Estado, Capital e Trabalho - por um Novo Pacto Social

AutorSolange Barbosa de Castro Coura
Páginas150-157

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Introdução

Após discorrer sobre a tipologia clássica de poder de acordo com a visão aristotélica e destacar que existem várias formas de um homem exercer poder sobre o outro, Bobbio afirma que de acordo com os meios utilizados pelo sujeito ativo para condicionar o comportamento do sujeito passivo, segundo a tipologia moderna o poder pode ser classificado em poder econômico, poder ideológico e poder político1.

O poder econômico, segundo Bobbio é aquele que se utiliza da propriedade de bens considerados necessários ou escassos para induzir aqueles que não os possuem a agir de acordo com o desejo dos possuidores de tais bens. O poder ideológico é fundamentado na influência que as ideias formuladas de um determinado modo, divulgadas em determinadas circunstâncias, por pessoas investidas de determinada autoridade, difundidas por meio de determinado procedimento, têm sobre a conduta dos demais. Segundo Bobbio, do condicionamento em relação às ideias nasce a importância social daqueles que sabem, dos sapientes, sejam eles clericais, intelectuais, cientistas ou de outra natureza porque "...através deles, e dos valores que eles difundem, ou dos conhecimentos que eles emanam, cumpre-se o processo de socialização necessário à coesão e integração do grupo"2.

Quanto ao poder político, este sustenta-se pela posse dos instrumentos por meio dos quais se exerce a força física (armas de todo tipo e grau): "...é o poder coativo no sentido mais estrito da palavra"3.

A análise das mudanças do sistema capitalista de produção a partir da década de 1970 demonstra a adoção do modelo ultraliberal e suas influências nas três esferas de poder apontadas por Bobbio. Na dimensão cultural, as ideias do ultraliberalismo foram difundidas por meio de forte e uníssono aparato discursivo (poder ideológico); na dimensão econômica, o capital financeiro especulativo assumiu a liderança (poder econômico) e a junção de interesses entre tais poderes fomentaram um modelo de Estado miniaturizado quanto às demandas sociais e subserviente aos interesses do capital (poder político).

O presente texto aborda a adoção acrítica do modelo econômico neoliberal imposto pelos organismos financeiros internacionais aos países pobres e aos países em desenvolvimento; as contradições que permeiam a imposição do modelo e suas consequências políticas, econômicas e sociais.

1. Rompendo com o mito do modelo único

De acordo com concepção moderna sobre os instrumentos utilizados para o exercício do poder, Bobbio destaca três modalidades: poder econômico, poder ideológico e poder político4.

No campo das ideias, mais especificamente quanto à ideologia, a contragosto daqueles que afirmam ser a ideologia algo pertencente ao passado, fato é que ela sempre foi e sempre será um forte instrumento de convencimento. A história da humanidade está repleta de exemplos do uso do poder das ideias para formular ou dar sustentação legítima a movimentos políticos, sociais e econômicos. Exemplarmente, buscou-se um forte aparato ideológico para afirmar-se a lisura da escravidão, a miséria da classe operária como consequência de seus próprios atos, o direito divino de propriedade da burguesia, o nazismo alemão etc.

Ainda que, conforme afirma Souto Maior, a ideologia do momento seja o fim da ideologia, tal fato é uma demonstração

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evidente de seu próprio uso para justificar o atual estado das coisas5.

Observando-se a readequação do liberalismo mencionada por Delgado6, desponta-se um cenário no qual o poder do discurso é utilizado pelos que representam o poder econômico para que este alcance seus interesses junto ao poder político; o valor-capital alcançou posição privilegiada, redirecionou a atuação dos Estados, iniciando um movimento de redução das políticas sociais, em especial, aquelas relativas ao valor-trabalho.

Nesse sentido, fortalecido pela derrocada do socialismo soviético e com o objetivo de ampliar sua esfera de controle sobre o cenário econômico, político e social, o ultraliberalismo procurou estabelecer-se como um modelo único e eficaz.

Na esfera das ideias e no contexto do capitalismo ultraliberal globalizado, determinadas palavras e expressões repetidas diuturnamente foram incluídas no vocabulário das sociedades modernas sem, sequer, a possibilidade de uma análise mais calma e aprofundada sobre seus reais significados. Verdadeiras palavras talismãs7 que alcançaram elevado status e se tornaram inquestionáveis no contexto econômico, político e social.

Nesse sentido, após tecer crítica ao termo globalização, Chesnais ressalta o uso de termos vagos e ambíguos, sem um sentido definido, mas que não possuem qualquer neutralidade; verdadeiros instrumentos de propagação do ideário ultraliberal que predominou nas últimas décadas do século XX. Afirma o autor que a palavra de ordem de tal ideário é adaptar-se e formula, em seguida, um questionamento: "mas adaptar-se ao quê? (...) Adaptar-se às estratégias privadas das multinacionais? (...) adaptar-se às imposições dos mercados financeiros?"8.

Abordando o ideário ultraliberal e referindo-se a América Latina, Adalberto Cardoso afirma: "trata-se precisamente de uma ortodoxia que, ademais, desqualifica leituras alternativas sobre o mundo, o que levou Oliveira (1999) a nomeá-la de totalitária. É por tratar-se de uma ortodoxia, ademais, que é possível referir-me a ela como uma forma de restrição sem precedentes dos horizontes analíticos e civilizatórios na América Latina"9.

A divulgação das ideias econômicas ultraliberais como o único modelo viável, sem uma análise mais aprofundada sobre o contexto histórico, político, econômico e social também é apontada pelo economista sul-coreano Ha-Jonn Chang em sua obra Chutando a escada. Segundo Chang a suposta história a respeito do livre-comércio e do mercado livre divulgada pelos países atualmente desenvolvidos (PADS, na terminologia do autor) e apresentada como exemplo aos países pobres e aos países em desenvolvimento não encontra respaldo na história já que, ao contrário do que é vastamente apregoado, os países atualmente desenvolvidos utilizaram-se de estratégias diversas10.

Lamentando a existência de poucos estudos sérios que tiveram o cuidado de analisar a perspectiva histórica em relação ao desenvolvimento econômico dos PADS, Chang ressalta que as "...discussões sobre a experiência britânica e norte-americana são extremamente seletivas e, portanto, ilusórias (...)"11.

Segundo o autor:

Infelizmente, nas últimas décadas, mesmo a economia do desenvolvimento e a história econômica - dois subcampos da economia que dão grande relevância à abordagem histórica - foram afastadas pela predominância da economia neoclássica, que rejeita categoricamente esse tipo de raciocínio indutivo. A consequência funesta disso foi tornar particularmente aistóricas as discussões contemporâneas sobre a política de desenvolvimento econômico.12

A ausência de contrapontos na esfera ideológica também é salientada por Delgado. Segundo o autor, a derruição relativa do pensamento crítico que, ainda que de forma indireta, passou a acolher alguns pressupostos das explicações ultraliberais sobre o capitalismo moderno, contribuiu para o "...o enfraquecimento, a partir de fins dos anos de 1970, das forças sociopolíticas e culturais classicamente opositoras da noção de império do mercado econômico privado no âmbito das sociedades democráticas"13.

No mesmo sentido, após destacar a imposição de um padrão ideológico anglo-americano aos demais países, Evans afirma estar-se diante de uma verdadeira monocultura institucional. Segundo o autor:

"...a monocultura institucional baseia-se tanto na premissa geral de que a eficiência institucional não depende da adaptação ao ambiente sociocultural doméstico, como na premissa mais específica de que versões idealizadas de instituições anglo-americanas são instrumentos de

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desenvolvimento de ideais, independentemente do nível de desenvolvimento ou posição na economia global."14

Segundo Evans, a adoção indiscriminada de receituários consagrados internacionalmente, ignorando a situação de cada um dos países envolvidos no processo de globalização econômica e os traços históricos e culturais de cada país, tem se mostrado de eficácia duvidosa. "Na prática, tentativas de imitar instituições de países avançados não são necessariamente o modo mais eficaz de tornar os ambientes locais mais favoráveis aos investidores de países ricos (ver, por exemplo, PISTOR, 2000)"15.

As críticas à imposição do modelo ultraliberal, que propõe as mesmas práticas econômicas a países em fases distintas de desenvolvimento, também são feitas por Diniz:

A grande difusão, ao longo dos últimos 15 anos, dos enfoques classificados por Evans como expressão da ‘monocultura institucional’ gerou uma propensão a desconsiderar os traços históricos como variáveis importantes para explicar diferenças de desempenho entre os distintos países. Esse vezo analítico, com consequências teóricas e práticas, implicou uma idealização dos arranjos institucionais dos países centrais do capitalismo ocidental, como se fosse possível descartar as especificidades históricas que interferem nos processos de ajuste aos imperativos externos. Igualmente relevantes são os valores e ideias que, a partir das esferas internacional e doméstica, influenciam as respostas aos desafios exógenos. No plano das políticas postas em prática, tal tendência traduziu-se, frequentemente, num processo de mimetismo acrítico, implicando a adoção de soluções extraídas de receituários consagrados internacionalmente, como se fosse possível mudar por decreto situações reais.16

As dúvidas sobre o modelo econômico único e eficaz tendem a aumentar quando se constata que tal modelo não foi adotado pelos países atualmente desenvolvidos quando se...

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