Capítulo 2

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas43-84

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9 - Para descobrir as regras do agir jurídico, a ciência não tem, naturalmente, outros meios que não sejam os sentidos e o intelecto: observar e raciocinar; por outras palavras, indução e dedução.

Qual é, portanto, o dado? Dissemos há pouco que a matéria jurídica é um tecido de regras. Mas as regras são relações, não são fenômenos. As regras dedu zem-se ou induzem-se, não se sentem. Para chegar a elas é preciso intelecto, como razão ou como intuição, não bastam os sentidos. As regras jurídicas, portanto, não são verdadeiramente o dado a observar, mas já um resultado da elaboração de um dado diverso. Aquilo que cai, ou, melhor, pode cair sob os sentidos do jurista, são os atos, pelos quais se presumem as regras: atos de quem manda, de quem obedece e de quem desobe dece. Podem-se tomar as regras ou normas jurídicas como objeto do nosso estudo; antes se deve, porque esta e não outra é a matéria do direito; mas deve esclarecer-se bem que se trata de um objeto inteligível, não de um objeto sensível, a cujo conhecimento não podemos che-

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gar senão através da observação e da elabo ração dos atos. Aqui, ainda uma vez culmina, pelo lado do seu objeto, a dificuldade contra a qual tem de lutar a ciência do direito, porque o seu dado é tal que não se lhe chega com os sentidos. Outras ciências se encontram aparentemente em face de uma dificuldade semelhante; mas a ver-dade é que o seu dado é sempre um fenômeno, conquanto infinitamente pequeno, infinitamente longínquo ou impenetravelmente escondi
do; no entanto, quando constroem o aparelho que ajuda os sentidos, com a microscopia, a telescopia ou a ra
dioscopia, chegam a ver. Nós não. As nossas lentes para chegar ao dado são apenas a razão e a intuição.

Eis que, se não somos os primeiros à chegada, a verdade é que logo à partida estamos distanciados. E eis que Colonna, quando pergunta se “para chegar ao conhecimento teórico do direito convém mais tomar em consideração” as normas ou os fatos (nº 58, pág. 76 e segs.), não repara em que só os fatos, e não também as normas, são, como ele diz, “um material experimental” (pág. 78); ou, mais verdadeiramente, é assaltado por essa dúvida, mas cai, para vencê-la, num evidente equívoco entre a regra e o ato que a estabelece (v. especialmente pág. 77 e segs.).

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A verdade é, ao contrário, que, para conhecer as regras, não temos outro caminho senão o de observar os atos do direito. Atos que são, repare-se bem, todos os atos jurídicos, não apenas aqueles que, criando as regras ou, melhor, ordenando a sua observância, se podem aqui chamar, aproximadamente, atos legislativos. Infelizmente, em grande parte, os nossos cientistas limitam-se a estes; e nisso, que é um dos erros mais graves deles, não repa rou Colonna, por causa do equívoco em que o surpreendi há pouco; mas pretendem assim conhecer uma realidade, não tendo dela observado senão uma pequena parte.

O estudioso do direito civil ou do direito penal, cuja experiência é constituída somente pelo código, sem que nunca tenha visto um contrato ou um delito, assemelha-se a quem, para estudar medicina, não se utiliza senão de catálogos de remédios ou de doenças. Infelizmente, a história da ciência do direito está cheia destas caricaturas. Mas as regras do direito não estão encerradas nos códigos como numa vitrine; operam na vida, isto é, governam a vida dos homens, e, daí, o não bas tar, para conhecê-las, nem ler a sua fórmula nem aprender a sua história, mas ser preciso vê-las agir, quer dizer, ver como se comportam os homens relativamente a elas, e não só

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aqueles a quem cumpre mandar, mas também aqueles a quem cumpre obedecer; só assim as leis mostram, mais do que a sua aparência, a sua subs tância, isto é, o seu valor.

Vistos sob este perfil, todos os atos jurídicos, não só os atos legislativos, e, portanto, também os atos processuais, administrativos, lícitos ou ilícitos, civis, comerciais ou penais, as sentenças e os contratos, os tes
tamentos e os delitos, constituem, segundo a frase de Co lonna, o imenso material experimental da nossa ciência.

Imenso material. Eis outra observação a fazer no campo da metodologia. Naturalmente as comparações são arriscadas; mas não direi que uma outra ciência tenha um campo de observação mais vasto.

Teremos uma ideia do que significa todos os atos jurídicos? É preciso ter já dominado a massa com um princípio de classificação para se poder dar conta de uma tal vastidão. Já de si, qualquer das espécies deles, por exemplo, os contratos, ou os delitos, multiplica-se e ramifica-se ao infinito.

Por isso, mesmo separando da massa total uma pequena porção, isto é, os atos que interessam mais de perto a uma dada ordem jurídica (o direito vigente em um Estado), a superfície é tal que, para cultivá-la, os cientistas devem di-

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vidir o trabalho. As conhecidas divisões do direito civil, comercial, penal, adminis
trativo etc., impostas por aquela necessidade, resol vem-se, infelizmente, em restrição arbitrária do ma terial experimental. Não é preciso mais para perceber que, se, dentro de certos limites, são inevitáveis, estas divisões representam uma das maiores debilidades da ciência. Mas é muito difícil, para não dizer impossível, encontrar o remédio. A verdade é que os cientistas não são mais que homens, irreparavelmente pequenos em face da missão imane.

Provavelmente, o único remédio será alguns deles tentarem a ligação entre os vários setores e, assim, constituírem, pouco a pouco, a teoria geral; são, para isso, necessários alguns dotes particulares, entre os quais coragem e até abnegação, porque quase sempre este trabalho, que impõe o maior risco e a maior canseira, é bastante mal compreendido. Infelizmente, também nas províncias da ciência se forma não tanto o amor, que seria um bem, como o ciúme de campanário; mas é preciso não desejar, nem mesmo dos cientistas, mais do que se pode dar.

10 - Se, limitado no tempo e no espaço que interessam mais de perto uma dada ordem jurídi-

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ca, o campo é já, assim, infinitamente vasto, que virá ele a ser quando se pense que, para eliminar cada vez melhor toda a possibilidade de erro na determinação das regras do agir jurídico, é preciso acrescentar ainda, ao infinito, o material de observação com tudo o que interessa a todas as outras ordens jurídicas, de todos os tempos e de todos os lugares?

Aqui, o dado complica-se infinitamente por causa da multiplicidade das ordens jurídicas. Esta multiplicidade exprime-se melhor, considerando o direito não no aspecto normativo mas no aspecto institucional, como multiplicidade de Estados, ou, pelo menos, de socieda des juridicamente organizadas.

Explicar ou mesmo só conceber tal fenômeno é, talvez, menos fácil do que se diria; a verdade é que o comando jurídico tem, praticamente, um raio de ação limitado, no tempo e no espaço; ou, sob outro aspecto, a instituição jurídica não tem uma ilimitada força de coesão; portanto, como a instituição se resolve numa pluralidade de institutos, assim o direito se resolve numa pluralidade de instituições, e não em uma só. Este transformar-se do direito, e, por isso, este multiplicar-se, no tempo e no espaço, é que usamos chamar a sua histó
ria; por isso, ciência da história,

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ou, simplesmente, história do direito, é a ciência quando visa ao estudo dos ordenamentos passados ou dos ordenamentos lon
gínquos; antes, só quando visa ao estudo daqueles, ao passo que para o estudo destes se fala de ciência da comparação ou do direito comparado.

Mas, deste modo, o campo de observação assume tão extraordinária grandeza que é preciso, mais uma vez, a multiplicação dos cientistas e a divisão do traba
lho entre eles, pelo que se distingue os historiadores dos juristas; necessária mas triste divisão, que anula em boa parte o benefício da história, pois torna menos fá cil aquela comparação entre o passado e o presente, ou entre o próximo e o afastado, sem a qual a história perde todo o valor.

A este propósito pode ser útil, para evitar qual quer equívoco, esclarecer, ainda uma vez, o meu pensamento acerca da história jurídica e do direito com parado. O fato de, nas minhas obras, especialmente nas mais vastas e mais recentes, a observação ser limitada ao direito italiano vigente pode ter induzido alguém a pensar que julgo inútil o estudo do direito antigo ou do direito estrangeiro. Isto seria uma falsificação do meu pensamento. Para mim, o que se deveria chamar com paraçãoexterna dos fenômenos jurídicos (ou

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seja, a com paração de fenômenos, pertencentes a uma dada ordem jurídica, com os relativos a ordens jurídicas diversas, que tenham existido ou existam no tempo e no espaço) não é menos útil que a comparação interna (compara ção entre os fenômenos pertencentes aos diversos seto res de uma mesma ordem jurídica). Se faço, infelizmente, mais comparação interna que comparação externa, é isso devido, em primeiro lugar, à limitação das minhas forças, pelo que não consigo fazer as duas ao mesmo tempo, porque também sou um pobre homem; e, em segundo lugar, à convicção de que as minhas poucas forças são mais bem empregadas naquela comparação interna, que havia, até então, chamado bem menos que a outra a atenção dos estudiosos. Mas saibam os novos que, se tivesse tido os meios de nutrir os meus livros também com os sucos de uma larga cultura histórica e comparativa, eles seriam decerto bastante menos imperfeitos do que são.

A verdade é que também no campo da história e da comparação... as coisas, dizia o marquês de Colombi, ou se fazem, ou não se fazem, quer dizer, é preciso não as fazer só até o meio; e, ao fazê-las por inteiro, não chego eu, infelizmente. Vi o que me custaram aquelas, aliás, limitadas investigações de direito intermédio, que fiz duas vezes,

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ao redor dos institutos do domicílio e da assinatura. Talvez as coisas sejam diversas, um dia, quando, no setor da história do direito que mais nos interessa, isto é, no setor romano, os historiadores tiverem...

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