Avosidade e responsabilidade civil

Autor01
Ocupação do AutorNelson Rosenvald
Páginas139-158
AVOSIDADE E RESPONSABILIDADE CIVIL –
NOVOS CONFINS DA PARENTALIDADE
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil Universidade Roma Tre (IT). Pós-Doutor em Direito Socie-
tário pela Universidade de Coimbra (PO). Doutor e Mestre pela PUC-SP. Professor de
Direito Civil do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério
Público de Minas Gerais. Presidente do IBERC – Instituto Brasileiro de Estudos de
Responsabilidade Civil.
“Bibiana é bem como a avó, dessas que só gostam dum homem em toda a vida.
Essas nunca esquecem”
(Érico Verissimo)
Sumário: 1. Introdução. 2. A avosidade e a responsabilidade civil. 3. A responsabilidade civil
por omissão de cuidado. 3.1 A omissão de cuidado na avosidade. 3.2 Cabe o Ilícito de omissão
de cuidado inverso na avosidade? 4. A responsabilidade civil pela alienação parental. 4.1 A
alienação avoenga. 5. A reparação de danos extrapatrimoniais é o caminho preferencial? 6.
Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
A avosidade consiste no “laço de parentesco entre avós e netos, sobretudo estando
os últimos no período da infância; é tema que cria um elo entre a pediatria e a geron-
tologia. Envolve os estudos que vinculam o laço e parentesco nas relações de f‌iliações
trigeracionais do ponto de vista pessoal, social e familiar. Aproximar gerações é o objetivo
do trabalho social que busca quebrar barreiras entre gerações, eliminar preconceitos e
vencer discriminações”1
A família, como se sabe é um organismo mutável, construído historicamente. Os
seus sentidos, papéis e funções se reconf‌iguram. Neste contexto dinâmico se insere o
neologismo avosidade. Trata-se de uma derivação do termo espanhol abuelidad,2 fazendo
referência as relações intergeracionais construídas no contexto familiar pela interação
entre seus membros. Avosidade se associa com o vocábulo equivalente “paternidade para
descrever o vínculo e função entre pais e f‌ilhos.
1. OLIVEIRA Alessandra Ribeiro Ventura; GOMES, Lucy; TAVARES, Adriano Bueno; CÁRDENAS Carmen Jansen.
Relação entre avós e seus netos no período da infância. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/kairos/article/
view/4420/2992.
2. Abuelidad é um conceito desenvolvido pela psicanalista argentina Paulina Redler em 1980 para denominar a
relação e função dos avós com respeito aos netos e os efeitos psicológicos do vínculo. No idioma inglês o conceito
pode ser traduzido como “grandparenthood”, utilizados desde o século XIX. Para signif‌icar o mesmo, na língua
francesa se introduziu desde a década de 1990, o conceito de “grand-parentalité”.
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Na contemporaneidade, um dos fatores que imprimem mudanças nesse cenário é
o crescente processo de envelhecimento populacional, trazendo uma presença cada vez
mais acentuada dos avós em várias famílias, sobremaneira em nações periféricas como o
Brasil, onde a precariedade econômica remete a uma contenção f‌inanceira que culmina
por unir diferentes gerações sob um mesmo teto. A experiência aponta para o envelhe-
cimento das mulheres, acompanhada por f‌ilhos adultos que nem sempre deixam a casa
dos pais ao constituírem uma nova família. Filhos adultos que morrem antes de chegar
à terceira idade. Filhos adultos que não assumem a criação de seus f‌ilhos e consequen-
temente, netos sendo criados pelas avós. Avôs e avós assumem a criação não apenas de
netos biológicos, mas a avosidade afetiva de crianças adotadas por seus f‌ilhos, novos
f‌ilhos da nora viúva e sobrinhos-netos do marido.
Em sua genialidade, Guimarães Rosa frisava a importância de “fugirmos das formas
estáticas, cediças, inertes, estereotipadas e lugares comuns... a maneira-de-dizer tem de
funcionar, a mais, por si”.3 Em seus livros o leitor é chocado, despertado de sua inércia
mental, da preguiça e dos hábitos. Com a introdução do neologismo avosidade em
uma obra coletiva capaz de captar a sua transversalidade, talvez o civilista possa tomar
consciência viva do escrito, aprendendo novas maneiras de ref‌letir sobre um fenômeno
extremamente atual. Avosidade é um recurso expressivo que nos remete para muito além
do formalismo do parentesco em linha reta.4
Tampouco a avosidade remete à tutela da pessoa idosa, calcada na proteção de uma
pessoa vulnerável, que resulta, tanto de sua natural assimetria em um contexto individual
de declínio das potencialidades psicofísicas, como também de sua dif‌iculdade de inserção
em um ambiente social culturalmente marcado por práticas discriminatórias.5A avosidade
se localiza no plano da intersubjetividade, ressignif‌icando o direito das famílias, como
local de comunhão de vidas.
A avosidade é um tema novo. Porém, somente será um modelo jurídico autônomo
se transcender a compreensão genética do parentesco e a condição de vulnerabilidade
3. MARTINS, Nilce Sant’Anna. O léxico de Guimarães Rosa. São Paulo: Edusp, 2001.
4. Parentes em linha reta são os que mantêm entre si uma relação de descendência direta, decorrente, ou não, de
vínculo biológico. Procede direta e sucessivamente de cada pessoa para os seus antepassados e para os descen-
dentes. São os avós e netos, pais e f‌ilhos... Como reza o art. 1.591 do Codex, “são parentes em linha reta as pessoas
que estão umas para com as outras na relação de ascendentes e descendentes”. Bem por isso, a linha reta pode ser
ascendente ou descendente, a depender da perspectiva do parente que se esteja analisando, partindo-se da pessoa
considerada para os seus antepassados (do f‌ilho para o pai, do neto para o avô etc.) ou para os seus descendentes
(do pai para o f‌ilho, do avô para o neto...). A linha reta ascendente, por sua vez, pode bifurcar-se em linha paterna
e materna, dizendo respeito ao parentesco relativo ao pai e à mãe e aos parentes de cada um deles.
5. Heloisa Helena Barbosa explica que, “a proteção especial dos vulneráveis não se limita ao consumidor. A def‌inição
de vulnerabilidade compreende além da ideia de risco, outras como carência, inferioridade, constrangimento
e sofrimento, não episódicos, mas “naturalizados”, ínsitos a situação da pessoa. Por def‌inição, todos os seres
humanos são vulneráveis, mas não basta af‌irmar a vulnerabilidade que lhes é intrínseca para que recebam tutela
adequada. Para tanto é indispensável verif‌icar as peculiaridades das diferentes situações de cada indivíduo e/ou
grupo. Desse modo é preciso distinguir a vulnerabilidade – condição ontológica de qualquer ser vivo – da susceti-
bilidade ou vulnerabilidade secundária. Muitas pessoas têm a sua vulnerabilidade potencializada por problemas
socioeconômicos ou de saúde e podem ser qualif‌icados como vulnerados. Uma pessoa idosa é vulnerável, em razão
do processo de envelhecimento, que pode atingir pessoas já vulneradas por doenças, pobreza ou def‌iciência física
ou psíquica; estas estarão nitidamente em situação mais grave a exigir proteção diferenciada, diversa da conferida
aos “apenas” idosos”. BARBOSA, Heloisa Helena. Proteção dos vulneráveis na Constituição de 1988. In: NEVES,
Thiago Ferreira Cardoso (Coord.). Direito e justiça social. São Paulo: Atlas, 2013. p. 107-10.
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