Corte portuguesa e monarquia no Brasil. Obstaculos da centralizacao do estado e estrategias da advocacia provisionada/Portuguese court and monarchy in Brazil. Obstacles from the centralization of the state and strategies by non-graduate lawyers.

AutorFalbo, Ricardo Nery

1- Introdução

O principal objetivo deste trabalho consiste na investigação do significado da advocacia provisionada no Brasil durante o primeiro quartel do século XIX através dos modos e mecanismos pelos quais os advogados provisionados se relacionavam entre si, se situavam nas relações ora com Estado ora com a sociedade e se colocavam na mediação entre um e outro.

O conjunto destas relações será pesquisado com base na fonte documental denominada "Pedidos de Licença Para Advogar". Localizados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, estes pedidos constituem série documental oriunda do centro políticoadministrativo do País e reúnem vasto conjunto de documentos (pedidos e provisões, pareceres e informações, testemunhos e atestados) que, em princípio, serviriam basicamente para caracterizar o funcionamento das instituições de governo e da administração em geral. No entanto, eles revelam dimensões das experiências e trajetórias dos advogados provisionados que ajudam a caracterizar momentos e aspectos da história desse tipo particular de advocacia, bem como a descrever o modo como os advogados provisionados se viam, eram vistos e se constituíam como agentes da burocracia estatal.

Provenientes das diversas capitanias e províncias do Brasil, os Pedidos de Licença para Advogar eram a expressão de súplicas de provisão que os interessados em advogar faziam ao monarca, pessoalmente ou por procuração, através do Tribunal do Desembargo do Paço, em uma época em que os cursos jurídicos não haviam sido ainda criados e que o número de bacharéis em direito diplomados por Coimbra era insuficiente para atender a demandas tanto da sociedade quanto da burocracia do governo. Apresentados àquele tribunal da Corte do Rio de Janeiro, os requerimentos para advogar eram principalmente pedidos de prorrogação de prazo e/ou de extensão de jurisdição para os advogados continuarem no exercício de seu ofício. Com fundamento em argumentos de natureza política, econômica e social, e formulados no contexto dos movimentos liberais que conduziram o País à independência em relação a Portugal, os Pedidos investigados neste trabalho cobrem um período que vai um pouco antes da chegada de D. João VI (1808) ao Brasil até a alguns anos depois da outorga da Constituição do Império (1824). Neste trabalho, o Estado é definido segundo sua localização político-administrativa, seus agentes públicos, suas regras e determinações e seus processos de concessão de autorização para o exercício da advocacia provisionada.

No período em questão, o Brasil viveu transformações que resultaram do encontro de duas sociedades distintas: "a sociedade de corte portuguesa migrada com a família real e a sociedade fluminense que a recebeu, que tinha no ápice de sua hierarquia social os comerciantes de 'grosso trato', envolvidos no comércio intercontinental de gêneros tropicais e no tráfico negreiro" (MALERBA, 2000: 21). Se, do ponto de vista político-jurídico, o Brasil se constituiu como Nação e se construiu como Estado durante o período em que a corte portuguesa esteve instalada no Rio de Janeiro, do ponto de vista social ele não se transformou em sociedade de corte à semelhança de outras nobrezas europeias ou da própria nobreza portuguesa de outros tempos de acordo com a fidalguia que lhes era característica. Dependendo da etiqueta como elemento de sua identidade grupal, a corte portuguesa, bem como o rei e o Estado, dependia também do dinheiro dos comerciantes de "grosso trato" para cobrir suas altas despesas, comerciantes esses que não esperavam em troca senão a nobilitação pelo monarca. "No Brasil a aristocracia era nominal, ou então de posição. As origens das fortunas particulares não remontavam a favores da Coroa ou possuíam raízes feudais: representavam a recompensa de esforços individuais, dos que as desfrutavam ou dos seus pais ou avós" (LIMA, 1986: 215).

Para além da distinção entre nobreza de linhagem e nobreza de toga, a sociedade de corte no Rio de Janeiro se caracterizava também pela presença de duas estruturas sociais de comportamento antagônicas: a da Corte que criava um novo modo de sociabilidade e alterava a vida na cidade e da população em geral e a da escravidão que "continuava a exigir o recurso indispensável da força e da violência para garantir a ordem e os privilégios da minoria branca" (NEVES, MACHADO, 1999: 47). As relações entre homem branco e homem negro estavam referidas às diferenças e hierarquias da "sociedade de corte" do Brasil segundo um sistema de classificação "que privilegia os atributos liberdade e propriedade" (MATTOS, GONÇALVES, 1991: 18). Neste trabalho, estas são as principais variáveis que serão consideradas na definição da sociedade e da ocupação ou o trabalho do homem livre que não é proprietário, tal como o advogado provisionado.

Segundo a classificação acima, o advogado provisionado, que não era nem proprietário nem escravo, seria considerado, então, como homem livre e pardo, e ele solicitaria emprego público ao monarca como meio de sua sobrevivência e a de sua família. O advogado provisionado será analisado segundo o atributo "liberdade", a motivação material ou não de seus pedidos, sua relação com o monarca e outros agentes públicos e o lugar de exercício da advocacia em relação à Corte como centro de poder. Tendo em vista os obstáculos de natureza político-administrativa que marcaram as trajetórias dos advogados provisionados, serão analisadas de modo enfático as práticas que eles adotavam para ingressar e permanecer no exercício da advocacia, com o reconhecimento formal ou não do monarca.

A forma pela qual eram formulados os pedidos de provisão e passadas as autorizações para advogar traduzia a existência de diferenças de níveis interdependentes (social, político, jurídico, religioso, moral) que reforçavam as estruturas político-sociais da época, caracterizadas segundo desigualdades hierarquizadas. Neste sentido, os advogados provisionados eram hierarquicamente desigualados de modo distinto. A estrutura hierárquica do Brasil da época constituía o político como nível abrangente e velado por meio do qual a sociedade se organizava e funcionava em sua visibilidade (GAUCHET, 2005) e como meio de ação pelo qual ela agia sobre si mesma (DÉLOYE, 1999). Daí a investigação da forma como o Estado, a sociedade e os advogados constituíam o político em suas relações de mútua dependência. Daí a possibilidade de desnaturalizar o Estado como centro da atividade política e o advogado como mero objeto de regulamentação estatal ou como simples prestador de serviços públicos de que dependia o Estado.

Do ponto de vista metodológico, os Pedidos de Licença para Advogar serão abordados não como expressão da realidade político-jurídico constituída histórica e socialmente, e sim como manifestação discursiva de advogados que buscavam realizar objetivos específicos e concretos em suas vidas. Do ponto de vista teórico, os Pedidos serão analisados segundo categorias de pensamento de autores e políticos (Visconde de Uruguai, Pimenta Bueno, Tavares Bastos) que, durante a monarquia constitucional brasileira, se debruçaram sobre questões que eram no mínimo análogas aos problemas que afligiam a vida dos advogados provisionados durante o Período Joanino (1808-1822): as questões da centralização e da descentralização no Brasil.

2- Administração Estatal, Funcionário Público e Advocacia Provisionada

Tendo mandado pelo meu real decreto de 18 de março de 1801 estabelecer uma administração geral para a cobrança e arrecadação das dívidas ativas através da Minha Real Fazenda, hei por bem (...) de prover ao dito Eugênio José Gomes no dito emprego para requerer nas Execuções que nos auditórios da vila de Queluz pendem contra os devedores da minha Real Fazenda (1). Passada a Eugênio José Gomes, esta provisão de D. João VI, de 24 de setembro de 1806, revela a relação estreita que existia entre a administração do Estado e a ocupação de funções, cargos ou empregos públicos. A estrutura de funcionamento da Real Fazenda antes mesmo de o Brasil tornar-se sede da monarquia portuguesa - dependia da seleção de advogados para defender e representar seus interesses nos Estados e CapitaniasGerais. "Provisão" era o título pelo qual o soberano, através do Tribunal do Desembargo do Paço, investia uma pessoa em certo cargo ou ofício, para que o exercesse. Ela era uma mercê do poder monárquico absolutista com o objetivo de satisfazer necessidades da administração pública, e não um direito do provisionado estabelecido em lei. Como graça régia, a provisão era uma liberalidade do monarca, que podia, a qualquer momento, "mandar o contrário" (2), e revelava a "condição [própria] de sua majestade" (MALERBA, 2000: 212): a capacidade de realizar concessões.

Porém, como graça concedida pelo poder soberano, a provisão para advogar decorria da súplica dos advogados, cujos fundamentos poderiam variar segundo o momento político da história do Brasil. Além de apresentarem argumentos que poderiam traduzir a condição de brasileiro (3) ou a fidelidade ao soberano em momentos festivos (4), os advogados sustentavam com frequência seus pedidos com base na importância do emprego de advogado para a administração em geral. Em 1819, assim revelou Francisco Cirilo (5) sua visão sobre a advocacia em seu pedido de provisão para advogar na cidade da Paraíba do Norte: "meio pelo qual presta o suplicante serviços a Vossa Majestade e ao Público". Na vila de Vitória, em 1817, Manoel de Moraes Coutinho (6) formulou a razão de ser da advocacia nos seguintes termos: "servir no que for necessário ao bem do público e dos reais interesses". A importância da advocacia como serviço que era posto à disposição do Estado ficava evidenciada diante das consequências da falta de advogados nas instâncias judiciárias. Neste sentido, é ilustrativa a informação de Antonio Batalha, Ouvidor das Alagoas, no pedido do padre Ignácio Francisco de Burgos Saldanha (7), em 1818, para advogar nos auditórios seculares das capitanias da...

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