Advocacia e OAB: a defesa da cidadania no Brasil/Lawyership and the Order of Attorneys of Brazil: the defense of civil rights in Brazil.

AutorSimonetti, José Alberto
CargoARTIGO

Introdução

"Cidadania: por que não?" é a pergunta que Segato (2007) desenvolve em seus argumentos. Segundo ela, para terem visibilidade na arena pública, bem como para serem comprendidos nos termos da lei, grupos historicamente discriminados precisam se apresentar frente ao Estado a partir de um processo de assimilação em termos categóricos que foram gerados como instrumentos de discriminação e de opressão. A autora propõe a formação nacional da alteridade, em que a pluralidade seja a fonte principal do discurso no país, de modo que a linguagem institucional possa acolher a todos.

Ao pensar sobre o tema de acesso à Justiça por meio do caminho da pluralidade, Raymundo Faoro (2001) discute sobre os reflexos coloniais da herança portuguesa. O autor aponta para uma condição de fracasso do Estado brasileiro contemporâneo na efetivação de sua administração e na transformação do poder público em um cenário real, fático, para os cidadãos que fazem parte da sociedade nacional.

É nesse contexto que a advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) se dispõem a movimentar categorias que organizam e produzem realidades jurídicas, a partir da pluralidade, em que a inclusão ocorra em patamares nivelados dos sujeitos de direitos - indígenas, negros, LGBTQIA+ (1), mulheres em situação de violência, entre outros. O objetivo dessa organização é que os referidos sujeitos se apresentem, nos termos da Justiça, a partir de suas diferenças e particularidades tanto em relação à hegemonia, como dentro dos próprios grupos dos quais fazem parte.

A atuação da advocacia e da OAB, no labor diário no Poder Judiciário e demais instituições, busca preservar as múltiplas formas de ser Outro. Isso se demonstrou na recente atuação da Ordem pelo cumprimento do plano vacinal da Covid-19 para os povos indígenas. A esse respeito, a liderança indígena Ailton Krenak (2021, n.p.) apontou:

A iniciativa mais importante no sentido de proteger a vida dos povos indígenas na pandemia foi quando conseguimos que o STF determinasse que o SUS mantivesse os distritos sanitários indígenas. Também asseguramos vacinas para os índios aldeados, para que eles fossem vacinados ainda no início de 2021. 80% de toda a população indígena no Brasil receberam as doses. Essa foi uma primeira ação protetiva importante. Apesar disso, nós não estamos andando por aí, porque sabemos que os demais brasileiros também precisam receber a vacina. Enquanto não tivermos pelo menos 70% da população vacinada, temos que manter os cuidados. Os indígenas estão mantendo a preocupação, porque já viveram outros genocídios e extermínios. Esse caso emblemático atravessa a história da OAB em diversos contextos centrais para o país. O objetivo do presente artigo é refletir, a partir da atuação da advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sobre acesso à Justiça, cidadania, direitos humanos e democracia brasileira, com amparo na revisão de literatura sobre o tema. De forma específica, buscou-se identificar a atuação desses dois atores sociais em benefício da cidadania, desde seu histórico constitucional; e determinar os sentidos criados, no marco da atuação da advocacia e da OAB, para o acesso à Justiça, direitos humanos e democracia. O argumento principal é de que a advocacia e a OAB, por meio de suas atuações, produzem novos sentidos sobre o acesso à Justiça, cidadania e democracia.

Atuação direcionada em benefício da cidadania

O conceito de cidadania atravessou diversas mutações ao longo da história social e econômica do Ocidente (CÂMARA NETO; REZENDE FI-LHO, 2001). O termo cidadania indica a posição e a possibilidade de o indivíduo exercer direitos e deveres junto ao Estado, como membro ativo. A ideia remete às civilizações greco-romanas que definiram, primariamente, a noção de cidadãos que compunham a polis ou cidade-Estado (DALLARI, 1998; SIQUEIRA JR., 2010).

A cidadania possui relação direta com a democracia, pois ela habilita o cidadão a experienciar a vida efetiva do Estado. Ela "transforma o indivíduo em elemento integrante do Estado, na medida em que o legitima como sujeito político, reconhecendo o exercício de direitos em face do Estado" (SIQUEIRA JR., 2010, p. 245).

Na primeira metade do século XX, deixou-se de lado o modelo de liberdade individualista em prol da centralização do direito e do Estado como garantidores das possibilidades materiais de igualdade, educação, saúde, direitos sociais, soberania, direito ao voto, entre outros direitos fundamentais que consolidam o exercício pleno da cidadania. Neste percurso conjuntural e conceitual, a Ordem dos Advogados do Brasil foi um ator central na construção da ideia de cidadania percebida atualmente. Decerto, a história da OAB é fundamental para a compreensão do sentido de cidadania brasileira.

Por meio do Decreto Presidencial n. 19.408, a Ordem dos Advogados do Brasil foi fundada no dia 18 de novembro de 1930. Em 90 anos de história, protagonizou momentos centrais da história da nação: participou de duas Constituintes, combateu a ditadura militar, envolveu-se nas Diretas Já, entre outros grandes marcos do cenário nacional. A Ordem teve um papel fundamental na defesa da anistia e da abertura política (PORTO, 2009). Em suma, a OAB liderou a ideia de democracia e dos direitos humanos em nossa civilização.

Durante o período ditatorial, a OAB deu incontáveis demonstrações de seu compromisso com os direitos humanos e, historicamente, honrou essa missão. Com a redemocratização, a Constituição de 1988 redesenhou os sentidos de cidadania para além do direito ao voto (BRASIL, 1988). Sempre que a sociedade se viu em conflito com as instituições do Estado, a Ordem interviu. Com sua vigilância democrática transversal, a OAB age como um antitérmico na regulação, no controle e no diálogo entre os cidadãos e o Estado. Sempre com serenidade, pois esta é uma virtude dos fortes, como diz o grande Norberto Bobbio (2002).

Nesse movimento, o advogado atua como um mediador entre o cidadão e o poder Estatal. É por esta razão que a Constituição preleciona a primordialidade da advocacia na administração da justiça. As diferenças entre as partes afetam a afirmação e reivindicação de direitos. Deste modo, o caráter indispensável da advocacia está ligado à função pública e às prerrogativas profissionais dela decorrentes. Embora não imbuído de autoridade estatal, o advogado é titular de múnus público mesmo quando atua em ministério privado (HAVES, 2018).

A livre advocacia é elemento inerente à cidadania por constituir função substancial ao bom funcionamento e à preservação do Estado democrático de direito (BERTOLUCI, 2018). A história ensina que o direito de defesa é o principal recurso contra as investidas autoritárias do Estado: não por acaso, o nascedouro das constituições modernas é o habeas corpus, ação primordial de defesa do indivíduo. A observância ao respeito à dignidade humana passa, necessariamente, pelo desenvolvimento de um processo jurisdicional democrático.

O art. 50, inciso LIV, da Constituição de 1988, assegura, expressamente, o devido processo legal, ao afirmar que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". Neste sentido, o conteúdo básico de um procedimento que materializa o devido processo necessitaria, no mínimo, atender aos princípios: do contraditório e a ampla defesa (2) (art. 50, LV), juiz natural (art. 50, XXXVII e LIII), duração razoável (art. 50, LXXVIII), proibição de provas ilícitas (art. 50, LVI), tratamento paritário às partes (art. 50, I) e motivação das decisões (art. 93, IX).

José Afonso da Silva (1988, p. 21) descreve o Estado democrático de direito como Estado de justiça material fundado em uma sociedade democrática e que inclui efetivamente todo o povo nos mecanismos de controle das decisões. Além disso, fundamenta-o em alguns princípios: princípio da constitucionalidade, princípio democrático, princípio da igualdade, com sistema de direitos fundamentais, atento à justiça social, separação dos poderes, legalidade e segurança jurídica.

Em um sentido mais específico e complementar à ideia de José Afonso, em termos de legalidade e segurança jurídica, Menelick de Carvalho Netto (2004) afirma que o paradigma do Estado democrático de direito, positivado pela Constituição de 1988, também destaca a importância do dever de fundamentar as decisões judiciais à luz dos seus princípios fundamentais:

Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto. (CARVALHO NETTO, 2004, p. 38). É por isto que a Ordem dos Advogados do Brasil é esteio do Estado democrático de direito. Sua atuação atravessa todas as dimensões do paradigma constitucional e situa-se como fonte de equilíbrio e de regulação social. Desde a garantia da ampla defesa e do contraditório, até a atividade cidadã como representante da sociedade civil.

Para que o advogado possa exercer seu ofício de maneira livre e autônoma é necessário que a defesa de suas prerrogativas seja tema constante em todas as instituições democráticas. Não há cidadania sem advocacia valorizada, do contrário, trata-se apenas de uma utopia constitucional inalcançável. O Estado democrático de direito surge como proposta de dar vida aos direitos fundamentais. Materialidade. Para tanto, as prerrogativas da advocacia devem estar na ordem do dia.

Tais garantias possuem um caráter protetivo diante de uma atividade conflitiva sendo parte integrante da formação da ampla defesa e do contraditório. Além disto atua como estruturante para o funcionamento do Poder Judiciário. Marcelo Bertolucci (2018, p. 93-95) afirma que

As prerrogativas...

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