Ana Elizabete Mota: insurgência na formação profissional e na produção acadêmica do Serviço Social/Ana Elizabete Mota: insurgency in professional training and academic production in Social Work.

Autorde Melo, Ana Inês Simões Cardoso

Nossa entrevistada, muito generosa--como é próprio a intelectuais efetivamente comprometidos com a teoria, o método e a história--, demarca a sua participação com reiterada modéstia no processo de construção das Diretrizes Curriculares da formação em Serviço Social, destacando que este processo foi realizado e construÃÂdo a partir da contribuição de muitas mãos e mentes. Bete Mota, como costuma ser chamada, relembrou as concepções éticas e teórico-metodológicas que foram assumidas coletivamente, bem como os processos polÃÂticos e as formulações resultantes das oficinas regionais e nacionais promovidas pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss) (1) na construção das Diretrizes Curriculares--ocasião em que fez referência àexigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) do Ministério da Educação e Cultura (MEC) para substituir o currÃÂculo mÃÂnimo e pleno pelas Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação.

Sua leitura do processo de construção das Diretrizes Curriculares da Abepss é realizada a partir da compreensão do enraizamento da renovação profissional do Serviço Social, cujo processo imprimiu substância teórica e polÃÂtica ao movimento que resultou em sua formulação. Tal movimento foi mediado pelas condições históricas vigentes e revelou a maturidade teórica e polÃÂtica que a profissão galgava naquele perÃÂodo.

A entrevistada considera que as Diretrizes Curriculares revelam as balizas teórico-metodológicas, ideopolÃÂticas e os princÃÂpios que orientam a intervenção profissional do Serviço Social, incorporados pela formação profissional. Expõe uma matriz ancorada no pensamento crÃÂtico de orientação marxiana, no método do materialismo histórico e dialético e na explicação da formação social brasileira como suportes fundamentais para dar conta da relação entre a profissão e a realidade da vida social brasileira, para além de uma mera matricialidade curricular.

Resgata, desta forma, o longo processo que acabou por desaguar na proposta final das Diretrizes Curriculares, não sem desconhecer seus possÃÂveis limites em face das mudanças por que passa a realidade brasileira e o próprio Serviço Social, mas retratando, de forma ÃÂmpar, a centralidade da relação entre profissão e sociedade em cada tempo histórico. O diálogo travado evidencia a superação do Serviço Social tradicional e conservador em prol de um projeto de formação profissional arrojado e que se mantém atual, ainda que possa ser enriquecido com as questões do tempo presente, mas sem declinar seus componentes teórico-metodológicos e sua dimensão crÃÂtica e progressista.

Em Pauta--Você teve uma participação substantiva no processo de construção das Diretrizes Curriculares do curso de graduação em Serviço Social conduzido pela Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abepss), de cuja direção você participava. GostarÃÂamos que comentasse sobre sua experiência neste processo e como você vê a questão em termos de articulação com o projeto ético-polÃÂtico vigente no Serviço Social.

Ana Elizabete Mota--Vou fazer uma recorrência para situar meu entendimento e minha participação no processo de definição das Diretrizes Curriculares. Como qualquer fenômeno e iniciativa, acho importante pensar a questão numa perspectiva de totalidade para qualificar este rico processo. Então, precisamos situar a chamada renovação do Serviço Social brasileiro no perÃÂodo de exaurimento da ditadura empresarial-militar, nos últimos anos da década de 1970. É preciso lembrar da luta social pela anistia, da atuação do "novo sindicalismo", das greves do ABC Paulista e do movimento das Diretas Já para resgatarmos a articulação da sociedade brasileira e, no seu interior, a do Serviço Social. Na segunda metade dos anos 70 do século XX, portanto, no entorno do chamado Congresso da Virada, ocorrido em 1979, um grupo de jovens assistentes sociais com boa formação intelectual e polÃÂtica (hoje com mais de 70 anos), engajado na luta pela redemocratização no Brasil (evidente que ponderando o silenciamento compulsório da ditadura e, em articulação com o chamado Movimento de Reconceituação do Serviço Social latino-americano, particularmente com a sua vertente mais crÃÂtica), é protagonista da crÃÂtica ao tradicionalismo e conservadorismo do Serviço Social. Dessa forma, inauguravam um movimento que se iniciou com a organização polÃÂtico-sindical dos e das assistentes sociais, a exemplo de muitos trabalhadores brasileiros naquele momento. Esse movimento integra o processo de renovação polÃÂtica do Serviço Social, desencadeando processos que posteriormente viriam a influenciar a abordagem das Diretrizes. Então, no meu entendimento--e existem colegas muito mais capacitadas do que eu para falar de tudo isso--, a renovação da formação profissional se inicia com a organização polÃÂtica de assistentes sociais, avança com a criação dos programas de pós-graduação e com a direção polÃÂtica assumida pela Abess na convenção realizada em Natal, em 1979. Nesse perÃÂodo de ebulição polÃÂtica, aprovou-se a criação de um novo currÃÂculo para o Serviço Social, em 1981/82.

Sob meu ponto de vista, o engajamento e a organização polÃÂtica de assistentes sociais assumem, vamos dizer assim, o imperativo da renovação no e do Serviço Social, dada a unidade entre organização e formação profissional, determinada pela conjuntura histórica de então, com o surgimento dos movimentos sociais, partidários e sindicais, impactando, inclusive, nas ainda incipientes produções intelectuais do próprio Serviço Social e no tensionamento da prática profissional. Notem, por exemplo, que a realização da convenção da Abess, que aconteceu em Natal, no Rio Grande do Norte, ocorreu no mesmo ano do Congresso da Virada, assim como a articulação do movimento sindical de assistentes sociais (através da criação da Ceneas), no âmbito do novo sindicalismo do ABC Paulista. Tudo isso é de grande efervescência e, embora predomine a direção e organização de assistentes sociais no Sudeste (inclusive de profissionais que migraram temporária ou permanentemente para o Rio de Janeiro e São Paulo), o movimento espraia-se pelo Brasil.

Quero lhes dizer que em 1979 eu era recém-contratada professora colaboradora da UFPE, ainda não havia ingressado no mestrado e minhas referências polÃÂticas e teóricas eram Marilda Iamamoto, Inês Bravo, Maria Helena Rauta, Rose Serra, Regina Marconi, Bia Abramides, Eugenia Raizer, Josefa Lopes, Marina Abreu, Franci Cardoso e a antológica Luiza Erundina, cujo discurso no III CBAS, apresentando o lÃÂder operário Luiz Inácio Lula da Silva, nos levaram ao delÃÂrio. Com uma visão muito arguta, a vanguarda polÃÂtica do Serviço Social aproveita o momento do III Congresso Brasileiro e ali faz uma manifestação polÃÂtica de peso, que, simbolicamente, assumiu a condição de um marco na renovação do Serviço Social. Mas, vejam bem, aquilo tudo não aconteceu em cinco dias, foi um processo e um projeto, cuja unidade estava dada pela luta para derruir a ditadura e inaugurar um outro momento na sociedade brasileira, através da rearticulação do movimento popular e sindical, da Igreja progressista com as comunidades eclesiais de base (CEBs), da criação de novos partidos polÃÂticos e, como já disse, da reorganização sindical de assistentes sociais. É nesse conjunto que situo as implicações da renovação do Serviço Social e da formação profissional, cuja herança estará presente nas Diretrizes Curriculares nos anos 1990. Notem que a reforma curricular, de 1982, tem como eixo a articulação do Serviço Social com os movimentos sociais e a incisiva crÃÂtica ao Serviço Social herdeiro do desenvolvimentismo e a defesa da sua condição de agente da transformação social.

Eu que estudei e li os anais do III Congresso do Serviço Social, o Congresso da Virada, observei que o tema original do III CBAS era o papel do Serviço Social no planejamento e desenvolvimento. No entanto, ao término do congresso, retornamos para nossos estados defendendo a articulação do Serviço Social com os movimentos sociais, populares e sindicais. Então, ali o Serviço Social ampliava a sua base, iniciava o longo processo de construção de uma hegemonia teórico-polÃÂtica de esquerda levada a efeito por nova geração, da qual muitas de nós fazemos parte. Por tudo isso, advogo que as Diretrizes Curriculares estão imbricadas num processo e projeto iniciados no final dos anos 70 do século 20. Mas vocês devem ouvir outras colegas... esta é a minha leitura.

O que aconteceu? Nós aprovamos e fizemos os encaminhamentos do currÃÂculo de 1982, com todas as suas grandes qualidades e com as suas dificuldades. Mas, segundo recordo, posteriormente iniciamos a discussão da reforma deste currÃÂculo de 1982, na década de 1990, creio que por volta de 1993, e que foi o ponto de partida da construção das Diretrizes Curriculares, que àépoca foi uma demanda do MEC, relacionada com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), para que os cursos superiores--dentre eles, o de...

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