Critica a interseccionalidade como metodo de desobediencia epistemica no Direito do Trabalho brasileiro/Critique of intersectionality as a method of epistemic disobedience in Brazilian Labor Law.

AutorPereira, Flávia Souza Máximo
  1. Introdução (1)

    O Direito do Trabalho brasileiro, voltando-se à tutela do paradoxal trabalho livre/subordinado a tempo indeterminado, também serve de instrumento de legitimação das estruturas de opressão da sociedade capitalista-colonial, uma vez que o sujeito epistêmico deste núcleo protetivo é racializado, masculino e heterocisnormativo, proveniente de bases epistemológicas eurocêntricas.

    O estudo do Direito do Trabalho brasileiro, a partir da geopolítica de conhecimento, aponta para as especificidades da constituição de um sustentáculo jurídico-sociológico à formação do capitalismo no país, bem como para a persistência da lógica da colonialidade do saber no cerne da norma trabalhista pátria, que perpetua as desigualdades de gênero, raça e classe nas relações laborais contemporâneas.

    Nesse contexto, o artigo visa apresentar uma proposta metodológica decolonial para o Direito do Trabalho brasileiro. Partindo-se de uma perspectiva jurídico-sociológica (2), busca-se investigar se a interseccionalidade pode ser um método de desobediência epistêmica no Direito do Trabalho pátrio.

    Em um primeiro momento, analisa-se o postulado jurídico da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989), resgatando-se perspectivas teóricas que contribuíram para o seu surgimento (GONZALEZ, 1984; DAVIS, 2016; HOOKS, 1984; LORDE, 1984), a fim de questionar se este consiste em uma metodologia ou marco teórico.

    Posteriormente, reflete-se sobre a possibilidade de enquadramento da interseccionalidade como método de desobediência epistêmica, nos termos da decolonialidade do saber, viabilizada pela geopolítica de conhecimento proveniente dos estudos de Gloria Anzaldúa (1987). Para tanto, utiliza-se das críticas à interseccionalidade como estratégia feminista dominante para teorização das diferenças, conforme se infere dos escritos de Patricia Hill Collins (2019), Jennifer Nash (2019), bell hooks (2015), Jasbir Puar (2013), Floya Anthias (2008), Rey Chow (2006) e Danièle Kergoat (2010).

    Por fim, indaga-se se a aplicação da interseccionalidade sobre as bases epistemológicas do Direito de Trabalho brasileiro pode viabilizar a decolonialidade do saber, questionando-se o sujeito epistêmico tutelado pelo paradoxal complexo protetivo juslaboral - trabalho livre/subordinado - em termos de gênero, raça, classe e origem.

  2. Interseccionalidade: metodologia (3) ou marco teórico?

    Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo As negras duelam para vencer o machismo, o preconceito, o racismo Lutam para reverter o processo de aniquilação Que encarcera afrodescendentes em cubículos na prisão (Yzalú, 2012) Para a reflexão acerca da interseccionalidade enquanto método de desobediência epistêmica no Direito do Trabalho brasileiro faz-se imprescindível, como ponto de partida do estudo, a indagação dos meios de inserção desse termo no campo epistemológico, bem como sua difusão nos diversos campos do saber.

    O conceito de interseccionalidade não surgiu de forma isolada ou estanque, uma vez que foi precedido de diversas perspectivas teóricas na leitura das lutas sociais que fundamentaram seu surgimento (COLLINS, 2017). Não se ignora, portanto, o fato de que a origem das proposições teóricas também guarda um processo antecedente, podendo este ser identificado pelas resistências das mulheres de cor (4) no contexto do escravismo colonial, bem como pelo movimento abolicionista.

    Nesse sentido, destacam-se as propostas teóricas do feminismo negro apresentadas por Lélia Gonzalez e Angela Davis, autoras estas que, embora não apresentem a denominação específica do objeto de estudo em questão, contribuem decisivamente com os aportes epistemológicos que futuramente resultam no conceito atribuído à Kimberlé Crenshaw (1989).

    Ao analisar as relações raciais sob uma perspectiva horizontal, Lélia Gonzalez se utiliza do campo psicanalítico, trazendo a categoria político-cultural de amefricanidade no estudo do racismo constituído no Brasil (GONZALEZ, 1988). A autora afirma que o racismo se revela enquanto ideologia, uma neurose cultural brasileira que privilegiará não apenas social, mas também economicamente, àqueles que são brancos (GONZALEZ, 1984). Podese dizer que, a partir da leitura da autora, as relações estabelecidas no contexto do capitalismo estão no mesmo patamar das questões culturais e simbólicas.

    Não obstante a posição teórica adotada por Lélia Gonzalez, sua obra não sugere adesão de saída pela revolução, apontando a defesa efetiva da afirmação de direitos àqueles que se encontram excluídos social e economicamente pela ideologia do racismo. A autora traz, em sua obra, elementos que contribuem para a proposta da interseccionalidade (5), apontando que, "na medida em que existe uma divisão racial e sexual do trabalho, não é difícil concluir sobre o processo de tríplice discriminação sofrido pela mulher negra (enquanto raça, classe e sexo), assim como seu lugar na força de trabalho" (GONZALEZ, 1982, p. 96).

    Angela Davis (2016), por sua vez, também trouxe aportes à proposta interseccional, embora tenha partido de caminhos e marcos teóricos distintos de Lélia Gonzalez. Pautada pelo olhar marxista, a autora dedicou-se à análise de como o racismo se revela a partir das estruturas constituídas no contexto estadunidense, conjugando as relações de produção com os elementos de gênero e raça. Ao analisar as estruturas, Davis aponta as lutas sociais negras estadunidenses como integrantes de um movimento mais abrangente, identificado a partir de uma resistência dos trabalhadores em face do capitalismo e do imperialismo (DAVIS, 2016).

    Angela Davis (2016) não defende uma igualdade estabelecida na sociabilidade capitalista, mas sim um movimento revolucionário que trouxesse a população negra como protagonista, o que, todavia, estaria condicionado a uma aliança junto ao operariado branco. Para a autora (2016), a emancipação da negra estadunidense não estaria dissociada das lutas encampadas nos outros espaços em que negras foram violentamente colonizadas, apontando a imprescindibilidade de um diálogo construído junto à África.

    Veja-se que ambas feministas trataram, embora a partir de lentes teóricas e realidades distintas, a condição das mulheres negras, desde a contribuição na luta histórica de resistência em face à formação higienizante de Estados até a produção de conhecimento científico. As autoras destacaram a vivência das mulheres negras no contexto do modo de produção escravista para compreender como a questão de gênero se desdobra de forma específica para esse grupo de mulheres.

    Nota-se, assim, que a interseccionalidade resultou (embora não de maneira exclusiva) da convergência epistemológica de mulheres de cor do Sul (6) e do Norte, processo este que teve como decisiva a atuação do feminismo negro. Lélia Gonzalez e Angela Davis propuseram a leitura da realidade a partir da coexistência de opressões advindas das relações de classe, gênero, raça (7).

    Ademais, somam-se às duas autoras, no contexto antecessor ao surgimento do termo jurídico interseccionalidade, as contribuições de bell hooks (1984) e Audre Lorde (1984). A primeira, na obra Feminist Theory: from margin to center, denunciou o fato de que o feminismo se encontrava lastreado nas experiências de mulheres brancas que, por tais circunstâncias, encontravam-se em situação privilegiada em relação às mulheres negras, além do fato de que a luta por elas encampada revelava um caráter liberal (HOOKS, 1984). Audre Lorde, no texto Sister outsider, também afirmou a necessidade de um recorte envolvendo a questão racial no âmbito do movimento feminista (LORDE, 1984).

    Para além da academia, Rose Brewer (2005) aponta a inserção do tema da interseccionalidade na seara dos movimentos sociais, destacando que o Combahee River Collective exerceu influência sobre as feministas intelectuais, atentando-se à conexão estabelecida entre as estruturas de opressão (8).

    Assim, é inafastável a intrínseca relação entre o feminismo negro e a interseccionalidade (AKOTIRENE, 2018), de modo que, a partir de uma construção teórica-social antecedente, no ano de 1989, a jurista feminista Kimberlé Crenshaw propôs o referido termo. A autora aponta que

    A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento (CRENSHAW, 2002, p. 177). Por meio da metáfora da intersecção, Crenshaw (1989) aponta a possibilidade de haver um cruzamento entre as diversas opressões, revelando o fato de que as mulheres negras são atingidas por várias delas e, por tal razão, não podem ser compreendidas sob o enfoque de uma categoria pretensamente universal. Nesse sentido, partindo-se do pressuposto de como as opressões atingem as mulheres negras, identificase o lugar social e epistêmico em que elas se posicionam na sociedade.

    O termo se popularizou, sobretudo nos últimos anos. A centralidade da interseccionalidade nas pesquisas de ciências humanas é constantemente celebrada como uma das mais importantes contribuições dos estudos feministas (MCCALL, 2005). A interseccionalidade tornou-se o método predominante para a teorização da diferença nas ciências sociais, consolidando-se como uma "heurística feminista" sobre exclusões jurídicas sistêmicas (PUAR, 2013, p. 346).

    Talvez isso decorra da plasticidade que lhe é inerente, uma vez que a interseccionalidade não se revela como um elemento estático, podendo ser aplicada ao estudo de relações sociais envolvendo políticas públicas, saúde, educação, trabalho, assistência social, o que enfatiza...

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