Da cláusula penal

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas363-380

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29. 1 Apresentação

Consideremos a aquisição de um imóvel. Se o ato de venda for feito à vista, para ser perfeito, deve ser realizado por escritura pública (CC, art. 108). Antes, para assegurar o negócio, é costume o comprador entregar certa quantia ao vendedor a título de sinal e princípio de pagamento, figura jurídica denominada "arras", que analisaremos no próximo capítulo. Nesse documento, relacionam-se uma série de documentos, os quais o vendedor deverá apresentar ao comprador, para este verificar se a compra é boa. Assim, através da certidão obtida no Cartório de Registro de Imóveis, o comprador irá verificar se o vendedor é o verdadeiro dono; pela certidão do Distribuidor Forense, constatará se o dono é capaz; pela certidão do Cartório de Protesto, saberá se o vendedor está ou não em estado de insolvência notória, porque o insolvente não pode vender seus bens sob pena de cometer fraude contra o credor, figura jurídica analisada em nosso primeiro volume deste curso,

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capítulo 26. Oportuno recordar o princípio do art. 159 do CC: "Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante". Estão, aí, presentes a insolvência notória e a presumida.

Ao realizar o negócio, é hábito colocar, no recibo de sinal e princípio de pagamento, a seguinte cláusula: "Fica convencionado que, na hipótese de arrependimento do comprador, este perderá, em benefício do vendedor, o sinal por ele recebido. Na hipótese de arrependimento do vendedor, este devolverá em dobro ao comprador o sinal por ele pago, em consonância com o disposto no art. 420 do CC" - "Se no contrato for estipulado o direito de arrependimento para qualquer das partes, as arras ou sinal terão função unicamente indenizatória. Neste caso, quem as deu perdê-las-á em benefício da outra parte; e quem as recebeu devolvê-las-á, mais o equivalente. Em ambos os casos não haverá direito a indenização suplementar".

A devolução em dobro por parte do vendedor funciona como préavaliação das perdas e danos, ou seja, tem função penal correspondente às perdas e danos pelo não cumprimento da obrigação. O tribunal já decidiu que "as arras poenitencialis" incluem cláusula penal. "Sua aplicação tem como ante-suposto a culpa da parte que se arrepende. A perda do sinal e a restituição em dobro funcionam como penalidade, valendo como ressarcimento do dano, pré-avaliados como na cláusula penal" (in R. For. 92/697). "Se o comprador depois de entregar o sinal, resolveu desfazer o negócio unilateralmente, tal comportamento se afigura perfeitamente lícito, devendo ele, todavia, suportar as conseqüências do ato, previamente ajustadas pelas partes. A sanção contratual para o arrependimento imotivado é a perda do sinal" (in RT 716/192).

29. 2 Definições de cláusula penal

A Revista dos Tribunais publicou a seguinte situação: "Trata-se de ação de rescisão de compromisso de venda e compra de imóvel residencial, cumulada com reintegratória na posse, ajuizada pelos promitentes vendedores contra os promissários-compradores em razão de sua inadimplência, consistente na falta do pagamento das duas últimas parcelas relativas ao preço".

"Por força do compromisso de venda e compra, - continua expondo o relator - celebrado pelas partes litigantes, mediante instrumento público, e, precisamente, da cláusula 9.ª, a presente escritura é irrevogável e irretratável,

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portanto, não sujeita a arrependimento, obrigando os contratantes ao seu exato e fiel cumprimento, por si, seus herdeiros e sucessores, constituindo direito real oponível a terceiros, conferindo ao comprador o direito de obter adjudicação compulsória, nos termos do art. 1.º da Lei 6.014, de 27.12.73, caso os vendedores se recusem, depois de receber integralmente o preço, a outorgar a escritura definitiva ao comprador ou a quem ele indicar, não podendo, entretanto, o comprador atrasar-se no pagamento de qualquer prestação, bem como a qualquer outra obrigação inserida nesta escritura, hipótese que dará ensejo aos vendedores de promoverem a rescisão da presente, depois de notificado ao comprador, na conformidade do disposto no Dec.-lei 745/69, caso em que perderá em benefício dos vendedores tudo quanto tenha pago por conta do preço, inclusive benfeitorias e melhoramentos introduzidos no imóvel, sem direito a retenção ou indenização".

Constatamos a existência de uma convenção, de uma cláusula penal, exatamente para evitar o descumprimento da obrigação contratual ou da mora.

A ementa do acórdão que segue bem reflete também o que vem a ser cláusula penal: "E a previsão dessa cláusula penal tinha realmente sentido, porque ao se fazer uma interpretação sistêmica do contrato percebe-se que a obra foi contratada sob o regime de empreitada, ou seja, toda bancada pela apelante e, portanto, nada mais justo do que o acerto de uma penalidade pela mora no cumprimento das obrigações assumidas" (in RT 721/216). Nessa condição, sói invocar o conceito oferecido por Clóvis Beviláqua: "Cláusula penal é um pacto acessório302em que se estipulam penas ou multas contra aquele que deixar de cumprir o ato ou fato a que se obrigou, ou apenas o retardar".303

Este saudoso mestre, autor do anteprojeto do nosso Código Civil de 1916, continua o seu ensinamento: "Ainda que mais comum nos contratos, de onde o nome de pena convencional, também é possível nos testamentos, para reforçar a obrigação do herdeiro, de pagar o legado. Por essa razão o seu lugar é, antes, na parte da Teoria Geral das Obrigações do que na dos Contratos".304

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O nosso Código Civil não define a cláusula penal. Quem o faz é a doutrina. Por isso, vale sempre lembrar o conceito oferecido pelo Prof. Orlando Gomes: "É o pacto acessório pelo qual as partes de um contrato fixam, de antemão, o valor das perdas e danos que por acaso se verifiquem em conseqüência da inexecução culposa da obrigação".305Completa é também a definição oferecida por Washington de Barros Monteiro: "Cláusula penal é um pacto secundário e acessório, em que se estipula pena ou multa para a parte que se subtrair ao cumprimento da obrigação, a que se obrigara, ou que apenas retardar".306

Pelo exposto, tem-se que por meio da cláusula penal se insere uma multa para evitar a inexecução de obrigações contratuais. É uma convenção na qual se estipula uma pena ou multa para aquele que descumprir ou retardar a obrigação assumida contratualmente. Confira-se pelo seguinte aresto: "Não constitui renovação tácita por prazo indeterminado de locação comercial o recebimento de aluguéis após o prazo locatício, se manifesto o interesse do locador em não renovar a avença, sendo, conseqüentemente, devida a multa contratual em virtude de os locatários não terem entregue o imóvel no término do contrato" (in RT 768/293).

"A cláusula penal - esclarece Carvalho Santos - deve ser explícita, não se exigindo, para a sua validade, emprego de palavras sacramentais. Basta que do ato resulte a intenção de terem as partes querido garantir a execução da obrigação principal com a estipulação acessória de uma determinada prestação".307Por exemplo, é comum sua presença nos contratos de mútuo sendo hábito a estipulação de um acréscimo de 10% de seu valor se o devedor deixar de pagar, no vencimento, a importância da dívida ou nos contratos de locação onde as partes assumem o compromisso de pagar determinada multa se desatenderem o combinado.

29. 3 A cláusula penal está subordinada à obrigação principal

A cláusula penal aparece em uma relação obrigacional como um elemento acidental, uma obrigação de natureza acessória, com influência sobre os efeitos da obrigação principal e com a finalidade básica de atuar como

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verdadeira causa de constrangimento para o devedor cumprir a sua obrigação. Ela é aposta no momento em que nasce a obrigação principal, ou em ato separado. "A cláusula penal - explica o art. 409 do CC - estipulada conjuntamente com a obrigação, ou em ato posterior, pode referir-se à inexecução completa da obrigação, à de alguma cláusula especial ou simplesmente à mora". O vendedor que recebe, por exemplo, uma quantia substancial a título de sinal e princípio de pagamento pela promessa de vender um imóvel, sabendo da existência de pena correspondente à devolução em dobro da quantia paga, caso ele pretenda se arrepender, pensará muito antes de desistir do negócio. A cláusula penal representa, também, um meio de préliquidação das perdas e danos, evitando assim a prova do prejuízo (CC, art. 416).

Esse processo intimidatório ou essa ameaça às partes (devedor e credor) para cumprir a obrigação, representa, em última análise, um reforço ao vínculo obrigacional. Conseqüentemente, a cláusula penal, sendo uma cláusula secundária e acessória, só existirá junto a uma obrigação principal.

Como obrigação acessória é destinada primordialmente a assegurar o cumprimento de uma obrigação principal, a cláusula penal segue o destino desta (accessorium sequitur suum principale308). Devido a esse princípio, a segunda parte do artigo 184 do Código Civil determina que: "...; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal", isto porque a principal subsiste por si, não depende do acessório. "Salvo disposição especial em contrário, a coisa acessória segue a principal", lembra-se o conteúdo do art. 59 do CC de 1.916. Se um contrato for anulado, nula será a pena; se válido, também o será a cláusula penal, desde que não encerre nenhum vício próprio.

A cláusula...

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