discussão levantada pelos impetrantes tem sido realizada de maneira ampla pelos tribunais superiores brasileiros, inclusive havendo dois julgados de repercussão nacional que servirão de base para a análise das teses defensivas, quais sejam, o Recurso Extraordinário n. 1.055.941/SP, julgado pelo plenário do STF, e o o Recurso em Habeas Corpus n. 83.233/SP, julgado pela 3ª Seção do STJ.

Em síntese, entendo que os precedentes são complementares e ambos necessários para discutir a tese de quebra de sigilo fiscal pelo compartilhamento de dados entre a fazenda e os órgãos de persecução penal proposta pela defesa.

A respeito da matéria, o julgamento do RE n. 1.055.941/SP, em sede de repercussão geral, estabeleceu as seguintes teses:

1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil - em que se define o lançamento do tributo - com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional;

2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB referido no item anterior deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

O voto do Excelentíssimo Ministro Dias Toffoli faz um apanhado de situações vividas diuturnamente nestas instituições, para então concluir - e aqui reduzirei o objeto de análise às considerações feitas a respeito da Receita Federal - pela constitucionalidade do envio da competente representação fiscal para fins penais aos órgãos de persecução penal, instruída com os documentos estritamente necessários, excluídos documentos sensíveis, protegidos por sigilo bancário e fiscal, cuja quebra deverá ser requerida judicialmente.

Isso porque, conforme observou o Ministro Relator:

As diligências adotadas nos autos permitiram verificar que, como regra, a Secretaria da Receita Federal repassa ao Ministério Público Federal, na RFFP, a cópia integral dos autos do procedimento ou processo administrativo fiscal (PAF), dos quais podem constar dados sobre movimentações financeiras do sujeito passivo e, principalmente, de terceiros, os quais podem estar sob a proteção do sigilo fiscal (art. 5º, § 5º, LC nº 105/01) e ser estranhos aos fatos criminosos descritos na representação.

Ou seja, na prática hodierna, a RFFP formalizada no âmbito da administração tributária federal é, costumeiramente, instruída com a cópia integral de todos os elementos (atos, termos, documentos, livros, registros etc.) que compõem os autos da respectiva ação fiscal.[...]Uma coisa é a representação fiscal para fins penais, que pode descrever todas as informações necessárias relacionadas com o fato suspeito ou configurador, em tese, de delito (por exemplo, menção discriminada dos valores creditados na conta corrente do sujeito passivo em determinadas datas); outra coisa é o encaminhamento, na íntegra, de extratos bancários e declarações de imposto de renda, que são documentos sensíveis do sujeito passivo (e que, ressalte-se, contêm informações de terceiros), relativos a sua privacidade e intimidade, cujo conteúdo ultrapassa os elementos necessários para a caracterização do ilícito tributário justificador do envio da representação.

Referido julgamento, portanto, além de ter fomentado intenso debate sobre o sigilo fiscal e bancário, concluiu que a praxe administrativa não vem observando a diferenciação entre documentos submetidos à reserva de jurisdição e documentos que podem ser fornecidos ao Estado persecutório sem prévia autorização judicial.

Isso porque o procedimento administrativo de apuração do crédito tributário é encaminhado ao Ministério Público em sua integralidade, a despeito da existência de documentação sensível, inclusive de terceiros, o que restou limitado pela Corte Suprema no aludido julgamento, através da fixação das teses citadas alhures.

Na esfera da Secretaria de Estado da Fazenda, em Santa Catarina, a experiência denota que não há distinção quanto ao modo de atuação observado pelo Ministro Dias Toffoli no âmbito da Receita Federal.

Em geral, o processo criminal para apuração de delitos contra a ordem tributária é instruído com a integralidade do processo administrativo, não havendo, exatamente, um relatório ou uma representação formal quanto à ocorrência de crime, o que muitas vezes é simplesmente substituído por um ofício encaminhado ao Ministério Público, para abertura do Procedimento Investigatório Criminal.

A leitura feita pelo STF, embora não tenha reconhecido a inconstitucionalidade do compartilhamento de informações pela Receita Federal com órgãos de persecução penal, estabeleceu limites quanto aos documentos que podem ser apresentados de ofício.

É nesse ponto que o julgamento do RHC n. 83.233/SP, pela 3ª Seção do STJ, complementa o julgamento realizado pelo STF, porquanto este último não chegou a se aprofundar quanto à atuação, de ofício, do Ministério Público, ao requisitar informações às receitas estaduais e federais, por exemplo, tomando conhecimento de documentos protegidos por sigilo sem prévia autorização judicial.

O precedente do STF apenas estabeleceu a legalidade do compartilhamento feito pela RFB e pela UIF com os órgãos de persecução penal, mas não chegou a esclarecer se a constitucionalidade também se estenderia às requisições de dados e informações, pelo Ministério Público, aos órgãos de fiscalização, sem autorização judicial anterior.

É sobre esse aspecto que o STJ se manifestou no julgamento...

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