O campo geriátrico/gerontológico e o enfoque comportamental na saúde: interlocuções críticas/The geriatric/gerontological field and the behavioral focus on health: critical dialogues.

AutorBernardo, Maria Helena de Jesus
CargoARTIGO

Introdução

O presente artigo constitui parte das reflexões realizadas no doutorado e visa a debater, com base no referencial crítico-dialético, as tendências presentes na área do envelhecimento, notadamente a produção hegemônica no campo geriátrico/gerontológico (1) e sua expressão na saúde.

No decorrer do século XX, houve significativo investimento em teorias, políticas e práticas sociais, com vistas a superar a representação de velhice como problema social. A velhice foi de tal maneira positivada que assumiu outro status, inclusive com novas denominações: melhor idade, terceira idade, envelhecimento bem-sucedido, envelhecimento ativo, dentre outras. As proposições sobre envelhecimento ativo e funcionalidade, em destaque neste artigo, manifestam-se como candidatos a novos paradigmas na área por tentar reverter a antiga associação entre velhice e doença (BAR-BIERI, 2014).

Buscando construir interfaces desses conceitos com os movimentos de prevenção e promoção no âmbito da saúde, reconhecemos que, assim como a prevenção desponta como uma modalidade que questiona a prática curativa na medicina, e a promoção da saúde, como uma inovação para o setor indicando abordagem mais ampliada, o envelhecimento ativo emerge no cenário internacional em oposição à ideia de velhice como fardo e inevitável declínio funcional. São vertentes que surgem em plena crise capitalista internacional como medidas necessárias para o seu enfrentamento, seja diante do agravamento dos problemas de saúde ou ainda do crescente envelhecimento populacional, e que, por conseguinte, sofrem refluxos de distintos interesses ideopolíticos.

Influente nas políticas públicas para o envelhecimento, o campo geriátrico/gerontológico produziu conteúdos em diferentes espaços acadêmicos, agregando um campo extenso de conhecimento. Embora reconhecendo a sua importância no sentido de conferir maior visibilidade social à questão do envelhecimento, assumimos que, em nome dessa "positivação" do envelhecimento, há um verdadeiro "caleidoscópio" de ideias e conceitos que produzem consensos, dissensos e contradições. Nosso principal objetivo é reconstruir historicamente a composição desse domínio teórico-prático enquanto produção de um saber especializado e legitimado socialmente (BARBIERI, 2014; HAREVEN, 1995), realçando os conceitos de envelhecimento ativo e de capacidade funcional, bem como a filiação aos discursos da prevenção e promoção da saúde com acento nos fatores de risco.

A constituição do campo geriátrico/gerontológico: a velhice como categoria social

A definição da velhice como um dos estágios do ciclo vital remete ao processo de ordenamento das sociedades ocidentais modernas. Segundo Hareven (1995), as sociedades pré-industriais não concediam atenção especial, muito menos categorização às demarcações etárias construídas no decorrer do século XIX. Transformações sociais, econômicas e políticas confluíram em expressivas mudanças na reorganização do mundo do trabalho, na distinção entre o público e o privado, nos arranjos familiares e na formulação de saberes especialistas.

Para Groisman (2015) e Lopes (2000), a elaboração da velhice como categoria social e a emergência de disciplinas específicas para o trato desse objeto resultaram do investimento da modernidade na classificação da vida humana em fases cronológicas. Segundo os autores, esse seria o momento de maior empenho da medicina no estudo sobre o envelhecimento, demonstrando haver, até então, um desinteresse generalizado entre os médicos sobre a temática. A velhice era interpretada como um fato natural do curso de vida, equivalendo a uma etapa de preparação e espera da morte. Debert (2014) confirma que os primeiros ensaios caracterizavam a velhice como um momento de perdas físicas e sociais. "As propostas de terapias capazes de combater o envelhecimento eram tidas como miragens de rigor científico e a tal ponto desprestigiadas que um médico de respeito não se interessaria nem mesmo por pesquisas nesse domínio" (DEBERT, 2014, p. 196).

Essa desatenção não era casual. Para Donnangelo e Pereira (1976), apesar da difusão da prática médica na sociedade capitalista como uma das estratégias para a reprodução da força de trabalho, os grupos sociais eram diferenciados conforme o significado econômico e político. A extensão da assistência médica dirigia-se para aqueles que já estavam no processo produtivo ou com potencial de ingresso, como as mulheres e as crianças, de sorte a garantir a força de trabalho reserva mediante as oscilações do mercado e outros eventos.

No trânsito do século XIX para o século XX, três fatos devem ser observados: o progressivo aumento da parcela populacional de idosos(as), em face dos avanços científicos nas áreas da biologia, farmacologia e medicina (VERAS, 2009); as lutas sociais em torno dos direitos para o trabalho (TEIXEIRA, 2008); e a crescente expansão do território discursivo e prático da medicina (DONNANGELO; PEREIRA, 1976).

Os termos geriatria e gerontologia surgiram, pois, no século XX, em meio ao crescimento das especialidades médicas e modernização do hospital. O começo da geriatria é atribuído ao médico austríaco Ignatz Nascher (1863-1944), radicado nos EUA, que cunhou o vocábulo pela primeira vez em 1909 (dos radicais gregos: geron - velho, e atrikos - tratamento médico). Nascher defendia uma visão contrária ao pensamento preponderante na medicina naquela ocasião - de que a velhice seria consequência de degeneração física e mental. Para o autor, era preciso separar a velhice - acontecimento natural ou normal da existência humana - da doença - evento patológico e anormal.

Já a origem da gerontologia é atribuída a Élie Metchnikoff, sociólogo e biólogo russo, que, em 1903, sugeriu o vocábulo como alusão ao grego geron (velho) e logia (estudo). Defendia uma velhice fisiológica isenta de doenças e intencionava erigir bases mais científicas à atuação médica. Para ele, era possível descobrir as causas para a senilidade e atingir um nível "ideal" de envelhecimento (HAREVEN, 1995).

Conforme Barbieri (2014, p. 40 - grifos nossos), Nascher e Metchnikoff herdam as reflexões de Jean-Martin Charcot, do final do século XIX, ao referirem "[...] a dificuldade em separar cientificamente as doenças da velhice de doenças na velhice". Ambos tornar-se-iam referências nos estudos sobre a velhice e as enfermidades acometidas nessa fase da vida, seguindo a lógica biologicista do período.

De acordo com Barbieri (2014), do mesmo modo que os termos geriatria e gerontologia não se dissociariam tão facilmente nesses primórdios, a diferenciação entre velhice e patologia seria de difícil mensuração, convertendo-se em um dos desafios ostentados pelo campo. Em virtude dessa dificuldade no estabelecimento da cura na velhice e na elucidação do que é ou não enfermidade, a geriatria e a gerontologia investirão em instrumentais com abordagem preventiva (ou de promoção da saúde), almejando criar padrões mais próximos a um "bom" envelhecimento. Os discursos sobre envelhecimento ativo e capacidade funcional sustentarão uma nova forma de pensar e intervir sobre a velhice, não mais relativa à doença, e sim à habilidade de executar atividades do cotidiano.

Esse movimento de revisão ocorre após a Segunda Guerra Mundial, quando a velhice é considerada uma nova fase da vida e o vocábulo idoso(a) substitui a expressão velho(a), de conotação mais negativa e alusiva à imagem da pobreza e decadência. Para Peixoto (2006), a ideologia produtivista das sociedades capitalistas abastece o discurso depreciativo e sustenta que a incapacidade para o trabalho, somada à ausência de renda, seriam atributos de servidão.

No desenrolar dos anos de 1960, o termo velho(a) ficará cada vez mais em desuso para ser substituído por idoso(a), referindo-se aos indivíduos com mais de 60 ou 65 anos. Refletirá também ambiguidades ao valorizar uma etapa do ciclo vital pela sua própria rejeição. A noção de terceira idade reportará a idade do(a) jovem aposentado(a) que tem a oportunidade de montar novos projetos de vida e de consumo, incluindo sua participação em atividades culturais, lazer, de convivência e a utilização das novas tecnologias para retardar o envelhecimento e as doenças associadas (PEIXOTO, 2006). Além da terceira idade, outras classificações eclodirão, tais como a quarta...

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