As ambiguidades e limites do fundamento humanitario do refugio/The ambiguities and limits of the refuge's humanitarian foundation.

Autorde Souza, Fabrício Toledo
CargoReport

Introdução

O critério legal que define, a partir dos fatos, quem é refugiado faz-se acompanhar, em seu desdobramento prático, por um corte moral que pretende definir quem não é refugiado e cuja extensão e alcance não são previstos em lei. O corte opera a separação entre a verdadeira ou genuína vítima, sempre inocente, de um lado, e o solicitante de "má-fé", o mentiroso, ou, enfim, o migrante, de outro. Maculado pela ousadia de transpor as barreiras que lhe foram impostas, sejam físicas, militares, legais, morais ou burocráticas, o migrante torna-se o "outro" do refugiado e o "outro" da vítima. Este excesso tornou-se motivos de indagações em diversos países que lidam com os fluxos mistos (refugiados e migrantes chegando nos mesmos fluxos) e que utilizam o sistema de elegibilidade baseado nas definições dadas pela Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados.

A relevância desta inoportuna e perniciosa ingerência moral sobre o critério legal não se situa apenas nos resultados invariavelmente arbitrários e na criação de categorias humanas hierarquizadas, mas também no incremento do próprio dispositivo e de sua capacidade de definir os critérios de verdade. É por dentro do caráter humanitário do refúgio que tal operação se concretiza e se aprimora e por isso a denúncia de seus efeitos não se faz por suas distorções ou porque o dispositivo falha. Trata-se de uma operação que pesquisa, interpela e produz conhecimento. E que pretende a produção da verdade acerca destas categorias.

O recente episódio em que três refugiados paraguaios, vítimas de sequestro, desparecimento forçado e tortura praticados por agentes do Estado paraguaio, tiveram a proteção revogada pelo governo brasileiro, assim como as recentes propostas para alterar a legislação migratória e de refúgio, ilustram que a generosidade humanitária do Estado brasileiro pode ser facilmente limitada pela retórica do risco à segurança, este outro lado (igualmente moral) da sensibilidade humanitária: a necessidade de proteger a vida em abstrato e a população como uma generalidade.

Neste mesmo sentido, a leitura atenta dos dados sobre os pedidos de refúgio no Brasil--feitos pelos homens e mulheres das partes mais pobres do mundo, contra os quais é imposta a violência mais brutal desde a última guerra mundial - demonstra que a governabilidade humanitária pretende, ao final, inscrever no corpo e mente dos refugiados e migrantes que a proteção à sua vida lhes é outorgada como uma provisória e frágil concessão, condicionada à sua qualidade de vítima inocente. E que o direito sobre sua humanidade, afinal, pertence ao soberano.

O esforço deste texto é demonstrar, a partir da análise destes episódios e casos, os limites e ambiguidades do fundamento humanitário do refúgio. Seguindo autores que se debruçaram especialmente sobre o humanitarismo voltado aos refugiados, como Miriam Ticktin e Didier Fassin, e os trabalhos de Michel Foucault sobre os dispositivos de poder e regimes de governabilidade, pretendemos investigar como opera a racionalidade humanitária do refúgio e alguns dos seus efeitos.

A construção dos argumentos para a cessação do refúgio.

Em 14 de junho de 2019, o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE (1)) decidiu revogar o status de refúgio anteriormente reconhecido a três cidadãos paraguaios, exintegrantes de um determinado movimento político de esquerda (2). Os membros que participaram da sessão plenária realizada decidiram que não mais persistem no Paraguai as condições que determinaram o reconhecimento dos três ex-ativistas como refugiados (3). Deste modo, por força dos votos da maioria (cinco votos a favor da cessação do status e uma abstenção), Juan Francisco Arrom Suhrurt, Anuncio Martí Méndez e Victor Antonio Colmán Ortegra, perderam o status de refugiado que lhes havia sido reconhecido em 01 de dezembro de 2003.

O Presidente do Paraguai anunciou publicamente sua satisfação com o resultado, que abre a porta (4) para a eventual extradição dos ex-refugiados (5). A decisão, bem como as circunstâncias em torno dela e suas motivações foram objeto de polêmica, com repercussão pouco usual em se tratando de refugiados e processos de refúgio. Os principais jornais repercutiram a notícia, aguardada sem surpresa e com grande insatisfação por ativistas e organizações de direitos humanos que acompanhavam o caso.

A cessação do refúgio permite que o Estado Paraguaio consiga êxito em seu antigo objetivo de obter a extradição dos três ex-ativistas, acusados de terem cometido um crime de sequestro em 2001, supostamente por motivos políticos. Sob a proteção do estatuto, a extradição não seria possível, em virtude de comando legal (6). Houve duas tentativas anteriores de obter a revogação da proteção e a sua consequente extradição, em 2004 e em 2010.

De uma certa perspectiva, este episódio pode ser interpretado como uma ingerência indevida do Presidente em um órgão habituado a seguir critérios próprios de atuação e, portanto, expressaria uma mudança na política do órgão (7). Pela primeira vez desde que foi criado, o CONARE atendeu a um pedido de revisão feito diretamente por um governo estrangeiro, encaminhado pelo Ministério das Relações Exteriores. A solução para o pedido, que acabou culminando na cessação do refúgio, foi elaborada ao longo de alguns meses e não surpreendeu os atores que se esforçavam por evitá-la. Depois de se convencerem da inviabilidade de propor a simples perda do status, cujos motivos são taxativos (elencados na Lei 9.474/97), os portadores do pedido adotaram a cessação como o caminho para retirar deles o status protetivo.

De outra perspectiva, no entanto, os critérios utilizados para análise e julgamento dos pedidos de refúgio nunca estiveram livres da ingerência política. E embora neste caso a ingerência possa eventualmente estar bem clara e atuar de acordo com um critério ideológico bem definido, sempre houve uma escolha política na condução deste tema. Ainda que o tema migratório e de refúgio tenha entrado nos debates e no radar dos principais candidatos a cargos políticos, é apenas ocasionalmente que isto ocorre (8). Já há um bom tempo desde que o tema conquistou uma agenda própria e chamou atenção suficiente dos governos, que passaram a indicar gestores com mais poder e agilidade. Desde então, na mesma medida em que aumentam os números de solicitantes de refúgio e migrantes, aumentam os atores envolvidos e aumentam as ações por parte do governo (9).

Seguindo esta avaliação, se é possível aplicar critérios de fundo ideológico--esquerda ou direita--é porque se estabeleceu, antes, um limite moral que separa a verdadeira ou genuína vítima, sempre inocente e imaculada, daquele que é manchado por um crime, por uma suspeita ou pelo risco que apresenta. A questão não é a distinção motivada ideologicamente ou a distinção fundada em termos de segurança--e, portanto, na preservação da vida da maioria da população--mas a distinção fundada em critérios morais. A linha de distinção funciona não apenas para separar, classificar e hierarquizar, mas também para justificar e fazer funcionar o próprio dispositivo de distinção. Um dispositivo de produção de conhecimento e de produção de verdade.

O parecer da Comissão e a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

O pedido de cessação do refúgio reconhecido aos três cidadãos paraguaios foi construído ao longo de alguns meses e foi finalmente anunciado na pauta da sessão de maio de 2019. No entanto, em atendimento à requisição apresentada, a análise da cessação foi suspensa e adiada para a sessão seguinte, depois que Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tornasse pública sua decisão sobre a responsabilidade do Estado paraguaio a respeito de violência cometida contra dois de seus nacionais. Para os que defendiam a manutenção do refúgio, havia esperança de que a Corte condenasse o Estado paraguaio, acolhendo, assim, a conclusão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em setembro de 2017, a Comissão havia emitido um relatório atribuindo ao Estado paraguaio a responsabilidade pelo sequestro, desaparecimento forçado e tortura de Juan Francisco Arrom Suhrurt e Anuncio Martí Méndez (10).

Contudo, a sentença da Corte, publicada em 13 de maio de 2019, considerou que não havia provas suficientes para responsabilizar o Estado paraguaio. Segundo a decisão, a maior parte das evidências apresentadas para provar a participação do Estado se deu por meio de declarações das próprias vítimas ou de testemunhas indiretas. E considerou ainda que o Estado não foi negligente nas investigações realizadas para apurar os crimes cometidos contra eles. E, finalmente, que as provas não demonstraram que os agentes estatais denunciados pelas vítimas são os verdadeiros responsáveis. A sentença foi objeto de críticas porque supostamente contraria sua própria jurisprudência e a sua tradição em relação à análise e valoração das provas (11).

Juan Francisco Arrom Suhrurt e Anuncio Martí Méndez foram sequestrados em 17/1/2002 e mantidos desaparecidos e sob tortura durante 14 dias. Victor Antonio Colmán Ortega foi sequestrado em 19/1/2002, tendo sido apresentado às forças policiais algumas horas depois, durante as quais foi submetido à tortura. Segundo declararam Arrom e Martí, as pessoas que os sequestraram e torturaram eram agentes policiais e queriam que ambos se declarassem culpados pelo sequestro de Maria Edith Debernardi, esposa de um dos empresários mais ricos do país. E queriam que eles declarassem sua intenção em desestabilizar o governo.

Arrom e Martí foram resgatados do cativeiro (propriedade de um agente policial) por familiares e ativistas de direitos humanos, com transmissão ao vivo pela mídia. Por sua gravidade, o episódio motivou um processo de impeachment contra Oscar Latorre, então fiscal (procurador) geral do Estado, e outro contra González Macchi, então Presidente da República, por graves violações aos direitos humanos. A despeito da gravidade do episódio, o governo...

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