O Construtivismo de Joaquín Torres García e suas Projeções Estéticas para a América Latina

AutorMaria Lúcia Bastos Kern
CargoDoutora, Professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, do Programa de Pós-Graduação em História
Páginas86-96

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A modernidade vivenciada pelos artistas, nas primeiras décadas do século XX, os estimula às experimentações de novas poéticas, às práticas de discursos em prol da autonomia da arte e do abandono da representação do mundo visível. As suas recorrentes pesquisas exigem a elaboração de textos reflexivos e estratégicos para exprimir seus pensamentos e justificar suas ideias ao público, num contato informativo direto, sem a instância da crítica de arte. O artista estabelece seu posicionamento político, no qual delimita o seu estatuto e a sua ação social. As revistas são os veículos de difusão dos conceitos, de suas obras, dos movimentos, de defesa e de combate às rejeições institucionais e do público. Elas se constituem em espaços políticos e de ação das vanguardas, de apresentação de manifestos e de projetos éticos direcionados ao futuro.

O Universalismo Constructivo de Torres García emerge após longo processo de investigação plástica e de reflexões teóricas. Desde a sua estadia em Barcelona (1891-1920), ele publica livros e artigos em revistas e jornais, nos quais expõe as suas concepções de arte, o andamento de suas pesquisas e os seus questionamentos. Nas suas obras e textos, revela o seu foco nas formas depuradas e construídas, assim como esboça a estrutura ortogonal que constituirá, mais tarde, o seu Construtivismo1. No entanto, é em Paris (1926-32) que este se concretiza em pinturas e objetos tridimensionais, nos quais começa a inserir símbolos de origem arcaica e de teor místico, conhecidos no Museu do Homem e em exposições de arte pré-colombiana. É nessa cidade que ele cria, juntamente com Michel Seuphor, a primeira revista, Cercle et Carré (1930-31).

Ela surge da ideia de formar um grupo de artistas2 e difundir a arte abstrata, em contraposição à importância que o Surrealismo assume na França. O grupo se opõe ao individualismo exacerbado e à ausência de seriedade desse movimento e projeta estabelecer a ordem diante da crise social e política europeia.

Para alguns membros do grupo Cercle et Carré, assim como para o uruguaio, o objetivo da revista é estimular o caráter espiritual da arte, enquanto outros artistas defendem a relação estreita entre arte e ciência. A revista se constitui num espaço de debate e divulgação teórica das variadas concepções de artes abstratas e construtivistas. Ela é programada para discutir os seus conceitos e pressupostos e procurar a consagração das abstrações.

Cercle et Carré congrega artistas estrangeiros que se encontram em Paris, prove-nientes de distintas correntes do movimento abstrato ou simpatizantes, oriundos do De Stijl, do Construtivismo, do Futurismo e da Bauhaus. Integram-se ainda ao grupo artistas provenientes do Dadaísmo, do Pós-Cubismo e os criadores do Purismo e da revista L’ Esprit Nouveau (1920-1925), Ozenfant e Le Corbusier3, defensores de certa conotação ética em arte e de modernidade estável.

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A heterogeneidade de pensamentos do grupo Cercle et Carré é decorrente não apenas da origem diversificada dos artistas, mas também das múltiplas concepções relativas às artes abstratas e aos distintos campos, como pintura, escultura, arquitetura, cinema e música4. Enquanto alguns artistas defendem a visão espiritual de arte, portadora de uma missão ética, outros se empenham em prol da aliança arte e ciência (matemática), com ênfase na sua plasticidade pura. Ambos os grupos têm a meta de instauração da ordem. Essas soluções propostas são contemporâneas à tentativa de manutenção da arte figurativa, do gosto pelo Cubismo e da aceitação progressiva do Surrealismo.

Desde a primeira geração de artistas abstratos, o suporte teórico de suas práticas sustentava-se em concepções filosóficas projetadas para construir um novo homem, dotado de espiritualidade, porém, sem deixar de investigar novas linguagens formais. Na época, o debate focalizava os significados de arte abstrata, e os artistas orientavam as suas pesquisas à gramática das linhas, das cores, dos volumes e dos planos, como elementos plásticos puros.

No final dos anos de 1920, as artes abstratas ainda encontram em Paris forte resistência, apesar de sua difusão por meio de exposições e publicações. As manifestações dos artistas cubistas e pós-cubistas são as mais favorecidas pelos críticos de arte e pelas revistas especializadas por preservarem, em parte, as formas da arte nacional francesa, num momento de acentuado nacionalismo5.

A denominação da revista e o seu logotipo são identificados pelas formas geométricas, que simbolizam o conceito metafísico de arte, carregadas de significações a respeito do universo e do homem (SEUPHOR, 1982). O quadrado representa a ordem ambicionada pelo grupo e identifica-se com o pensamento de Torres García, que declara no texto “Vouloir construire”: os artistas estão reunidos porque “reinam a desorientação e a desordem”6. Já o círculo tem um sentido diverso e complementar ao significar, segundo Seuphor, o poder que impõe o mundo sobre ele mesmo, em rotação dinâmica. O círculo é o eterno recomeçar, é infinito7, e vincula-se às noções de cosmos. Nos sistemas

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místicos, Deus é representado pelo círculo, numa esfera espiritual, enquanto o quadrado conecta-se ao mundo terrestre, humano e material.

As formas geométricas sugerem a retomada de símbolos antigos e estão relacionadas com a tentativa de descoberta da ordem do universo, concebida como mecanismo para solucionar a crise vivenciada pelos artistas, no início dos anos de 19308.

As explicações de Seuphor a respeito dos significados das formas geométricas são posteriores à revista e não aparecem nos editoriais e textos da revista. Elas são distintas do primeiro editorial, no qual ele evidencia que a arte orientada ao absoluto está sendo suplantada por outra que projeta atingir a verdade. No entanto, ele delimita o conceito de construção com vistas a atingir a ordem universal e a valorizar a espiritualidade9, tal como pensa Torres García. A ambiguidade e a ausência de plena concordância conduz o uruguaio a romper com Seuphor e provoca o término da revista e do grupo (1931)10.

Nesse momento, os objetos tridimensionais, as pinturas e os desenhos de Torres García são bem recebidos pela crítica de arte europeia. Ele continua a publicação de inúmeros textos, teóricos e reflexivos, em livros e artigos, nos quais divulga suas concepções. No entanto, a crise econômica internacional o obriga a voltar para o Uruguai (1934), onde não é sempre compreendido e legitimado pelas instituições oficiais11.

Em Montevidéu, Torres García estabelece diferentes estratégias para se consagrar e difundir os pressupostos de seu Construtivismo. Ele faz inúmeras conferências, exposições, ministra cursos e publica artigos e vários livros, porém, sem deixar de manifestar a sua oposição às práticas artísticas locais. Diante de certo provincianismo, ele ministra cursos, forma seguidores e assume o papel de militante de vanguarda. No primeiro manifesto (1934), declara que o seu Construtivismo se constituirá numa arte coletiva e anônima, que terminará com os estatutos de autor e gênio. Além dessa provocação inicial, faz veementes críticas à arte formalista ou presa às representações simbólicas nacionais e aos conceitos românticos presentes nas concepções institucionais.

Outras estratégias são articuladas para legitimar o Construtivismo como prática artística preponderante no país, não se limitam à formação de discípulos e seguidores, mas também de colaboradores para a criação e manutenção da Associación de Arte Constructivo (AAC, 1935)12, das revistas Círculo y Cuadrado (1936-38, 1943) e Removedor

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(1945-53) e do Taller Torres García (1942), conhecido como Escuela Sur. Os discípulos atuam como colaboradores e militantes em prol da propagação de sua poética e de seu pensamento.

A revista Círculo y Cuadrado13 aparece, em Montevidéu, como uma iniciativa da AAC e com o objetivo de fazer a difusão nacional e internacional do Universalismo Constructivo, denominação dada à sua arte no Uruguai14. Nesse momento, Torres García ministra conferências e cursos em Montevidéu e Buenos Aires sobre as novas concepções europeias de arte, em geral, similares às suas, e ao mesmo tempo expõe suas obras e escreve para o Jornal La Nación. A sua atuação se pauta num discurso cada vez mais doutrinário e persuasivo, que tem em vista liderar um grande movimento artístico em torno de suas convicções.

Os editores da revista Círculo y Cuadrado buscam dar continuidade à publicação francesa Cercle et Carré, que se constitui na segunda época e com o mesmo logotipo nos primeiros números15. Entretanto, a nova versão não tem a pluralidade de ideias e de debates, mas, ao contrário, é dogmática e repetitiva, como são os discursos de Torres García.

Alguns artigos são fragmentos de matérias publicadas em Cercle et Carré e revelam certa parcialidade nos recortes selecionados. É o caso, por exemplo, do artigo de Georges Vantongerloo, “Plastique”, que se resume na parte introdutória do original16. No texto omitido, o autor sustenta as relações de arte, ciência e matemática, com que Torres García não concorda17. Os artigos dos artistas do grupo Cercle et Carré parecem ter o objetivo de apoiar e legitimar as ideias do uruguaio e do novo movimento num momento em que este não é ainda plenamente consagrado pela crítica de arte e pelo público de seu país. Essa dificuldade deve-se, em parte, à sua postura impositiva, intransigente e polêmica. A colaboração de artistas estrangeiros da primeira fase da revista também é estimulada para alcançar maior repercussão internacional.

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