Capitalismo em crise e projetos para um Brasil em turbulência/Capitalism in crisis and projects for a Brazil in turmoil.

AutorBehring, Elaine Rossetti
CargoARTIGO

No momento em que escrevo essas linhas - novembro de 2022 -, estamos em meio às reverberações de uma conjuntura nacional gravíssima, sacudida pelas eleições gerais e presidenciais mais decisivas desta geração de lutadoras(es) e trabalhadores(as). O resultado, felizmente, nos permitiu dar uma chance ao futuro deste país continental, com a eleição de Lula (PT) liderando uma ampla frente que se formou para derrotar o neofascismo bolsonarista. Mais adiante analisaremos preliminarmente este deslocamento, por enquanto eleitoral, do terreno da luta de classes e de disputa entre projetos societários, bem como dos imensos desafios que se colocam a um projeto societário à esquerda no Brasil - o que envolve a direção estratégica assumida pela categoria de assistentes sociais -, para que a oportunidade de futuro seja palpável. Mas antes disso, é preciso realizar um percurso que permita situar a conjuntura num período mais amplo, tendo em vista ilações menos impressionistas e embebidas de imediaticidade. Vivemos tempos sombrios, com a morte pandêmica, o desemprego e a precarização da força de trabalho, a violência endêmica (que atinge sobretudo mulheres e jovens negros/as), a guerra e o desastre climático, a constituir pesadelos diários para a humanidade, aqui e alhures. O esforço neste artigo é o de trazer elementos de análise de período, buscando caminhos para respostas e projeções que efetivamente se contraponham à barbarização da vida.

O capitalismo em crise e decadência

Desde os anos 70 do século XX, o capitalismo adentrou um período de crise estrutural e decadência (1) que teve inúmeros desdobramentos e expressões ao longo das últimas décadas, mas com momentos de inflexão, sendo os mais intensos: a crise das subprimes de 2008/2009, a pandemia de Covid (2020/2021), e o momento atual, com a guerra a leste da Europa e seus desdobramentos. Houve ciclos curtos de retomada e recessão no seu interior, mas a tônica geral foi a de uma onda longa com tonalidade de estagnação que marca o período (MANDEL, 1982). Diante da crise endêmica e sistêmica, nos anos 80 do século XX, desencadeou-se uma forte ofensiva burguesa, em busca desesperada, desenfreada - e destrutiva - da valorização do valor e recuperação das taxas de lucro. No mesmo movimento, vimos a restauração do capitalismo e a dissolução da URSS ao leste da Europa, o que parecia corroborar naqueles anos a ideia "do fim da história", diga-se, de que o capitalismo seria o único horizonte possível para a humanidade. Assim, expandiu-se o neoliberalismo e suas contrarreformas, que chegaram entre nós com toda força nos anos 1990 (BEHRING, 2003).

O significado mais profundo do neoliberalismo é o de: incrementar a exploração da força de trabalho em todos os quadrantes do planeta, mediado, evidentemente, pelas particularidades nacionais; e aprofundar seu pressuposto, as expropriações contemporâneas, tendo em vista a subsunção do trabalho (e do meio ambiente) às atuais condições de produção e reprodução do capital (FONTES, 2010; BOSCHETTI, 2018). Mas é importante reter que a tônica do capitalismo nos últimos quarenta anos tem sido de estagnação, de crescimento pífio, apesar dessa monumental reação burguesa, que é econômica e política, o que se expressa pelo crescimento da direita e extrema direita no mundo e no Brasil. Afinal, para tomar medidas regressivas e impopulares, aumentou-se o poder de decreto dos poderes executivos, multiplicaram-se formas variadas de bonapartismos e ditaduras, cresceu o véu da ideologia e o reencantamento do mundo, ao lado da repressão das lutas populares e do encarceramento por um Estado forte, seja para conter as revoltas coletivas, que não foram poucas neste início de século XXI, seja para o apassivamento individual da força de trabalho, pela força simbólica e material do "exemplo" (WACQUANT, 2007).

Junto à ofensiva sobre as condições objetivas de oferta da força de trabalho, há impactos na subjetividade da classe trabalhadora que pavimentaram a hegemonia neoliberal e a configuração de um marco defensivo e até reacionário das condições das lutas de classe, a exemplo do Brasil recente. Precisamos refletir sobre quão profundamente a ideia thatcheriana de que "não há alternativa" à lógica da mercantilização de tudo, e de que "não existe sociedade, mas apenas indivíduos e famílias", derruiu a consciência de classe, aliada à precarização, ao desemprego e ao culto do empreendedorismo. Tais condições e "invasões bárbaras" fincam uma espécie de "voluntarismo mágico" nas consciências, em que a solução de tudo se encontra nos indivíduos, rebaixando a consciência de classe e fragmentando saídas coletivas, o que tem levado, inclusive, a um aumento espantoso do adoecimento mental, especialmente depressões e ansiedade, como analisam Kehl (2009) e Fisher (2020). Este tem sido um solo fértil para que as serpentes da extrema direita, do neofascismo, choquem seus ovos, parafraseando o clássico e genial filme de Ingmar Bergman (1978), O ovo da serpente, que não coincidentemente tem sido lembrado nos últimos tempos.

A crise de 2008/2009, que fez com que alguns dormissem neoliberais e acordassem pedindo socorro ao fundo público (BEHRING, 2021), longe de impor limites à sanha da valorização ou da captura de valor na esfera financeira, tendeu a socializar seus custos mais uma vez com o recorrente apelo ao sacrifício supostamente igual de todos e todas - a cultura da crise, analisada por Mota (1995). Neste passo, "temos que fazer a nossa parte", numa sociedade dilacerada por desigualdades de classe, de gênero, raciais, geracionais, e que foram aprofundadas no contexto pandêmico. A Oxfam, em relatório contundente deste ano de 2022 (2), mostra o aprofundamento da desigualdade em números espantosos, mesmo após o quadro pandêmico ter arrefecido: a riqueza dos dez homens mais ricos do mundo dobrou, enquanto que 99% da população mundial teve piora de seus níveis de renda.

Num contexto em que há desenvolvimento de forças produtivas para alimentar saudável e sustentavelmente o conjunto da população mundial, se pensarmos em alternativas à lógica mercantil e aos hábitos de consumo em curso atualmente, temos que, segundo a ONU (2022 (3)), no Relatório Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo, 9,8% da população passa fome no mundo. São cerca de 828 milhões de pessoas, quadro que foi acirrado pela pandemia de Covid a partir de 2020 e pela guerra na Ucrânia, em 2022. Cerca de 2,3 bilhões de pessoas convivem diuturnamente com a insegurança alimentar no planeta. Em função da inflação global dos alimentos, 3,1 bilhões de pessoas no mundo não têm condições de pagar uma dieta alimentar saudável. E há fortes disparidades de gênero e raça sob esses dados, pois tais situações atingem deleteriamente as mulheres e pessoas negras. Há ainda impactos de geração, já que as crianças são duramente atingidas, o que compromete/extermina o futuro, bem como as pessoas idosas, tratadas com desumanidade e descartabilidade. Vale destacar que, destes, cerca de 33,1 milhões de famintos estão no Brasil (4). As filas no Centro de Referência de Assistência Social (Cras/Suas) para acesso ao Cadastro Único em busca dos programas de transferência monetária e nas portas de inúmeros projetos sociais que solidariamente distribuem alimentos nas cidades são os testemunhos trágicos da luta pelo dia seguinte de milhões de brasileiros(as).

Vejamos as dimensões da crise do capitalismo do seu ângulo mais central: a condição do trabalho e dos trabalhadores, num capitalismo que foi caracterizado como "tóxico" por Michael Husson (2009), e como "realismo capitalista" por Mark Fisher (2020), diga-se, "uma guerra hobbesiana de todos contra todos e um sistema de exploração e criminalidade generalizada". Ricardo Antunes (2022), em seu Capitalismo pandêmico, aponta para uma nova onda de devastação do mundo do trabalho no último período, acirrada pela pandemia. Sob o jugo de um sistema de metabolismo antissocial do capital, tendo em vista uma oferta da força de trabalho em quaisquer condições e a qualquer custo para a extração de mais valia, estão em curso processos destrutivos. No limite, estes resultam na fome já referida, que guarda relação íntima com o pauperismo, uma das mais duras expressões da questão social.

Aqui operam as tendências de: rebaixamento generalizado do peso dos salários sobre o PIB, diga-se, do fundo de reprodução da força de trabalho, o que tende a ser maior nos países de capitalismo dependente, marcados pela superexploração da força de trabalho para compensar os termos de troca no mercado mundial, como nos ensina Marini (2005); uma ofensiva tecnológica com a chamada revolução 4.0, que, além de ampliar a expulsão de trabalho vivo na produção e de corroborar para as taxas de desemprego, empurra a força de...

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