As particularidades fundantes do punitivismo a brasileira/The founding particularities of the Brazilian punitivism.

AutorCarvalho Cruz, Monique de

Introducao

Ha cerca de 10 anos, quando iniciei o estagio curricular obrigatorio em Servico Social na Secretaria Estadual de Administracao Penitenciaria do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) em um presidio masculino de regime fechado no Complexo Prisional de Gericino, no bairro de Bangu, me deparei com uma realidade a qual ouvia falar apenas de fora. As ausencias de longo prazo de pessoas queridas nem sempre sao explicaveis pela morte, pelo menos fisica, e podem ser explicadas por frases como "fulana esta presa ou fulano passou a vida toda preso".

A partir da experiencia de dois anos realizando atendimentos aos homens privados de liberdade, as suas maes, companheiras, irmas, amigas e, em alguns casos, pais, assim como das participacoes em seminarios, simposios e debates sobre o campo sociojuridico de atuacao de assistentes sociais, fui apresentada as pautas abolicionistas como parte das lutas anticapitalistas (Davis, 2018a; 2018b). Reconhecer a estrutura racial e patriarcal do encarceramento seletivo em massa (e da sociedade brasileira), estudar e atuar politicamente no movimento de favelas tambem colaboraram para a elaboracao das reflexoes e propostas que trago neste artigo.

O objetivo principal deste artigo e colaborar para a producao e promocao de propostas abolicionistas que se dediquem as especificidades das lutas no Brasil contemporaneo, como forma de produzir dialogos mais proficuos com os movimentos sociais em geral. Ainda que reconhecamos a importancia do pensamento e experiencias estrangeiras, estou convencida de que nao ha possibilidade de transformacao de nossa realidade sem o necessario conhecimento sobre ela. Para tanto, busquei tracar um caminho talvez pretencioso para um artigo, mas que reconhecendo seus limites pretende "colocar ideias no mundo" como forma de cooperar com pensadoras/es que vem se dedicando a este tema.

Analisar possibilidades de questionamento radical da realidade em que vivemos, na qual o punitivismo e um elemento constituinte das praticas institucionais, interpessoais e, portanto, estruturais requer um retorno ainda que breve a nossa formacao socioespacial (Santos, 1982). Infelizmente existe uma tendencia geral a buscar solucoes para as nossas questoes em outras realidades sob a ideia de que nos olhamos dentro de uma totalidade quando na verdade apenas colaborando para o obscurecimento das relacoes sociais no Brasil, promovendo por outro lado analises de pais distorcido (1) (Santos, 2002).

Esse texto pretende ser um chamado a reflexao critica com vistas a elaboracao de propostas abolicionistas, entendendo-as como antirracistas e feministas em contraponto as praticas racistas, militarizadas, masculinistas e heterossexistas apresentadas pela sociedade burguesa como a solucao para os conflitos sociais. Nesse contexto, a militarizacao tambem nos interessa; podemos conceitua-la como algo mais amplo que a ideologia militarizada do funcionamento das forcas policiais e militares como conhecemos e que esta marcada pelo espraiamento das praticas, simbolos, narrativas e tecnologias, que tem na forca belica seu aspecto principal (Barros, 2018), justificando o exercicio do poder de matar, nao somente a tiro, mas de maneira lenta e gradual com o encarceramento e o adoecimento (das pessoas presas e suas familiares), que sao processos genocidas que atravessam nossa historia desde antes da existencia do Estado brasileiro.

Ainda segundo Milton Santos (1982, p.88): [...] os modos de producao escrevem a Historia no tempo, as formas sociais escrevem-na no espaco. [...], por isso reconhecer nossas particularidades parece ser um caminho necessario a producao de qualquer proposta que vise transformar a realidade. Em um primeiro momento, busco discutir as bases raciais, heterossexistas, militarizadas e cristas da sociedade brasileira que promovem a existencia do que venho chamando de Estado-Colonial-Penal (Cruz, 2021a, no prelo).

Em seguida, tenho por objetivo relacionar essas bases de nossa sociabilidade a alguns elementos que considero relevantes da historia do Brasil e que se relacionam com a forma como a expansao punitiva ganha corpo na contemporaneidade, especialmente na relacao "crime vs seguranca" que atravessou os processos de reabertura democratica e transformaram o periodo pos-1988 no que o movimento de Maes e Familiares contra o Terrorismo de Estado chama de Era das Chacinas (Maes de Maio, 2012).

Por fim, abordo brevemente o que parece ser um caminho interessante trilhado por movimentos sociais com os quais tenho interagido nos ultimos 10 anos de ativismo antiprisional e de alguns paradoxos que precisarao ser aprofundados em oportunidades futuras, para que pensemos como o questionamento radical que e realizado por esses movimentos podem ser colocados a favor de um maior compartilhamento de propostas abolicionistas, que como sabemos ainda estao restritas a pequenos grupos que buscam difundir propostas eurocentradas de transformacao da realidade.

  1. Colonizacao, raca e a formacao socioespacial do Estado-Colonia l-Pena l brasileiro

    O Estado brasileiro se constituiu como tal a partir da exploracao do trabalho de pessoas escravizadas, ao passo que formou uma elite proprietaria de terras, egocentrica, racista e conservadora que usufrui(u) dos produtos e recursos da exploracao direta dos corpos e do conhecimento das pessoas indigenas e negras. As instituicoes do Estado brasileiro, como demonstram Dias e Prudente (2016), foram mantidas e financiadas com comercio escravagista que tambem ajudou a enriquecer a Igreja Catolica. Esses autores, assim como Schwarcz (1993), Shwarcz e Starling (2018), Chalhoub (2017) demonstram que o "medo branco da onda negra" (Azevedo, 1987) forjou as racionalidades que criaram e mantem no tempo instituicoes juridicas, leis e o proprio sistema de justica (outras instituicoes) e moralidades como instrumentos de defesa dos interesses das elites formadas por familias brancas escravagistas que alem de tirar todo proveito possivel das estruturas estatais, encontraram maneiras de garantir lugares sociais de poder para seus descendentes.

    Os efeitos desse modelo de producao atravessaram os seculos constituindo racionalidades e as sociabilidades que forjam as subjetividades ate os nossos dias. Como afirma Santos (1997, p.135): O modelo civico brasileiro e herdado da escravidao, tanto o modelo civico cultural como o modelo civico politico. A escravidao marcou o territorio, marcou os espiritos e marca ainda hoje as relacoes sociais deste pais [...]. Ou, como diriam Schwarcz e Starling (2018, p.500): Essa marca que continua presente ainda nos dias de hoje, na nossa arquitetura (nos minusculos "quartos de empregada" ou nos elevadores de servico--na verdade, para servicais), no nosso vocabulario, nas praticas cotidianas de discriminacao social e racial [...].

    O racismo e o heterossexismo cristao que pautaram o empreendimento militar e financeiro da colonizacao sao bases fortes e bem estruturadas das nossas relacoes sociais e a despeito de alguns avancos importantes no tocante ao acesso a alguns direitos e a promulgacao da Constituicao Federal "Cidada" em 1988, seguimos em uma sociedade racial e socialmente desigual que esta marcada por processos que se baseiam em uma igualdade formal que nao se concretiza na pratica.

    Como se sabe a chamada reabertura democratica foi fruto de lutas populares, mas tambem de acordos entre as elites que mantem em grande medida as estruturas etico-politicas que atravessam nossa historia desde a colonizacao. Este marco temporal --reabertura democratica--, no qual serao baseados os apontamentos deste texto, visa trazer ao debate o fato de que a Democracia Brasileira esta baseada, como afirmou Milton Santos (1997) nao na ideia de direitos e deveres, mas na manutencao dos privilegios das classes medias, onde o sistema de justica criminal e a violencia de Estado sao importantes instrumentos que mantem o racismo, o heterossexismo e a militarizacao como determinantes das relacoes sociais.

    Em um artigo recente, destaquei a ideia de Estado-Colonial-Penal como a conjugacao do poder em um pais agro-minero-exportador que possui uma elite branca, masculinista e violenta, que ao longo dos seculos se manteve pela detencao de terras e por se apossar do Estado para garantir seus interesses privados que se baseiam especialmente na superexploracao do trabalho (mal remunerado e domestico) e na eliminacao das pessoas indigenas e negras. Elites essas que nao abrem mao de negociar com as vidas nao-brancas, como afirma Flauzina (apud Alexander, 2018).

    De acordo com autores como Schwartz (2011) e Comparato (2015), a colonizacao foi um empreendimento comercial e militar europeu que envolveu ocupacao territorial, violencias (inclusive sexual), e brutalidade contra povos originarios alem da implementacao de instrumentos administrativos que desde as primeiras decadas dos anos 1500 ja marcavam a intrinseca relacao entre poder administrativo, militar e jurisdicional dos arrendatarios das terras. De acordo com Schwartz (op. cit, p.43): A carta de doacao [das sesmarias] dava ao proprietario ampla jurisdicao civil e criminal, a ser exercida por pessoas que ele nomeasse: um magistrado superior (ouvidor) e outros funcionarios da justica: escrivaes, tabeliaes e meirinhos.

    Ainda que existam muitas relacoes complexas quando tratamos do punitivismo a brasileira em seu desenvolvimento historico, e fato que o sistema de justica constitui seu maior expoente. Nele podemos articular tanto as instituicoes que o compoe como as legislacoes criminais, o exercicio do poder de policia, os instrumentos, narrativas e moralidades que o alimentam como principal forma de solucao dos conflitos na contemporaneidade.

    Esse sistema iniciado nos primeiros anos da colonizacao ficou marcado no tempo como um espaco ocupado majoritariamente por homens brancos e proprietarios de terras e seus filhos. Ao longo dos primeiros cem anos do empreendimento colonial foram instituidas praticas que atravessam os seculos e que...

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