Breves considerações acerca da evolução histórica das relações produtivas sob a ótica da subordinação

AutorTatiana Guimarães Ferraz Andrade
Ocupação do AutorAdvogada. Graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela mesma Universidade
Páginas31-39

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3.1. Sociedade pré-industrial60

A escravidão é considerada a forma mais antiga de apropriação dos meios de produção e, certamente, a menos digna, já que o escravo era considerado como uma espécie de "coisa", sem sentimentos ou direitos.

Nesse sentido, Jean-Jacques Rousseau assevera que a renúncia à liberdade de um homem é o mesmo que a renúncia à sua qualidade de homem, aos seus direitos e deveres. Tal ato abdicatório não é compatível com a essência humana e, por isso, não há nada que a compense. É contraditório permitir o poder absoluto por parte de um homem de um lado e, de outro, uma obediência ilimitada. "Que direito meu escravo teria contra mim, pois que me pertence tudo o que ele possui, e, sendo meu o seu direito, esse meu direito contra mim mesmo não é uma palavra sem qualquer sentido?"61.

O trabalho, obviamente, era forçado e o escravo recebia apenas alimento, já que sua sobrevivência era necessária para o dono da terra.

Sérgio Pinto Martins62 faz interessante resumo da evolução histórica do trabalho nessa época, sustentando que, em primeiro lugar o trabalho desempenhado pelos escravos em Roma era tido como desonroso, e seu desenvolvimento culminou na lex conductio, a qual "tinha por objetivo regular a atividade de quem se comprometia a locar suas energias ou resultado de trabalho em troca de pagamento".

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Irany Ferrari acrescenta que a passagem da escravidão para a servidão se deu de forma gradual e lenta, pela influência do cristianismo, fazendo com o que o servo passasse a ser visto com capacidade de ser sujeito de relações jurídicas63.

A partir daí, seguiu-se um processo de ruralização das "villas" camponesas, e o trabalho, posteriormente, "passou a ser objeto de locações de obras e serviços"64.

A locatio conductio se dividia em: locatio rei (quando se arrendava uma coisa em troca de retribuição), locatio conductio operarum (locação de serviços mediante remuneração), locatio conductio operis (entrega de uma obra ou resultado mediante pagamento).

Diferentemente da escravidão, no feudalismo, como pontua Alice Monteiro de Barros, o trabalho era confiado ao servo, o qual possui status de "pessoa", e não de "coisa"65.

Contudo, isso não significava que os trabalhadores gozassem de plena liberdade, pois, embora tivessem direito ao uso da terra, pagavam um alto custo para isso, sendo obrigados a trabalhar em pesadas jornadas, podendo, ainda, sofrer maus-tratos do senhor. Em contrapartida, contavam com a proteção dos senhores feudais perante terceiros.

Nesse contexto, o trabalho perde o caráter de não digno, porém ainda é visto como castigo, já que os mais ricos não trabalhavam.

A partir do século X, os servos passaram a consumir mercadorias fora dos limites feudais, em feiras e mercados à margem de rios, lagos e mares, o que propiciou o desenvolvimento do trabalho artesanal, principalmente após a queda do Império Romano, em 410 d.C.66.

Os mestres e artesãos se uniram, culminando no surgimento das corporações de ofícios, que também eram compostas pelos aprendizes e, a partir do século XIV67, pelos companheiros, grau intermediário da corporação.

Além de conferir mais liberdade aos trabalhadores, as corporações tinham cunho nitidamente associativo de proteção aos que faziam parte delas (mas somente dentro das associações, o que implicava limitação à liberdade de trabalho)68.

Havia uma escala hierárquica, estando os mestres no topo, como proprietários das oficinas. Logo abaixo, como mencionado, se encontravam os companheiros,

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que percebiam os salários dos mestres, mas só assumiam esta condição se fossem aprovados em exame de obra-mestra.

Na base da pirâmide estavam os aprendizes, jovens de 12 a 14 anos, cujos pais pagavam taxas aos mestres para que estes ensinassem os ofícios e, em decorrência, mantivessem os jovens sob sua custódia até o término do aprendizado, quando os aprendizes se tornavam companheiros.

Com efeito, a subordinação se fez presente nas corporações de ofício, em razão da hierarquia entre aprendizes e mestres. Afinal, como demonstrado, nesse sistema, havia regras a serem obedecidas e os mestres exigiam dedicação dos aprendizes, os quais se tornariam futuros companheiros na corporação.

De se pontuar que na escravidão e no feudalismo a subordinação tinha feição diversa da de hoje. Isso porque no regime escravocrata a subordinação decorria do direito de propriedade do senhorio sobre os escravos, tidos como objetos. A servidão se dava desde o nascimento, pois os que não faziam parte da aristocracia e eram negros estavam predestinados ao regime.

No feudalismo, por sua vez, a subordinação era consequência da proteção oferecida pelos senhores feudais em troca do uso da terra. Pode-se dizer que os vassalos serviam aos senhores em troca da própria sobrevivência.

Ou seja, na escravidão e no feudalismo o trabalho decorria de um estado de propriedade e posse, respectivamente, do trabalhador, o que justificaria a submissão deste.

A organização das corporações de ofício, inovadora se comparada aos regimes de trabalho anteriores, implicou a adoção de regras em substituição ao mero ajuste contratual entre as partes.

Entretanto, em busca da qualidade na prestação dos serviços, os mestres não se utilizavam de operários de outras corporações, o que implicava jornadas de aprendizado muito longas impostas aos aprendizes, segundo relata Sérgio Pinto Martins69. Em decorrência, na França, as corporações de ofício foram suprimidas em 1776 com o Edito de Turgot.

3.2. Sociedade industrial

Como mencionado, os abusos praticados pelos mestres nas corporações de ofício levaram ao desgaste do sistema, o que, aliado à incapacidade de corresponder às novas exigências socioeconômicas, culminaram com sua extinção.

Ocorre que mesmo com o Edito de Turgot, algumas corporações foram reconstruídas, algo incompatível com os ideais de liberdade da Revolução Francesa de 1789.

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Alain Supiot70 destaca que o trabalho surgido durante a Revolução Francesa, sob as ideias de liberdade, se transformou em um objeto de intercâmbio entre trabalhadores e empresários e, em decorrência, imaginava-se que seu futuro seria "o advento de um povo de trabalhadores independentes".

Em 1791, a lei Le Chapelier extinguiu de uma vez por todas as corporações de ofício, pois determinou, em seu art. 1º, que "a destruição de todas as espécies de corporações dos cidadãos de um mesmo estado ou profissão é uma das bases fundamentais da constituição francesa"71.

Irani Ferrari acentua que a manufatura data do século XVI e foi a percussora da grande indústria, pois surgiu com o declínio do trabalho artesão e camponês, os quais acabaram se rendendo ao capitalismo industrial e se transformando em operários destes meios de produção72.

Com a Revolução Industrial, no século XVIII, a manufatura transformou-se radicalmente, devido ao advento das máquinas nas fábricas.

O novo regime instituído na Revolução Industrial impulsionou a liberdade para o exercício das profissões, permitindo o desenvolvimento de novas formas de produção e o regramento das relações decorrentes.

Os ideais de liberdade, por sua vez, não se limitavam ao exercício do trabalho, mas à condução deste, pois o elemento volitivo passou a ter destaque nas relações laborais, em detrimento dos critérios heterônomos das corporações de ofício.

Nesse sentido, o art. 1.134 do Código Civil da França, editado em 1804 e...

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