O conceito de autonomia no marxismo contemporaneo.

AutorModonesi, Massimo

Introducao

O conceito de autonomia, que aparece com frequencia nos argumentos de diversos movimentos antissistemicos e nos debates sobre as alternativas ao capitalismo em nossos dias, tem entre seus antecedentes e origens politicas e teoricas uma longa tradicao de pensamento marxista (1).

Ao mesmo tempo, seu significado foi oscilando entre diferentes concepcoes e, apenas em algumas ocasioes, foi objeto de desenvolvimento teorico sistematico. Dentre eles, destaca-se o Socialismo ou Barbarie (SoB), um grupo politico de nitida inspiracao marxista revolucionaria que, na Franca dos anos cinquenta, colocou esse conceito no centro de sua reflexao politica, buscando associar e articular os dois principais significados que circulavam no debate marxista anterior: a ideia de autonomia como emergencia do sujeito sociopolitico e a de autonomia como caracteristica do processo e do horizonte emancipatorio propriamente dito, ou seja, da construcao do socialismo.

Autonomia, independencia e emancipacao no pensamento de Marx

A presenca e a utilizacao do conceito de autonomia no marxismo e, sem duvida, difusa e variada.

Sendo uma palavra de uso mais comum e frequente que subalternidade e antagonismo, em seu significado linguistico geral, como sinonimo positivo de independencia, permite sua utilizacao por parte de Marx e Engels em numerosos e diferentes planos que vao da autodeterminacao dos povos a perda de autonomia do operario frente a maquina, passando pela autonomia relativa do Estado e a teorizacao do bonapartismo. Por outro lado, uma nocao de autonomia, ainda que na ausencia de referencias nominais, pode ser rastreada nas reflexoes de Marx sobre o trabalho vivo e a formacao da subjetividade operaria na articulacao entre ser social e consciencia social. Por ultimo, o conceito ocupa um lugar fundamental quando explicitamente designa a independencia de classe, a autonomia politica do proletariado, a auto-atividade, selbsttatigkeit (2) em alemao.

Ao mesmo tempo, na medida em que um significado especifico de autonomia se afasta do uso teorico e politico do conceito por parte dos anarquistas, aos olhos de Marx e dos marxistas a palavra fica desacreditada em sua qualidade prescritiva, orientada no plano das definicoes e do projeto politico. Em um artigo sobre a ideia de autoridade, Engels expressa claramente esse rechaco a ideia libertaria da autonomia como principio organizador e como valor absoluto.

E absurdo falar do principio de autoridade como um principio absolutamente mau e do principio de autonomia como de um principio absolutamente bom. A autoridade e a autonomia sao coisas relativas, cujas esferas variam nas diferentes fases do desenvolvimento social. Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organizacao social do futuro restringira a autoridade ate o limite estrito em que a facam inevitavel nas condicoes de producao, poderiamos nos entender; mas, longe disso, permanecem cegos a todos os fatos que fazem necessaria a autoridade e arremetem com furor contra ela (ver Engels, 1873).

Este rechaco a ideia de autonomia como essencia, metodo e forma das lutas e do processo emancipatorio sera uma constante na concepcao marxista da politica como correlacao de forcas, na qual a autonomia figura como um dado sempre relativo na construcao da independencia do sujeito-classe que nao tem valor em si mesmo, mas na relacao de conflito que configura. Contudo, para alem da polemica com o anarquismo, Marx e Engels aceitavam e promoviam a ideia do comunismo como realizacao de uma autonomia social e individual, ainda que sem a nomear como tal, na forma de "uma associacao na qual o livre desenvolvimento de cada um condicione o livre desenvolvimento de todos" (Engels e Marx, 1985: 129) e de uma sociedade regida pelo principio de "De cada um, de acordo com suas habilidades; a cada um, de acordo com suas necessidades!" (Ibid.: 14), e a posterior superacao da necessidade: "o reino da liberdade" (Ibid.: 1044). A partir desse angulo, a autonomia integral poderia ser considerada um ponto de chegada, a autorregulacao da sociedade futura, textualmente, a condicao-situacao de autodeterminacao na qual os sujeitos estabelecem as normas as quais se submetem, a negacao positiva da heteronomia e da dependencia. Nesse sentido, Marx e Engels distinguiam um principio de autodeterminacao valido para caracterizar o objetivo, mas nao as passagens do processo de emancipacao, entendido como contraposicao e luta; isto e, relacional, e, portanto, irredutivel a esferas ou ambitos totalmente separados e independentes, que implicaria assumir a exterioridade da classe trabalhadora da relacao de dominacao e do conflito que a atravessava.

Por outro lado, tampouco a ideia de autogestao--uma nocao especifica de autonomia operaria surgida em meados do seculo XX--aparece nas ideias marxianas e, ainda assim, Marx abordou uma tematica afim, a das cooperativas, assumindo uma postura claramente polemica que, se por um lado reconhecia seu valor como "criacoes autonomas", (Bourdet, 1977: 57-74) por outro desconfiava do seu carater localizado e da sua relacao com o Estado e o mercado, pois considerava que poderiam ter sentido anti e pos-capitalista apenas apos o triunfo da revolucao socialista e na medida em que o modelo cooperativo pudesse estender-se a escala da sociedade em seu conjunto.

No entanto, num contexto mais geral e empirico, como sinonimo de independencia da classe proletaria, a nocao de autonomia aparece de forma constante e reiterada no centro das preocupacoes politicas de Marx e Engels em relacao a formacao da classe como construcao politica. Nesse sentido, aparece no Manifesto: "o movimento proletario e o movimento autonomo de uma imensa maioria dirigida ao interesse de uma maioria imensa" (Marx y Engels, 1988: 120). Nestes termos gerais, como adjetivo qualificado mais do que como substantivo, a ideia de autonomia ronda o pensamento politico de Marx e Engels como uma passagem fundamental do processo de emancipacao que apenas sera se for obra dos proprios operarios, isto e, se for expressao do seu poder autonomo. Apenas com esse significado relativo a uma condicao que possibilita um exercicio de poder, o conceito aparece em sentido prescritivo--sendo expressao da existencia da classe para si--e se insere em uma logica processual que se expressa mais precisamente na ideia de autonomizacao e de construcao e exercicio de poder do que nas de independencia ou autonomia propriamente, assumindo, com Thompson, que a classe (o sujeito) nao se forma para depois lutar, mas se forma na luta. Ainda na ausencia de uma explicitacao conceitual, essa ideia abre a porta para a valoracao dos processos de subjetivacao correspondentes a incorporacao da experiencia da emancipacao, comecando por seus primordios, a condicao de independencia relativa a emergencia e a formacao de classe.

Como conclusao, ainda em meio as suspeitas derivadas das polemicas com o anarquismo, a ideia de autonomia aparece como uma peca importante na engrenagem das categorias marxianas: como principio de ruptura politica, como expressao de emergencia, poder da classe para si; e, apenas em segundo plano e com maior ambiguidade conceitual, como uma forma da futura sociedade comunista (3).

Vejamos como, sob essas bases, o debate marxista posterior retomara esta problematica.

A ideia de autonomia no debate marxista

O tema da autonomia tem sido indiscutivelmente o que, entre os tres que estamos a analisar, mais debates e polemicas tem suscitado dentro do marxismo como resultado da abertura semantica da palavra e seu maior grau de oscilacao conceitual.

Mabel Thwaites (2004: 17-22), escrevendo a partir da experiencia argentina de 2001-2002, indica cinco ideias possiveis do conceito: autonomia do trabalho frente ao capital (autogestao), autonomia do sujeito social frente as organizacoes partidarias ou sindicais, frente ao Estado, frente as classes dominantes (ideologica) e, por ultimo, a autonomia social e individual (como modelo de sociedade). Esta tipologia pode ser reordenada a luz dos debates marxistas correspondentes. A primeira definicao e, sem duvida, fundamental, mas poderia e deveria incluir um horizonte mais amplo do que o da autogestao, abarcando os processos de autonomizacao do trabalho vivo que, como vimos a partir das intuicoes de Marx, desenvolve a classe operaria italiana em geral, e em particular em Negri com o conceito de autovalorizacao. A segunda, de origem anarquista, desaparece como tal, frente as abordagens marxistas sobre o papel do sindicato e do partido, e se translada ao problema da relacao entre "espontaneidade e direcao consciente", para usar a formula de Gramsci. A terceira e de outra ordem--tatico-estrategica, em funcao do confronto com a dominacao burguesa--e, portanto, nao equivalente em nivel teorico na medida em que, em amplo sentido, ha um consenso no principio que corresponde a formacao de classe para si e do partido como expressao da autonomia politica dos operarios frente ao Estado e as classes dominantes e como caldeirao da sua autonomia ideologica--a quarta acepcao assinalada por Thwaites. Alem disso, a quinta dimensao, a mais problematica e menos generalizada dentro do marxismo, nao deixa de se vincular a primeira, isto e, a autogestao em relacao ao social, mas ao mesmo tempo, desdobra-se fora do marxismo como autonomia individual, tanto nas correntes libertarias como, fundamentalmente, no liberalismo e no terreno da psicologia e da psicanalise (4). Por ultimo, nessa tipologia nao aparece a nocao de autonomia como processo de subjetivacao politica relacionada com as experiencias de emancipacao que vamos rastreando e argumentando e que nao se pode resumir--ainda que esteja esbocada--na ideia de independencia de classe na sua acepcao classica e tradicional e vinculando-se tanto ao tema do modelo de sociedade como da autogestao.

No fundo, os usos marxistas do conceito de autonomia podem resumir-se em duas vertentes: a autonomia como independencia de...

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