Da incidência marxista na formação profissional e produção acadêmica em Serviço Social: notas introdutórias/On the marxist impact on professional training and academic production in social work: introductory notes.

AutorPontes, Reinaldo Nobre

Introdução

O presente ensaio possui a peculiaridade de se mesclar com movimentos de minha própria trajetória profissional, pois me graduei em Serviço Social na primeira metade dos anos 1980, quando a reconceituação abria espaços para novos ares para a profissão, fazendo meus primeiros contatos com a tradição marxista e a obra marxiana (MARX, 1982; CARVALHO, 1983; FALEIROS, 1985; SANTOS, 1985). No mestrado, realizado na primeira metade dos anos 1990, fiz contato com a crÃÂtica marxiana àreconceituação marxista(chamada por Netto (1991) de "intenção de ruptura"), quando me aproximei da perspectiva da Escola de Budapeste (LUKÁCS, 1979a; HELLER, 1985), da Escola de Frankfurt (MARCUSE, 1984) e também com aproximações muito importantes a Hegel (1987) e através de Garaudy (1983) e Konder (1991). Tais sÃÂnteses aparecem em Pontes (2016) e visaram favorecer a superação de uma compreensão problemática quanto àdialética, seja por seu puro "abandono", seja por sua esterilização positivista.

Nos anos 1990, militando na direção da Abess, hoje Abepss, tive oportunidade de forte inserção no processo de construção das Diretrizes Curriculares de 1996 (ABESS/CEDEPSS, 1996), trazendo para este processo o acúmulo anteriormente citado. Experiências neste perÃÂodo na gestão acadêmica e docência na graduação puseram-me em contato com os desafios de implantar e implementar novos projetos pedagógicos àluz das diretrizes.

Mais recentemente, nos anos 2010, como professor permanente de programa de pós-graduação em Serviço Social e lÃÂder de grupo de pesquisa, estudamos ao longo de dez anos a formação profissional sob as "diretrizes". Nesse ambiente, também tive como experiência a gestão de programa de pós-graduação, vendo de perto os imperativos da avaliação quadrienal da CAPES, seus dilemas e contradições.

Os acúmulos de tais experiências se dirigiram àbusca de compreender os sistemas de mediações que articulam as categorias "formação profissional" e "produção de conhecimento", "Serviço Social" e "marxismo". De fato, posso me considerar um sujeito privilegiado, "testemunha atuante" desse processo que aqui em poucas páginas sumariarei.

Talvez não exista nenhuma profissão que se assemelhe ao Serviço social no que tange a uma teoria social que tenha feito um processo de chegada-assimilação-crÃÂtica-autocrÃÂtica (NETTO, 1989; TAVARES, 2013). A partir do marxismo como uma teoria social, e tendo apenas a realidade brasileira como foco de análise, problematiza-se a relação histórico-teórico-metodológica neste largo perÃÂodo histórico que medeia desde a chegada pela reconceituação até as tendências atuais, buscando alcançar suas influências tanto no complexo processo de formação profissional quanto de produção acadêmica. Dada a amplitude temporal e temática, será feito em largas e grosseiras pinceladas. A base metodológica será a pesquisa bibliográfica nas bases de dados dos extratos A1 (Qualis Capes), estabelecendo como critérios artigos que façam análises da relação entre as categorias já mencionadas.

O primeiro item apresenta, sem novidades, as bases da teoria social marxiana, diferenciando-a da tradição marxista e ressaltando sua atualidade e complexidade. No segundo, estabelecemos a correlação dela com a formação profissional, interpretando os largos movimentos ocorridos no processo histórico. O terceiro item aborda finalmente a correlação da teoria mencionada com a produção de conhecimento na profissão. Em ambos busca-se identificar os movimentos, as tendências históricas operantes, os avanços, os retrocessos e os perigos. As aproximações conclusivas encerram o artigo.

Pilares da teoria social marxiana: problema e tensões

Partilho da ideia de que a observância do "modo de construção" da teoria social de Marx (TSM) é tão importante quanto ela mesma. Chama-me atenção no evolver de construção de sua teoria social como Marx, em parceria com Engels, constroem-na, transitando com liberdade em pensar o mundo em movimento, o que certamente aprendeu com Hegel em sua historicidade dialética, contraditando a concepção kantiana (HEGEL, 1987). O jovem Marx, despossuÃÂdo ainda de uma noção mais elaborada do que era a ordem burguesa, ou como "funcionava" o capitalismo, percebia o mundo nas suas determinações ainda mergulhado nas raÃÂzes prussianas e da influência da esquerda hegeliana. Mas isso não lhe impediu de aprender com Hegel desde sua dialética de ponta-cabeça, que muito lhe favoreceu e determinou a compreensão do mundo como dialética e historicidade; por exemplo, em CrÃÂtica àfilosofia do direito critica a dialética hegeliana, mas a adota na sua própria teoria social, não sem antes tratar de inverter seu idealismo estrutural (NETTO, 2009; 2011).

A mencionada liberdade facultou-lhe dialogar criticamente sempre com diferentes concepções de mundo--inclusive colidentes entre si--, como é o caso do materialismo mecanicista de Feuerbach e o socialismo utópico francês de Proudhon, Saint-Simon, Condorcet e Fourier. Em A ideologia alemã (2001) critica Feuerbach fazendo aporias às suas concepções, no entanto, segue pelas trilhas do materialismo filosófico, mas criticando seu flagrante mecanicismo.

Quanto àconstrução do pilar revolucionário de sua teoria, não pairam dúvidas quanto ao movimento que realizou, desde ser um "democrata radical" na sua juventude até se tornar um autêntico intelectual revolucionário. Tal caminho precisava ser maturado pelas experiências que passou desde os estudos no campo estritamente da crÃÂtica filosófica, passando pelos embates com os reformadores sociais e com a crucial aproximação, apropriação e superação da economia polÃÂtica. Quando amadurecido no campo dos fundamentos teórico-metodológicos, opera seu aufheben, superando-se na compreensão polÃÂtica, econômica e social da ordem, cujos estudos tornaram-se objeto de vida (não apenas intelectual). Incluam-se as menções fundamentais, nessa construção, da direta participação no movimento da luta operária e a constituição a direta participação no movimento social da luta operária e constituição da "Internacional socialista", cujo roteiro e caminho têm muito a ver com os desdobramentos prático polÃÂticos do Manifesto comunista (MARX; ENGELS, 2005).

Assim, a forma dialética e processual de construção de uma teoria (vista como acompanhamento pela razão das categorias vistas como "modo de ser do ser social"--MARX, 1982) é tão importante quanto a própria teoria social, pois que impõe coerência interna e leciona o modo de perpetuar tal modo de concepção, de leitura do mundo e de práxis social.

Os pilares do pensamento marxiano constitutivos da teoria social em foco: dialética materialista, teoria revolucionária e teoria do valor trabalho são indissociáveis e apresentam complexidade inerente àcada dimensão e sua articulação, seja no estrito sentido teórico, seja aplicada àqualquer área de ação social, é muito elevada. Sartre (1960), num momento de grande felicidade, afirmou que o "marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo", revelando o poder incontornável do pensamento crÃÂtico de Marx. Superado será, certamente, quando a ordem burguesa, cujas entranhas desvela, for superada também, o que, dadas as circunstâncias--mesmo que perifericamente capturadas--, não se observa para além da própria crise dessa ordem, indÃÂcio de surgimento de nova sociabilidade no horizonte próximo (ANTUNES, 2020; RAICHELIS; ARREGUI, 2021).

Arrisco dizer que o modo como se constrói o pensamento diante da realidade é outro pilar complementar que forçosamente há que ser considerado para o ensino-prática da própria teoria social. Tal constatação nos conduz a pensar nos tempos presentes em similitude aos tempos do nascimento do pensamento de Marx; operar o diálogo com uma multiplicidade de formas teórico-metodológicas de compreensão da realidade objetiva-subjetiva do ser social. Considerando ser na contemporaneidade uma quantidade expressivamente maior que naqueles tempos, a tarefa do mencionado diálogo torna-se muito mais espinhosa, mas não menos necessária, sob pena de nos arrojarmos num reducionismo do alcance da fecunda teoria social crÃÂtica. Insisto, sua solidez depende tanto com a realidade objetiva, quanto com as teóricas interpretações dela--entendidas como campo de batalhas da razão-teórica-histórica-polÃÂtica.

Outro problema de grande fôlego que se apresenta no pensar sobre os "pilares" da TSM refere-se (voltando ao ponto) àdensidade e profundidade de cada um (em particular) e dos sistemas de mediações complexas que se apresentam entre elas, senão vejamos:

--A dialética (desde a idealista até a materialista) é um pilar cuja compreensão não dispensa a imersão no terreno da filosofia (tal como Marx fez) para apanhar em Hegel (em luta com Kant e seguidores) suas determinações, bem como os elementos de superação crÃÂtica. Mas não só, pois, se bem compreendidos, tanto em Marx quanto em Hegel, os insuperáveis elementos da observação e intervenção do/no real se achavam presentes. Não é possÃÂvel se arvorar na compreensão da dialética sem o recurso àprópria dialética da história no calor da hora. Ou seja, tanto para Marx, quanto para...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT