O contrato de programa

AutorWladimir António Ribeiro
Ocupação do AutorGraduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1990) e Mestre em ciências jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra (2002). Foi consultor do governo federal na elaboração da Lei de Consórcios Públicos (2005), da Lei Nacional de Saneamento Básico (2007) e de seu Regulamento (2010). Advogado do escritório Manesco, Ramires, Perez, ...
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O CONTRATO DE PROGRAMA
Wladimir António Ribeiro
Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1990) e Mestre em ciências
jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra (2002). Foi consultor do governo
federal na elaboração da Lei de Consórcios Públicos (2005), da Lei Nacional de Sane-
amento Básico (2007) e de seu Regulamento (2010). Advogado do escritório Manesco,
Ramires, Perez, Azevedo Marques.
Sumário: I. Uma reminiscência. II. Introdução. III. Contrato de programa: uma análise es-
trutural. 1. Introdução. 2. Natureza jurídica. 3. Partes. 4. Objeto. 5. Forma. IV. Contrato de
programa na prestação de serviços públicos. 1. Introdução. 2. Formas de prestação de serviço
público. 3. O contrato de programa como instrumento de prestação direta. V. O contrato de
programa no saneamento básico. 1. Introdução. 2. É constitucional se vedar a prestação no
regime de gestão associada de serviços públicos? 3. Extensão da vedação do uso do contrato
de programa. VI. Conclusões. VII. Referências.
I UMA REMINISCÊNCIA
Em abril de 2004, durante os trabalhos de consultoria desenvolvidos junto ao Go-
verno Federal para a elaboração da atual Lei de Consórcios Públicos, recebemos a visita
de Cavallo Perin, Professor de Direito Administrativo da Universidade de Turim. Dentre
diversas atividades – que incluiu um jantar com o Professor Eros Grau, então Ministro
do Supremo Tribunal Federal, onde em realidade se iniciou o diálogo adiante referido
–, estivemos em evento promovido pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, ao lado dos Professores Floriano de Azevedo Marques e Gilberto Bercovici. Após,
Cavallo Perin e sua esposa, a Dra. Gabriela Racca, e eu, fomos almoçar no tradicional
Restaurante Itamarati, no mesmo Largo de São Francisco. Conversamos longamente,
em uma agradável tarde. Foi quando deixei claro que eu percebia uma lacuna no direito
brasileiro, pois ausente instituto destinado a disciplinar as relações de cooperação inter-
governamental que não se limitavam à transferência de recursos f‌inanceiros, lacuna que
era ainda mais grave no caso de cooperação mediante a delegação da prestação de serviços
públicos de saneamento básico. A meu ver, o Brasil, por meio da Emenda Constitucional
19, de 1998, no que alterou a redação do artigo 241 da Constituição, havia adotado o
modelo italiano da gestione associata di servizi pubblici, porém o desenho precisaria ser
completado, com a previsão de instituto semelhante ao accordo di programma do direito
italiano. Porém, minha resistência era a designação accordo que, no âmbito do direito
brasileiro, denotava fragilidade, incompatível com a segurança jurídica para a cooperação
intergovernamental que envolvesse investimentos relevantes, cuja amortização demanda
razoável período. Cavallo Perin fez uma longa explicação, incursionando pela teoria do
direito, esclarecendo a resistência da doutrina italiana em reconhecer a f‌igura do contrato
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WLADIMIR ANTÓNIO RIBEIRO
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na Administração Pública, porque incompatível com o conceito de indisponibilidade
do interesse público. Além disso, contrapôs este entendimento com a doutrina alemã e
italiana – inclusive a de Tulio Ascarelli, que também foi Professor, na Faculdade de Di-
reito, ali, do outro lado do Largo de São Francisco. Concluiu que esta falsa divisão entre
contratos e acordos (ou convênios), não se justif‌icava, porque a oposição de interesses
não é intrínseca ao contrato (considerado como instituto jurídico). Neste momento
compreendi que não cabiam inovações. Como o legislador constitucional havia adotado
o regime italiano da gestão associada de serviços públicos, era o caso de se prever o seu
natural instituto complementar, com pequena inovação de nomenclatura, para torná-lo
mais adequada à sua própria natureza jurídica. Estava batizado o contrato de programa,
que dezesseis anos depois, é o tema deste artigo.1
II INTRODUÇÃO
O contrato de programa é um contrato da Administração Pública, regido pelo Di-
reito Público, que possui como partes contratantes órgãos ou entidades integrantes da
Administração Pública de entes da Federação diferentes, ou de natureza interfederativa,
para a coordenação de atividades na realização de específ‌icos objetivos que se traduzem
como exercício de competências comuns ou privativas, desde que não se resumam na
mera transferência de recursos f‌inanceiros.
A maior parte da disciplina legal desse tipo contratual está disposta no artigo 13,
da Lei 11.107, de 6 de abril de 20052, que inclusive o prevê como condição de validade
de obrigações constituídas no âmbito da prestação de serviços públicos em regime de
cooperação intergovernamental3.
1. O mencionado estudo do Professor Tullio Ascarelli é “O contrato plurilateral”, publicado pela primeira vez em 1945
na obra Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, da qual nos utilizamos da 2ª edição, com prefácio do
Professor Waldemar Ferreira, São Paulo, Saraiva, 1969, p. 255-312. Registre-se que, na doutrina brasileira, é dominante
hoje o entendimento de compreender como contratos também os ajustes em que os interesses não se contrapõem, como,
por exemplo, faz Odete Medauar: “A dif‌iculdade de f‌ixar diferenças entre contrato, de um lado, e convênio e consórcio,
de outro, parece levar à mesma categoria, a contratual” (Direito Administrativo moderno. 14. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010,
p. 238-239). Curioso que, também na doutrina brasileira, há aqueles que resistem, mesmo com o texto legal expresso,
e insistem em designar o instituto como acordo de programa, como no caso do Professor Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, que, sob a forte inf‌luência de determinada corrente da doutrina alemã, considera o consórcio, o convênio e o “acordo
de programa” não como contratos, mas como atos administrativos complexos (v.g., v. Curso de Direito Administrativo. 16.
ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 479). Neste último tema, importante a análise realizada por Alexandra
Leitão que muito bem distingue o conceito dos contratos interadministrativos dos atos administrativos complexos, inclu-
sive af‌irmando que “a assimilação do contrato interadministrativo ao acto complexo é tributária de uma visão pouco
pluralista da Administração Pública” (Contratos interadministrativos. Coimbra: Almedina, 2011, p. 138). Registre-se
que, na doutrina brasileira, é Ana Carolina Hohmann quem melhor percebeu a grande identidade entre o contrato de
programa brasileiro e o accordo di programma italiano, realizando interessante comparação entre estes dois institutos
(O contrato de programa na Lei federal n. 11.107/05. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 171 e ss.
2. Apesar de esta lei ser conhecida como “Lei de Consórcios Públicos”, não cuida apenas dos consórcios públicos, mas,
também, da gestão associada de serviços públicos que, por seu turno, como previsto pela redação atual do artigo 241
da Constituição Federal, pode se desenvolver sem consórcio público, que pode ser, para este f‌im, substituído pelo
convênio de cooperação entre entes federados. Com isso, a mais precisa designação seria “Lei de Consórcios Públicos
e da Gestão Associada de Serviços Públicos” ou, de forma mais sintética, “Lei das Parcerias Público-Públicas”.
af‌irmar que conceitua o contrato de programa, na realidade apenas ressalta sua obrigatoriedade na constituição de
obrigações no campo da prestação de serviços públicos em regime de cooperação federativa, como se pode verif‌icar de
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