Ataques à redução de danos em Recife: o consultório de rua/Attacks on harm reduction in Recife, Pernambuco: the street clinic.

AutorAraújo, Evelly Nathália Lira de

Introdução

O cuidado à pessoa que faz uso de substâncias psicoativas na atualidade é marcado pela multiplicidade e complexidade de abordagens, e engendrado por disputas ideopolíticas e econômicas historicamente postas. Em Recife, a trajetória da estratégia de redução de danos (RD) foi e é referência no cenário nacional. Entretanto, as aproximações cotidianas com o consultório de rua e serviços substitutivos para álcool e outras drogas apontaram inquietações sobre o atual momento no campo público-estatal das ações de redução de danos. Por isso, o estudo - fruto do trabalho de conclusão da residência, do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade de Pernambuco (UPE) - objetiva compreender o significado e as contradições nas mudanças das ações do consultório de rua na Rede de Atenção Psicossocial da cidade do Recife, a partir de 2013, com base nos relatos dos(as) agentes redutores(as) de danos (ARD).

Entende-se que a orientação da redução de danos (RD) na política sobre drogas é prerrogativa para sua prática em qualquer serviço, equipe ou profissional envolvido com esta política ao acolher pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. Isso esboça um campo vasto para a proposta de análise deste estudo, mesmo para o recorte da cidade do Recife, sua Rede de Atenção Psicossocial e seus serviços de atenção a usuários(as) de drogas. Desta maneira, a escolha por enfatizar as equipes de consultório de rua tem o intuito de dialogar diretamente com a realidade de profissionais direcionados para o fazer estratégico da RD: os(as) agentes redutores(as) de danos (ARD), que no cotidiano do processo de trabalho experienciam os ataques sofridos por uma estratégia de cuidado contra-hegemônica. Além disso, a preferência metodológica de compreender o objeto de estudo a partir da análise dos relatos profissionais também se justifica pelo reconhecimento e documentação dessas práticas no SUS, em tempos de severos retrocessos.

A realização da coleta de dados (1) ocorreu durante o último trimestre de 2020 e se deu a partir de um questionário simples em entrevista semiestruturada, com vistas a compreender qual local vem sendo atribuído às ações dos(as) redutores(as) de danos de âmbito público-estatal da cidade do Recife. Na tentativa de priorizar as discussões fomentadas nas páginas seguintes, optou-se por apresentar pequenos trechos das entrevistas.

Para isso, os seguintes critérios de inclusão foram direcionados: um(a) ARD de cada uma das seis equipes de consultório de rua, que correspondem à cobertura dos oito distritos sanitários da cidade do Recife, um(a) ARD atuante na supervisão, leia-se, na função de gestão das equipe, e um/a ARD da equipe de arte-educação do consultório de rua; todos(as) com tempo de atuação que varia de oito a 16 anos, podendo ter vínculos de trabalho por contrato profissional ou concurso público. Dessa forma, foram realizadas oito entrevistas, sendo três pessoas com vínculo por concurso público e cinco por contrato terceirizado via Santa Casa de Misericórdia ou Maria Lucinda.

Drogas e redução de danos

nos desarranjos da sociedade de classes

A priori, sabe-se que, para trabalhar a problemática do consumo de drogas nas suas interfaces com a questão social, é necessário compreender o papel histórico das drogas no campo das necessidades humanas. Em uma perspectiva ontológica, Cristina Brites (2017) se apoia na filosofia da práxis lukácsiana para afirmar que as singularidades que perpassam o uso de psicoativos, compreendidas à luz das "escolhas e ações dos indivíduos sociais", assim são devido às possibilidades conduzidas pelas diversas modalidades da práxis social e seus sistemas de necessidades sociais, historicamente autoconstruídos e constituídos de conservações e superações, sendo este o constructo da totalidade social. Neste caso, o uso de drogas ao longo da história é produto da práxis.

Entretanto, a totalidade social no modo de produção capitalista se sustenta pelo acúmulo de riquezas, expressivamente mediado pela mercadoria e seu valor de troca (MARX, 2011). Por essa função acumuladora, as relações mercantis e monopolistas ao longo da história moderna reservam às drogas, além das indispensáveis atribuições culturais, ritualísticas e morais, o valor de troca centrado no acúmulo da mercadoria (CARNEIRO, 2018); nesse sentido, o "fetiche da mercadoria" atribui novas funções ao circuito de necessidades humanas impressos no "uso de drogas", que por essa via apresentam-se na forma do consumo (SOUZA, 2012).

Adiante, é no século XX que o consumo de drogas chega ao maior alcance mercantil. Em seus primeiros anos já se operavam tendências à ilicitude de algumas drogas, mas o circuito que se consolida em meados deste século reordena a produção, circulação e consumo de substâncias psicoativas a partir do lícito e ilícito em bases jurídico-morais, caracterizando o paradigma ideológico do proibicionismo (CARNEIRO, 2018). Esse paradigma projeta a chamada "guerra às drogas" como expressão tendenciosa de reatualização do conservadorismo, mais precisamente no pós-crise da década de 1970, quando os ideais conservadores são convocados para interferir na "reprodução social da barbárie" promovida pela ofensiva neoliberal, "reservando ao Estado a função coercitiva de reprimir violentamente todas as formas de contestação à ordem social e aos costumes tradicionais (BAR-ROCO, 2015, p. 625).

Em meio à recusa neoliberal de enfrentar as expressões da questão social, afirma Wacquant (2001, p. 80), "a atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal", em que o atravessamento dos pressupostos de classe, raça e morais-cristãos posicionam a guerra às drogas como multiplicadora de dispositivos ultrarrepressivos (WAC-QUANT, 2001). Na realidade brasileira (2) , a guerra às drogas foi fortalecida pelas práticas ditatoriais, se firmando enquanto justificativa para intervir e reprimir a população pobre e preta, principalmente se considerado o processo de expansão das favelas brasileiras nas décadas de 1980 e 1990, quando o narcotráfico incide nas populações mais vulnerabilizadas de países periféricos como o Brasil.

Nessa composição, o paradigma da abstinência atua na produção de consensos acerca da questão das drogas como uma questão de saúde submetida à cura, e também se sustenta pelos pressupostos da psiquiatria e da moral cristã:

A moral cristã compõe, junto com a justiça e a psiquiatria, uma rede de instituições que tem por finalidade única e comum a abstinência. Porém, ao contrário da psiquiatria que se volta mais para a doença mental e da justiça que se volta mais para a delinquência, a moral religiosa inclui um terceiro elemento, a associação do prazer ao mal. (PASSOS; SOUZA, 2011, p. 158). Por outro lado, a questão do uso de substâncias psicoativas no âmbito da saúde pública delineia tendências de debate protagonizadas por disputas dentro e fora do campo público-estatal, com avanços significativos nos últimos 35 anos. Os contrassensos dessas tendências se concentram, principalmente, na defesa de modelos de atenção à saúde de pessoas usuárias de drogas, necessariamente vinculada à defesa de projetos políticos, econômicos e societários.

Na realidade brasileira, essas tendências adentraram as disputas do campo da saúde pública, nas propostas de intervenção da política de saúde, a partir de medidas historicamente reivindicadas pelos movimentos sociais no processo de democratização brasileiro, através da reforma sanitária e psiquiátrica. Esses tensionamentos permitiram a construção de um novo modelo de atenção à saúde mental, que escoou em possibilidades de alinhamento ético, político e científico entre a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas e a estratégia de redução de danos, no âmbito da política sobre drogas.

A RD é cercada por diversas concepções teóricas, que ora são compreendidas como política social, ora como abordagem, lógica, conceito ou estratégia (BRITES, 2006). Com ela, busca-se compreender as drogas como um atravessamento da realidade dos sujeitos que as consomem, mesmo que seu uso implique uma relação problemática. Parte do princípio da liberdade de escolha, pressupondo que nem todos(as) os(as) usuários(as) de substâncias psicoativas conseguem ou querem interromper o uso. Sua prática não precede fórmulas prontas com aplicação geral, mas ações voltadas para minimizar as consequências adversas do uso de drogas, consequências essas que perpassam prejuízos sociais, econômicos e/ou biológicos.

Enquanto a abstinência está articulada com uma proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a proposta de reduzir danos possui como direção a produção de saúde, considerada como produção de regras autônomas de cuidado de si. No caso da RD, a própria abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, porém mesmo nesses casos trata-se de uma meta pactuada, e não de uma regra imposta por uma instituição. As regras da RD, mesmo a abstinência, são imanentes à própria experiência e não se exercem de forma coercitiva, enquanto regras transcendentais. (PASSOS; SOUZA, 2011, p. 160).

Nesse sentido, a oferta da RD, bem como o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT