Contrarreforma psiquiátrica brasileira e medicalização do sofrimento mental na pandemia de Covid-19/Brazilian psychiatric counter-reformation and medicalization of mental distress in the Covid-19 pandemic.

AutorGarcia, Marcos Roberto Vieira

O presente artigo aborda a medicalização no campo da saúde mental durante a pandemia da Covid-19 no cenário brasileiro, a partir da análise de conteúdo de portarias recentes, de publicações em redes sociais e de entrevistas e lives de atores sociais ligados à Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e ao Ministério da Saúde. A pesquisa realizada busca compreender os caminhos pelos quais os agentes da contrarreforma psiquiátrica no Brasil se utilizaram da pandemia como meio de expandir sua influência no debate público e em políticas governamentais, tendo como pano de fundo a medicalização do sofrimento mental associado aos efeitos da pandemia.

A psiquiatria clássica se desenvolveu intrinsecamente a partir de estratégias medicalizantes. Tendo como função a higiene do corpo social, sua institucionalização no Ocidente demandou a patologização das supostas anormalidades sob o signo de doenças mentais, garantindo ao poder psiquiátrico a supervisão das estratégias de controle da sociedade, a partir do século XIX (FOUCAULT, 2010). No último quarto do século XX, com o DSM III, a medicalização no campo psiquiátrico teve um novo influxo, dada a necessidade de identificação de cada suposto transtorno por critérios acessíveis, o que levou a uma superespecificação dos diagnósticos e ao aumento exponencial das categorias listadas (RUSSO, 2004). Movimentos de resistência à lógica medicalizante no campo da saúde mental, porém, têm se desenvolvido há algumas décadas, denunciado os mecanismos de controle e interesse financeiro subjacentes (AMARANTE; NUNES, 2018).

Desde seu início, a pandemia da Covid-19 tem suscitado debates no cenário mundial em relação a suas consequências na esfera da saúde mental. Para autores próximos à psiquiatria de tradição biomédica, uma suposta "epidemia de distúrbios mentais" acompanharia a propagação da Covid-19, tanto por questões econômicas, como pelos próprios efeitos do distanciamento social e dos lutos pela perda de pessoas próximas. O contraponto ao viés medicalizante dessa abordagem do sofrimento mental, porém, se deu desde o início desse debate. Para Morgan e Rose (2020), ansiedade, tristeza ou dificuldade para dormir são respostas compreensíveis às mudanças sociais advindas com a pandemia, devendo ser entendidas como uma forma de sofrimento social. Ao entendê-las como sintomas de doenças mentais, corre-se o risco de patologizar processos de adaptação comuns a um período de incertezas.

Mais recentemente, uma série de pesquisas tem mostrado que as previsões da presumida "epidemia de distúrbios mentais", mesmo aquelas que utilizam referenciais da psiquiatria de tradição biomédica, não se confirmaram. No Reino Unido, Fancourt, Steptoe e Bu (2021) acompanharam, em três momentos, 36.520 pessoas entre março e agosto de 2020, com escalas de mensuração de depressão e ansiedade. Os níveis mais elevados de depressão e ansiedade ocorreram nos estágios iniciais de lockdown, mas diminuíram rapidamente a níveis pré-pandêmicos. Uma análise de três coortes na Holanda mostrou uma ligeira diminuição, durante a pandemia, nos sintomas de pessoas diagnosticadas com transtornos depressivos, ansiosos ou obsessivo-compulsivos (PAN et al., 2021). Em pesquisa brasileira com 2.117 participantes do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa Brasil), com idade média de 62,3 anos, os resultados das escalas de mensuração dos chamados "transtornos mentais comuns", aplicadas durante a pandemia, foram similares aos obtidos antes de seu advento. Houve uma diminuição estatisticamente significativa, contudo, ao longo de três avaliações após o início da pandemia, nos escores para depressão e sintomas de estresse (BRUNONI et al., 2021).

Apesar das evidências que apontam no sentido contrário, no cenário brasileiro o processo de medicalização do sofrimento mental como consequência da pandemia da Covid-19 tem sido bastante eloquente e orientador de políticas públicas pautadas neste processo.

A contrarreforma psiquiátrica brasileira e seus tentáculos

No cenário brasileiro, podemos identificar 2015 como um ano marcado por disputas que favoreceram o fortalecimento da contrarreforma psiquiátrica no Brasil e, com ela, a expansão da lógica medicalizante. Publicações como as de Duarte et al. (2020), Garcia (2019), Lobosque (2018) e Passos (2018) permitem detectar que, a partir de 2015, as políticas públicas de saúde mental, com garantias às conquistas historicamente recentes do cuidado integral e em liberdade, foram sendo dilapidadas por grupos com posicionamentos corporativistas e conservadores, sejam eles religiosos, sejam eles categorizadores dos padrões dos sinais e sintomas. Dentre estes, a ABP se mantém como a principal agente da contrarreforma psiquiátrica brasileira até o presente.

Passos (2018) aponta que, especialmente ao final de 2015, na tentativa de frear o impeachment de Dilma Roussef, foi feita uma "dança das cadeiras" nos ministérios. Com a mudança do ministro da saúde houve, também, a mudança na coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas. A gestão que assumiu deixou de estar posicionada em conformidade com a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, se afastando, portanto, dos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Não por acaso, Garcia (2019) aponta também que, desde 2015, a campanha "Setembro Amarelo", que se apresenta como campanha de prevenção ao suicídio, ganhou visibilidade nacional, em uma iniciativa que uniu Centro de Valorização da Vida (CVV), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); e que atrelou o suicídio unicamente ao ato em decorrência de doenças e transtornos mentais, para o qual a prevenção com "tratamento precoce" tem viés nitidamente medicalizante.

No período de 2016 a 2018, o que antes se insinuara foi acentuado. Em 2016-2017 se iniciaram os ataques às políticas de saúde mental (PASSOS, 2018). Indicado pelas forças conservadoras da psiquiatria nacional, Quirino Cordeiro Jr. assumiu o cargo no início de 2017 e os ataques à política de saúde mental passaram a ser diretos, com declarações públicas da gestão federal para favorecer a expansão dos leitos psiquiátricos, corroboradas por emissão de sucessivas portarias. Em fevereiro de 2019, as nomeações de Cordeiro Jr. como Secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, e de Maria Dilma Teodoro para a coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde - seguida por sua substituição, em fevereiro de 2021, por Rafael Bernardoni Ribeiro -, também alinhados com as forças conservadoras da psiquiatria, evidenciam a expansão da influência crescente da ABP sobre as políticas públicas no campo da saúde mental. Para Lobosque (2018), a principal reivindicação da ABP é a da reabertura dos hospitais psiquiátricos, se aliando, também, aos que promovem o enclausuramento das pessoas que usam álcool e outras drogas nas chamadas comunidades terapêuticas; o contrário, portanto, das práticas de cuidado em liberdade e das conquistas da reforma psiquiátrica.

Diante da eclosão da pandemia de Covid-19, a ABP divulgou em seu site um ofício endereçado ao então ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, em que solicita a inclusão de psicotrópicos na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) (1) , e "alertou" sobre risco de descontinuidade de alguns medicamentos ao Ministério da Saúde, sob a justificativa do uso destes para prevenir...

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