As fissuras e a crise do trabalho abstrato.

AutorHolloway, John

Introducao

No presente artigo, sugiro que o fundamental para compreender as autonomias esta na revolta da oposicao ao trabalho. Relaciono essa revolta com o conceito de Marx sobre o duplo carater do trabalho.

I (1)

A essencia das autonomias esta na negacao e na apresentacao de uma alternativa. A propria ideia de um espaco ou momento autonomo indica uma ruptura com a logica dominante, uma fissura ou uma mudanca de rumo no fluxo da determinacao social. "Nao aceitaremos uma determinacao alheia ou externa a nossa atividade, nos determinaremos o que faremos". Negamo-nos, recusamo-nos a aceitar a determinacao alheia e contrapomos essa atividade externamente imposta por uma atividade de nossa propria selecao, uma alternativa.

A atividade que rejeitamos geralmente e vista como parte de um sistema, parte de um padrao razoavelmente coerente de atividade que e imposta, logo, um sistema de dominacao. Muitos movimentos autonomos, ainda que nao todos, referem-se a esse padrao de atividade rejeitado como capitalismo: veem-se como anticapitalistas. No entanto, o traco distintivo da aproximacao autonomista e o que envolve nao somente uma hostilidade contra o capital em geral, mas tambem uma hostilidade contra a atividade vital especifica imposta pelo capitalismo aqui e agora, e um intuito de oposicao ao capital, atuando de uma forma diferente. Estabelecemos uma atividade diferente, que busca seguir uma logica diferente, contra a atividade capitalista.

Falamos aqui de dois diferentes tipos de atividades: uma atividade que e imposta externamente e vivida como diretamente desagradavel, ou como parte de um sistema que rejeitamos, e outra que empurra para a autodeterminacao. Na realidade, precisamos de palavras diferentes para esses dois tipos de atividades. Atenderemos a sugestao de Engels no roda pe da pagina de O Capital (Marx, 1965: 47), ao nos referirmos ao primeiro tipo de atividade como trabalho (labour) e ao segundo simplesmente como fazer (doing). Dessa maneira, as autonomias podem ser vistas como revoltas de oposicao ao trabalho.

II

A opcao do fazer tem um encanto etico e emocional muito forte. Dedicamos nossas vidas as atividades que nos agradam ou que nos parecem ser importantes. Rejeitar-se a logica do dinheiro ou os requisitos do capital e dedicar-nos a criar um mundo mais justo, um mundo que nao toma seu ponto de partida em maximizar a ganancia, senao na luta por um mundo baseado no reconhecimento mutuo da dignidade humana, e moralmente satisfatorio e preenche-nos como pessoas.

A dificuldade se da no fato de que nossas tentativas de atuar de maneira diferente estao em contradicao com a logica dominante, com a sintese social dominante. O trabalho que rejeitamos e parte de um estreito tecido social e de uma logica coerente do capital. Essa logica governa o acesso aos meios de sobrevivencia e producao. Rejeitar-se essa logica e optar por outro tipo de fazer significa que teremos dificuldades para acessar o que precisamos para viver, assim como para realizar o projeto criativo que temos em mente. Optar-se pelo fazer e optar pela exclusao: a exclusao de uma logica que esta claramente destruindo as bases da existencia humana, mas uma logica que e, ao mesmo tempo, a base da reproducao humana.

Nossas alternativas sempre existem a beira da impossibilidade. Logicamente falando, nao deveriam existir--pelo menos, segundo a logica do capitalismo. Mas existem: frequentemente passageiras e com muitas dificuldades e contradicoes, sempre frageis e correndo o risco de desaparecer, ou, ainda pior, de serem transformadas em um novo elemento do sistema politico ou social. Nao deveriam existir, e ainda assim existem, e estao se multiplicando e expandindo.

III

Podemos pensar nesses espacos ou momentos de outro-fazer como fissuras no sistema de dominacao capitalista. Nao sao precisamente autonomias porque de fato nao se governam: sao empurroes nessa direcao. Sao empurroes contrarios, porque empurram contra a logica do capital. Assim, precisamos de um conceito negativo no lugar de um positivo: fissuras em vez de autonomias.

O problema com "a autonomia" e que nos leva facilmente a uma interpretacao identitaria. "As autonomias" podem ver-se como unidades autossuficientes, espacos onde escapamos e nos quais podemos construir ou desenrolar uma identidade definida, uma diferenca. Em um mundo baseado na negacao da autonomia ou da autodeterminacao, a autonomia, em um sentido estatico, e impossivel. A autodeterminacao nao existe: o unico que existe e o impulso constante para a autodeterminacao, que e o mesmo que o impulso contra-e-para-alem da negacao da autodeterminacao, e, como parte desse impulso, a criacao de espacos ou momentos extremamente frageis nos quais vivenciamos o mundo que queremos criar.

A fissura e um conceito negativo e instavel. A fissura e uma ruptura da logica da coesao capitalista, um rompimento no tecido da dominacao. Ja que a dominacao e um processo ativo, as fissuras nao podem estar quietas. Correm, estendem-se, expandem-se, juntam-se ou nao com outras fissuras, preenchem-se ou sao escondidas, reaparecem, multiplicam-se, estendem-se. Rompem a partir das identidades. A teoria das fissuras, entao, e necessariamente critica, anti-identitaria, agitadamente negativa, uma teoria de rompimentos e criacoes, e nao uma teoria de unidades autossuficientes.

As fissuras na dominacao capitalista existem por todas as partes. "Hoje nao vou trabalhar porque quero ficar em casa e brincar com as criancas". Esta decisao talvez nao tenha o mesmo impacto que o levantamento zapatista, mas tem a mesma essencia: "Nao, nao faremos aquilo que o capital nos disse, faremos o contrario, faremos o que consideramos necessario ou preferivel". A maneira mais obvia de pensar nessas revoltas e em termos espaciais ("aqui em Chiapas, aqui nesse centro social, nao nos submeteremos ao capital, faremos o contrario"), mas nao ha razao para as quais nao devemos pensar em termos temporais ("durante esse fim de semana, ou durante este seminario, ou pelo tempo que pudermos, dedicaremos toda nossa energia para criar relacoes que desafiam a logica do capital"). Ou, novamente, nossas provocacoes poderiam ser tematicas ou relacionadas particularmente aos tipos de recursos ou atividades: "nao permitiremos que a agua, ou a educacao, ou o software sejam governados pela logica do capital, esses devem ser entendidos como bens comuns e os faremos sob uma logica diferente", e assim sucessivamente.

As revoltas contra a logica do capital existem em todos os lados. Muitas vezes o problema se da no reconhecimento delas, ou seja, nao as reconhecemos; porem, conforme focamos mais nossas mentes nas fissuras, mais a nossa visao do mapa como um todo se modifica. O mapa do mundo nao e apenas um mapa de dominacao, e tambem um mapa de revoltas, de fissuras se abrindo, alcancando, correndo, juntando-se, fechando-se, multiplicando-se. Conforme mais nos focamos nas fissuras, mais se abre uma imagem diferente do mundo, um tipo de antigeografia que somente reveste os indicios do espaco, mas que desafia em si a dimensionalidade.

Somente partindo desse ponto podemos pensar em como se pode mudar radicalmente o mundo. A revolucao so pode ser o reconhecimento, a criacao, a expansao e a multiplicacao das ditas fissuras: e dificil imaginar qualquer outra forma de modificar radicalmente o mundo.

E obvio que essas fissuras, ou espacos-momentos de negacao-e-criacao, enfrentam dificuldades, dado o fato de que nao sao espacos autonomos, senao tentativas de se protegerem contra-e-para-alem da logica da racionalidade capitalista. As fissuras estao ameacadas pela repressao ou cooptacao por parte do Estado, pela reproducao interna de padroes de comportamento adquiridos pela sociedade que rejeitamos e, talvez ainda mais poderosa e traicoeiramente, pela forca corrosiva do valor, a regra do mercado. Visto sob a perspectiva da totalidade social, nao deveriam existir; sob a perspectiva da racionalidade capitalista, sao logicas impossiveis, absurdas e loucas. Entretanto, ai estao: uma revolta crescente em reacao ao trabalho.

IV

Essas fissuras sao movimentos antissistemicos, contra a coesao ou coercao do sistema social. Se entendermos esse sistema como um sistema capitalista, entao, sao movimentos anticapitalistas, usando-se ou nao o termo "capitalismo". Nao sao somente as formas de lutas anticapitalistas, mas, sim, uma forma que cresceu enormemente em importancia.

Uma questao importante que surge e se a teoria anticapitalista mais importante, o marxismo, e relevante na compreensao desses movimentos. Muitos ativistas rejeitam o marxismo, como algo irrelevante para suas lutas, e veem-no estritamente ligado as formas de luta que estao rejeitando: a velha luta anticapitalista dos sindicatos e dos partidos reformistas ou revolucionarios. E muitas vezes a analise marxista parece vagar pelas nuvens, longe e separada da recente onda de lutas contra o capitalismo. De modo que a pergunta sobre a relevancia do marxismo e tao importante para esses movimentos, como e para a teoria marxista.

As fissuras (ou as autonomias) sao revoltas que contrariam o trabalho, uma forma de atividade contra outra. A atividade humana tem um duplo carater, auto-antagonista. O duplo carater, auto-antagonista da atividade humana, ou como ele o chamou, o "duplo carater do trabalho", e o tema central da obra de Marx. Qualquer teoria sobre as fissuras, sobre as revoltas que contrariam o trabalho, devem partir do mesmo ponto.

O jovem Marx, nos Manuscritos de 1844, fez uma distincao entre o trabalho alienado e a atividade vital consciente. A atividade vital consciente e a atividade...

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