A carta da terra

AutorLeonardo Boff
CargoBrasileiro, doutorado em filosofia e teologia pela Universidade de Munique
Páginas79-95

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1 Respeitar e cuidar da comunidade de vida
1. 1 Da Comissão da Carta da Terra

A Carta da Terra representa uma contribuição importante para uma visão holística e integrada dos problemas socioambientais da humanidade. Ela, na verdade, assume as melhores e mais seguras intuições da ecologia e as torna fecundas na elaboração de uma nova visão das coisas na qual se fundamenta uma espiritualidade e uma ética novas. No entanto, não entende a ecologia, numa versão reducionista, como técnica de gerenciamento de recursos escassos da natureza, mas como um novo paradigma de relacio-

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namento com a natureza, vendo "todos os seres interligados", formando um imenso e complexo sistema. As quatro grandes tendências do discurso ecológico são assimiladas de forma criativa: a ambiental, a social, a profunda e a integral.

Enriquece a visão ambiental, inserindo o ambiente na "comunidade de vida". A própria Terra é apresentada como "viva com uma comunidade de vida única". Acolhendo a idéia de Gaia, um superorganismo vivo, idéia que mais e mais ganha aceitação na comunidade científica mundial. A ecologia social emerge nos temas da democracia, da justiça social e econômica, da não violência e da paz.

A ecologia profunda aparece quando se refere ao "sentido de responsabilidade universal", ao "espírito de solidariedade humana", à "reverência face ao mistério da existência, à gratidão pelo dom da vida e à humildade face ao lugar que o ser humano ocupa na natureza". E, por fim, a ecologia integral se expressa na consciência de que os seres humanos são "parte de um vasto universo em evolução" e que "a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida".

1. 2 Uma visão holística

Somente esta visão holística permite ver que "nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados e que juntos podemos forjar soluções includentes" (Preâmbulo). Estas soluções devem ser efetivamente includentes e abranger todos âmbitos da esfera humana pessoal, social e planetária, porque a humanidade chegou a um ponto crítico de sua história, pelo fato de que "as bases da segurança global estão ameaçadas". A humanidade vêse obrigada "a escolher o seu futuro [...] ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e cuidar uns dos outros ou arriscar a nossa destruição e a destruição da diversidade da vida". Portanto, para garantir o futuro, "são necessárias mudanças fundamentais dos valores e dos modos de vida" (Preâmbulo). Estas mudanças são fruto de uma nova ética, derivada da nova ótica, ética do amor, do cuidado, da precaução, da solidariedade, da responsabilidade e da compaixão.

Se quiséssemos resumir numa palavra a grande proposta políticoéticoespiritualcultural da Carta da Terra, um verdadeiro sonho libertador para a humanidade, eu diria que é o modo de vida sustentável.

Este modo de vida sustentável pressupõe a consciência de que ser humano e Terra têm um mesmo destino e que comparecem juntos, e não separados, diante do futuro. Ou juntos se cuidam e assim garantem um futuro comum ou juntos correm o risco de destruição.

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O "modo de vida sustentável" é aquele que permite a Terra, com sua beleza e integridade e com seus recursos abundantes, mas limitados, atender às necessidades atuais de toda a humanidade, aquele modo que consente a Terra reproduzirse, regenerarse e continuar a evoluir como vem evoluindo há 4,5 bilhões de anos e assim atender também às demandas das gerações futuras. O modo de vida atual globalizado é absolutamente insustentável. Sua continuação pode nos levar ao destino dos dinossauros.

Nunca, na sua história, a humanidade se confrontou com um desafio de tanta gravidade. Para estar à altura dele, tem que urgentemente mudar. Caso contrário, irá ao encontro de uma tragédia. Daí a importância da divulgação da Carta da Terra que desperta a todos para a dramaticidade da situação que é de vida ou de morte. E, ao mesmo tempo, suscita esperança e confiança, pois esta situação não é fatal. "Juntos na esperança", podemos encontrar soluções libertadoras, apontadas pelos quatro princípios com suas dezesseis indicações. Como, aliás, Michail Gorbachev o formulou muito bem em seu livro Perestroika (1987): "Desta vez, não há uma Arca de Noé que salva a alguns e deixa perecer a todos os demais; ou nos salvamos todos ou perecemos todos". Se tornarmos realidade as propostas da Carta da Terra, teremos futuro e testemunharemos uma nova irradiação da civilização humana agora unificada na mesma Casa Comum.

1. 3 A centralidade da comunidade de vida

Inteligentemente, a Carta da Terra coloca como eixo central de sua preocupação, não o desenvolvimento sustentável, como se poderia esperar, já que é dominante nos documentos oficiais dos Governos e dos organismos internacionais. Coloca, pois, a realidade que se encontra mais ameaçada que é a comunidade de vida em toda a sua esplêndida diversidade. E, junto com a comunidade de vida, coloca aquilo que essencialmente está ligado a ela que é o respeito e o cuidado. Daí se entende a formulação do primeiro princípio: Respeitar e cuidar da comunidade de vida.

Por que diz "comunidade de vida" e não simplesmente "vida"? Porque, segundo as ciências da Terra e da moderna biologia, todos os seres vivos, a começar da primeira bactéria mais originária que irrompeu há 3,8 bilhões de anos, passando pelas plantas, os animais e chegando aos seres humanos, todos possuem basicamente o mesmo alfabeto genético. Todos os seres vivos possuem os mesmos vinte aminoácidos e as mesmas quatro bases fosfatadas.

Por isso, todos somos parentes e irmãos e irmãs uns dos outros. O que realmente existe não é o meio ambiente, mas a comunidade de vida, na qual todos os seres são interdependentes e enredados em teias de inter-retro-

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relações que garantem a biodiversidade e a subsistência de todos, também dos mais fracos. Como a vida e a comunidade de vida não existem sem a infraestrutura físicoquímica da qual dependem e se alimentam, também estes elementos devem ser inseridos na compreensão da vida.

Para que surgisse a vida, o universo inteiro trabalhou, criando, a partir do caos inicial e sempre presente, ordens e complexidades cada vez mais altas. A vida mesma surgiu quando a matéria, num estágio avançado da evolução, se complexificou e, a partir do caos, se autoorganizou. Irrompeu assim a vida, como imperativo cósmico, no dizer do Prêmio Nobel de Biologia (1974) Christian de Duve. A vida é, pois, um capítulo da história do universo e da matéria que não possui nada de "material", pois é energia altissimamente condensada e estabilizada e representa um campo de grandíssimas interações.

O ser humano é um subcapítulo do capítulo da vida, um elo desta corrente vital e um membro singular desta comunidade de vida. Nos últimos séculos, ele se exilou dela, colocandose acima dela e, muitas vezes, contra ela, mostrando que pode ser o Satã da Terra quando foi chamado a ser o anjo bom. Bem diz a Carta que o ser humano "tem direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais, mas também tem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente" (I,2 a).

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