Autonomia Contratual e Razao Sacrificial: Neoliberalismo e Apagamento das Fronteiras do Juridico/Contractual Autonomy and Sacrificial Reason: Neoliberalism and Depletion of Legal Borders.

AutorGediel, José Antônio Peres

Introdução

O Direito do Trabalho foi, substancialmente, alterado pela Lei 13.467/2017, denominada "contrarreforma trabalhista" por juslaboralistas, sindicalistas e movimentos sociais. Como avalia Aldacy Coutinho (2017, p. 17 e 18), o Direito do Trabalho: "[...] vive o momento de acirrado enfrentamento do desmantelamento de seus marcos regulatórios construídos em torno do mundo do trabalho assalariado e a desintegração do sistema jurídico normativo de proteção".

Essa forma de regulação jurídica é típica das políticas neoliberais (1), pois o Direito apenas legitima por meio de normas as situações de fatos já existentes nas relações trabalhistas precarizadas em virtude das políticas de austeridade e do desemprego estrutural. A Lei 13.467/2017 traduz e legitima uma normalidade distorcida, que avança na forma de barbárie sobre trabalhadores e trabalhadoras brasileiras.

É parte desse cenário a hibridização de tipos e cláusulas contratuais do trabalho, em que o binómio "legal-ilegal" não é suficiente para descrever o apagamento das fronteiras do contrato de trabalho típico, como conceituou Azaïs (2003; 2012), para compreensão da multiplicação e segmentação de modalidades de contratos de trabalho. Neste texto, a hibridização também observa "(...) uma dimensão interna de novas formas típicas contratuais, com cláusulas híbridas" (MELLO, 2020). No interior da legalidade, há uma mudança da natureza das cláusulas contratuais típicas, ora hostis ao sujeito trabalhador e favoráveis à parte contratual mais forte, o empregador.

Com base nessa lógica e ainda que tenha perdido vigência, a criação pelo governo federal de um "contrato de trabalho verde e amarelo" (Medida Provisória 905/2019), com discurso baseado na cidadania, visava a ampliar as modalidades contratuais admitidas na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS).

Essa ampliação tem como argumento a necessidade de diminuir a onerosidade da proteção dos direitos previstos no artigo 7 e seguintes da CRFB/1988 (RôMANY, 2018). Não por acaso e no mesmo sentido de desconstrução da proteção social, a contrarreforma da previdência reitera o discurso sobre a necessidade de afastar "privilégios". A proteção social prevista na Constituição, com todas as suas limitações, é alvo principal dos ataques dos governos posteriores ao impeachment presidencial de 2016.

É necessário, portanto, assentar que a regulação jurídica para legitimar a corrosão das condições materiais de vida da população e da classe que vive do trabalho faz parte de uma significativa reestruturação do Estado brasileiro, que ultrapassará o período de um único governo. Por isso, não se dá em um único momento, mas sim de forma processual, com atos sucessivos que começam antes da contrarreforma trabalhista e seguem em curso ainda hoje. Uma compreensão adequada do que pode ser denominado como "novo direito do trabalho" oferece diferenciação e caracterização ao processo, que não consiste em uma mera diminuição de direitos, a ser analisada como "coisa" imóvel e acabada; mais propriamente, tem-se uma requalificação de sentido das relações entre as classes sociais, com maior disponibilização do trabalho ao capital e com uma racionalidade jurídica própria, que responde aos efeitos da crise estrutural do capital e de seu desemprego crônico.

A investigação desse processo se realiza por meio de uma pesquisa qualitativa de tipo exploratória, que analisa fontes documentais diversas, como processos judiciais, atos normativos e dados estatísticos, que atestam a diminuição dos direitos do sujeito trabalhador, para precarizar suas condições de vida e trabalho. O percurso dessa análise se inicia com o exame de dois acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) anteriores à "contrarreforma trabalhista", que desconsideram a proteção do trabalho constante na CLT e na jurisprudência trabalhista, e valoriza os instrumentos contratuais individuais e coletivos. Esse duplo movimento, promovido pelo Poder Judiciário e pela contrarreforma trabalhista, é identificado como uma vitória do negociado sobre o legislado.

O objeto do artigo, portanto, consiste em demonstrar como o direito do trabalho brasileiro muda seus rumos e identificar, no interior dessa processualidade, os elementos de racionalidade presentes nos casos escolhidos, também traduzíveis sob a técnica de pesquisa da amostragem de caso único (PIRES, 2008, p. 175; FONSECA, 2017, p. 377). Os estudos de caso, distantes do método quantitativo de pesquisa, nem por isso são menos exigentes (FONSECA, 2017, p. 372): entre os tipos de amostra de caso único possíveis à pesquisa acadêmica, optou-se pela amostra por acontecimento ou por enredo (2), com objetivo de descrever e identificar os elementos que estão nos acórdãos para, com isso, apresentar elementos de uma proposta teórica de interpretação da nova racionalidade juslaboral brasileira.

Trata-se, portanto, de construir uma abordagem que selecione a amostragem a partir do problema de pesquisa, de forma qualitativa, sem o objetivo de afirmar que se trata de um estudo exaustivo sobre todas as decisões que mobilizam categorias ou noções semelhantes em um determinado período de tempo. E sem nenhum demérito por isso (3). A escolha da amostra foi definida pelo problema de pesquisa que se quer construir, pois "quando o caso está sendo construído (...) já sabemos algo sobre o que queremos aprender com ele. A escolha do que constituirá o caso está frequentemente ligada ao que queremos inferir a partir dele" (FONSECA, 2017, p. 371).

Este processo de suposições criativas em pesquisa qualitativa (THIOLLENT, 1994, p. 35) encontra inspiração no modo como Wendy Brown (2018) elabora suas categorias teóricas, pois se utiliza de decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos e da Suprema Corte de Wisconsin, para demonstrar os efeitos do neoliberalismo sobre o campo jurídico. Sob essa perspectiva teórica, o negociado sobre o legislado brasileiro pode ser traduzido por uma intenção de "economização do direito", que incita trabalhadores e trabalhadoras a uma "razão sacrificial" exercitada por meio de contratos. O resultado dessas operações jurídicas é a perda de direitos em nome da maior eficiência econômica.

  1. Neoliberalismo e o apagamento das fronteiras jurídicas entre áreas do direito

    Wendy Brown (2018) identificou nos casos Citizens United versus Federal Election Commission, julgado em janeiro de 2010 (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2010), e At&T Mobility LLC versus Concepcion, decidido em abril de 2011 (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2011a), uma racionalidade específica que orienta a esfera jurídica e contribui para a afirmação da estratégia governamental neoliberal, na busca da maior eficiência econômica do mercado. A esta tendência verificada Brown denominou economization of law.

    Essas decisões da Suprema Corte dos EUA trazem como principais efeitos o reforço à ideia de atuação do livre mercado como promotor da igualdade de tratamento entre cidadãos e pessoas jurídicas, nos processos políticos, de autonomia e responsabilização individual do sujeito trabalhador, em decorrência de relações contratuais laborais, e de promoção da justiça por meio da requalificação dos investimentos do Estado Social (Welfare State) em gastos públicos.

    Essa construção teórica facilita a compreensão da implantação das políticas neoliberais no Brasil, uma vez que a "economização dos direitos" é um dos meios sutis utilizados pelas estratégias neoliberais para a erosão das democracias, tanto no hemisfério sul quanto no hemisfério norte, pela combinação entre decisões judiciais e alterações legislativas (DEUTSCHER; LAFONT, 2017).

    Esse ardil movimento da política neoliberal pode ser percebido já ao final da década de 1990, nos países membros da União Europeia, quando se instalou uma tensão entre documentos normativos comunitários, que expressavam os objetivos econômicos da globalização, e as constituições e leis nacionais que davam sustentação jurídica à social democracia europeia do pós-guerra, como afirmou Amirante, naquela ocasião:

    O debate político atualmente em curso, nos países membros da União Europeia, encontra fundamento nas exigências--não raramente colocado em aberta contraposição--ao reforço constitucional e legislativo do mercado, que se traduz no imperativo de uma definitiva reforma, se necessário inclusive constitucional, do Estado Social e dos direitos subjetivos que representam há anos a expressão mais consolidada (AMIRANTE, 2000, p.108). (4) A aproximação da racionalidade que orienta o Direito norte-americano e o Direito brasileiro, em matéria laboral, fica mais evidente a partir da análise realizada por Brown (2018) dos casos State ex rel. Ozanne versus Fitzgerald, proferido pela Suprema Corte do Estado Wisconsin (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 2012), ao manter a validade da Lei Estadual que esvazia o poder de barganha coletivo do sindicatos públicos, naquele Estado. Essa racionalidade também é encontrada por Brown na decisão Wal-Mart Stores, Inc. versus Dukes, et al (Estados Unidos da América, 2011), proferida pela Suprema Corte dos EUA, em junho de 2011, que rejeitou o processo coletivo contra a Wal-Mart, em que 1,5 milhão de mulheres buscou reparação de danos por discriminação de gênero. A Corte entendeu que não havia conexão entre inúmeras decisões empregatícias que resultaram em pagamento inferior generalizado às trabalhadoras daquela empresa.

    No Brasil, com as devidas e relevantes distinções, casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2016, anteciparam e abriram caminho para a formulação de uma jurisprudência baseada nessa racionalidade económica, o que resultou no enfraquecimento da proteção estatal aos trabalhadores, nos casos em que cláusulas constantes de contratos coletivos trabalhistas passaram a prevalecer sobre normas de ordem pública, que antes intervinham no contrato. A argumentação aparentemente favorável aos trabalhadores alega que é preciso valorizar a autonomia contratual dos empregados, afastando os efeitos das normas...

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