Da escravidão à pandemia: racismo estrutural e desproteção de crianças e adolescentes/From slavery to the pandemic: structural racism and lack of protection of children and adolescents.

AutorRocha, Andréa Pires
CargoARTIGO

Palavras iniciais

Se a alma rebelde se quer domesticar Menina preta perde infância, vira doméstica Amontoados ao relento, sem poder se esticar Um baobá vira um bonsai, é só assim pra explicar (Emicida e Drik Barbosa) Abordamos a desproteção à infância e adolescência no Brasil entendendo-a como resultante do racismo que compõe a ordem social, intrinsecamente vinculado à "estrutura social, ou seja, ao modo 'normal' com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural" (ALMEIDA, 2018, p. 38). Por isso delineia as relações brasileiras desde o contexto colonial, que impetrou a opressão aos povos originários, o sequestro que forçou a diáspora africana e a escravidão, enquanto componentes centrais de formação do país, como muito bem elabora Clóvis Moura (2019). E permanece estruturando a sociedade contemporânea, pois "é um princípio organizador ou uma lógica estruturante de todas as configurações sociais e relações de dominação da modernidade" (GROSFOGUEL, 2019, p. 59).

Por isso, aderimos ao entendimento da colonialidade como síntese que envolve os impactos do racismo e do colonialismo, os quais persistem na consolidação do capitalismo e de suas contradições (ROCHA, 2021). Portanto, é essencial que as expressões da questão social sejam compreendidas a partir da relação dialética que envolve a questão étnico-racial, de classe, de gênero, geracional, territorial, entre outras, as quais impetram violências que também são interseccionadas. Audre Lorde (2019, p. 246) auxilia na reflexão ao mencionar que

Grande parte da história da Europa ocidental nos condiciona a ver as diferenças humanas segundo uma oposição simplista: dominante/subordinado, bom/mau, no alto/embaixo, superior/inferior. Em uma sociedade onde o bom é definido em termos de lucro e não em termos de necessidade humana, há sempre um grupo de pessoas que, por meio de uma opressão sistematizada, é obrigado a se sentir supérfluo, a ocupar o lugar do inferior desumanizado. Dentro dessa sociedade, esse grupo é composto por negros e pessoas do Terceiro Mundo, trabalhadores, idosos e mulheres. Neste grupo também inserimos as crianças e adolescentes, que são subjugados e/ou violentados por sua idade, classe social, cor de pele, etnia e gênero. Não obstante a isso, avaliamos que o entendimento burguês sobre a infância, apresentado especialmente por Ariès (2011), que envolve moral, disciplina, higiene e saúde física, não se aplica igualmente para todas as crianças do globo. Engels (2010) já denunciava essa diferença ao relatar as condições dos filhos da classe operária da Inglaterra. Todavia, até mesmo a compreensão assentada exclusivamente na luta de classes que tem como terreno o contexto europeu se distancia da realidade das crianças negras, indígenas e pobres da América Latina e da África, as quais têm suas vidas impactadas por resquícios do colonialismo. Esses elementos se agravam de maneira incontestável no contexto de crise de capital, em consonância com a crise da saúde pública e outros impactos da pandemia da doença Covid-19.

Este artigo decorre de estudos teóricos do desenvolvimento da pesquisa Sistemas de proteção e garantia dos direitos humanos voltados a infância e juventude em Angola, Brasil, Moçambique e Portugal. O projeto é multidisciplinar e envolve protagonistas e pesquisadores dos países em questão, permitindo uma diversidade epistêmica e possibilitando trocas e construções coletivas, em uma perspectiva de fortalecimento de diálogos Sul-Sul. As reflexões ora apresentadas foram construídas individualmente pela coordenadora dos estudos na ocasião da banca internível da carreira docente no Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina.

A título de reflexões empíricas, mencionamos duas situações emblemáticas ocorridas contra crianças negras no contexto da pandemia: a morte de Miguel e a tortura sofrida pelo "menino de 11 anos"--assim nomeado pela mídia--encontrado em estado da inanição preso a um barril. Portanto, intencionamos demonstrar que as tragédias em curso no contexto pandêmico comprovam a persistência e a agudização da colonialidade e do racismo no bojo do capitalismo periférico e dependente sob a condução da lógica neoliberal, no qual crianças e adolescentes têm suas condições precarizadas e podadas--como baobás transformados em bonsais, parafraseando Emicida e Drik Barbosa.

Racismo estrutural delineando a desproteção de crianças e adolescentes

Quando resgatamos na história brasileira a situação das crianças e dos adolescentes indígenas, negras e negros, o primeiro aspecto a ser destacado é a questão da escravidão, que impetrava inúmeros processos de extrema violência. As crianças indígenas eram submetidas à escravidão e aos processos doutrinadores impostos pelos jesuítas (CHAMBOULEYRON, 2013); já as negras ainda se deparavam com o sequestro e a violência imposta pelas viagens em navios negreiros, quando "escapavam da morte prematura, eram paulatinamente afastadas de seus familiares". Segundo Florentino e Góes (2013, p. 180), "antes mesmo de completarem um ano de idade, uma entre cada dez crianças já não possuía nem pai nem mãe".

A perversidade era tanta que até a alforria dos pais as prejudicava, pois muitas vezes elas não podiam acompanhá-los. Os autores afirmam que os abortos e o infanticídio compunham o cotidiano de mães escravizadas e seus filhos, uma vez que a vida na escravidão não merecia ser vivida. Por outro lado, enfatizam que havia redes de solidariedade entre as pessoas escravizadas, as quais criavam estratégias para cuidado, proteção e afeto dessas crianças. Mas para a sociedade escravocrata até a morte era naturalizada,

[...] não era encarada como uma tragédia, outras crianças poderiam nascer substituindo as que se foram. [...] Essa maneira de encarar a vida na infância e mesmo a morte, torna a criança figura pouco mencionada na correspondência entre metrópole e colônia, e é fácil compreender que a criança negra é ainda mais esquecida [...]. (SCARANO, 2013, p. 110). Elas tinham a infância, as mães, os pais, a vida e a humanidade roubadas pelo estatuto da escravidão. No contexto da mercantilização escravocrata, mulheres e crianças eram menos valorizadas, porque a lógica da escravidão brasileira priorizava os homens com idade produtiva:

[...] antes dos oito anos eram crianças, depois dos 35, velhos, pouco aproveitáveis para o trabalho pesado da cana. O 'envelhecimento' ocorria cedo, assim como o fim da adolescência: a partir de oito anos e até os doze um escravo já era classificado como adulto [...]. (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 77). O Código Filipino pouco se referia à proteção à infância e adolescência. A figura específica voltada a este público era o Juiz de Órfãos, que decidia em relação à questão dos bens em caso de falecimento. Segundo Silva (1997) havia a importação do modelo português (1) vinculado a ações de filantropia das Santas Casas de Misericórdia, nas quais as crianças não permaneciam muito tempo institucionalizadas, pois eram conduzidas para viver com famílias de "criação". Nesta dinâmica, as crianças negras muitas vezes eram tratadas como escravas dessas famílias. Portanto, eram submetidas à lógica normativa que as subjugava genericamente como mercadorias e seres inferiores, o que permitia a violência (2) do genocídio, das mortes, torturas, adestramento, suplício e trabalhos que as levavam à situação de exaustão extrema.

Segundo Venâncio (2013), quando institucionalizadas, as crianças negras ou pobres se tornavam aprendizes de marinheiros e viviam em condições precaríssimas, sendo, inclusive, exploradas no bojo do contexto da expansão ultramarina, acompanhando a tripulação das caravelas. Ramos (2013) aponta que, enquanto alguns adolescentes eram carregados nos...

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