Da religião civil

AutorJean-Jacques Rousseau
Páginas213-227

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Os homens não tiveram, a princípio, outros reis a não ser seus deuses, e outro governo senão o teocrático. Raciocinaram como Calígula, e seu raciocínio, então, foi justo. Faz-se necessária uma longa alteração de sentimentos e de ideias para que se possa resolver a aceitar seu semelhante como senhor, e vangloriar-se de que se sentirá bem.

Somente pelo fato de colocar Deus à frente de cada sociedade política, concluiu-se que houve tantos deuses como povos. Dois povos estranhos, e quase sempre inimigos, não puderam, por muito tempo, reconhecer um mesmo senhor: dois exércitos em combate não podem obedecer ao mesmo chefe. O politeísmo resultou, assim, das divisões nacionais, e disso a intolerância teológica e civil, que naturalmente é a mesma coisa, como se dirá logo mais.

A fantasia dos Gregos de reencontrar seus deuses entre os povos bárbaros surgiu daquela que também tinham de se considerarem os senhores naturais desses povos. Porém, é uma erudição muito ridícula, em nossos dias, procurar a identidade dos deuses das diversas

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nações; como se Moloch, Saturno e Cronos pudessem ser o mesmo deus; como se o Baal dos Fenícios, o Zeus dos Gregos e o Júpiter dos Latinos pudessem ser um só; com se pudesse existir algo de comum em seres quiméricos, portadores de nomes diferentes!

Pergunta-se: como não havia guerra religiosa no paganismo, em que cada Estado tinha seu culto e seus deuses? Respondo que era justamente por isso, pois tendo cada Estado seus culto próprio, como seu governo, não distinguia absolutamente seus deuses de suas leis. A guerra política era também teológica: os departamentos dos deuses, por assim dizer, eram fixados pelas fronteiras das nações. O deus de um povo não exercia qualquer direito sobre os outros povos. Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos; partilhavam o império do mundo: o próprio Moisés e o povo hebreu concordavam às vezes com essa ideia quando falavam do Deus de Israel. Consideravam, é certo, nulos os deuses dos Cananeus, povos proscritos, condenados à destruição, e cujos lugares deveriam ocupar; vêde, porém, como eles falavam das divindades dos povos vizinhos que lhes era proibido atacar! “A posse do que pertence a Chamos, vosso Deus”, dizia Jephté aos Amonitas, “não lhes foi legitimamente concedida? Nós possuímos pelo mesmo título as terras que foram adquiridas por nosso Deus vencedor”14.

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Mas quando os Judeus, submetidos aos reis da Babilônia e, em seguida, aos reis da Síria, se obstinaram em não reconhecer outro deus que não o seu, essa recusa, considerada como uma rebelião contra o vencedor, atraiu sobre eles as perseguições que se leem em sua história, e de que não se conhece qualquer outro exemplo antes do advento do cristianismo15.

Estando cada religião unicamente sujeita às leis do Estado que a prescrevia, não havia outro meio de converter um povo a não ser pela submissão, nem outros missionários que não fossem os conquistadores e, sendo lei dos vencidos a obrigação de mudar de culto, era preciso vencer antes de se cogitar disso. Ao invés de os homens combaterem pelos deuses, era como se lê em Homero, em que eram os deuses que lutavam para os homens; cada qual reclamava para o seu a vitória, e a pagava com novos altares. Antes de conquistarem uma praça, os Romanos intimavam seus deuses a que a abandonassem, e quando eles deixaram aos Tarentinos seus deuses irritados, é que consideravam esses como submetidos aos seus e obrigados a lhes prestar homenagem: deixavam aos vencidos seus

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deuses, assim como suas leis. Comumente impunham um só tributo consistente numa coroa ao Júpiter do Capitólio.

Enfim, como os Romanos houvessem estendido seu culto e seus deuses com seu império, e mesmo adotado os dos vencidos, ao concederem o direito de cidade a uns e a outros, os povos desse vasto império viram-se insensivelmente na posse de uma infinidade de deuses e de cultos, quase sempre os mesmos em toda a parte; eis a razão por que o paganismo se tornou, afinal, conhecido em todo o mundo como uma só e mesma religião.

Foi nessa circunstância que Jesus veio estabelecer um reino espiritual na Terra; o que, ao separar o sistema teológico do político, fez com que o Estado deixasse de ser uno, e provocou as dissensões internas que jamais deixaram de agitar os povos cristãos. Como essa nova ideia de um novo reino do além-mundo não entrasse jamais na cabeça dos pagãos, olharam sempre os cristãos como verdadeiros rebeldes que, sob uma hipócrita submissão, só buscavam o momento de se tornarem independentes e senhores, e usurparem jeitosamente a autoridade que fingiam respeitar em sua fraqueza. Foi essa a causa das perseguições.

O que os pagãos temiam aconteceu; tudo mudou então de aspecto; os cristãos humildes mudaram a lingua-gem, e logo se viu esse pretenso reino do outro mundo, sob o governo de um chefe invisível, transformar-se no mais violento despotismo.

Entretanto, como sempre houve um príncipe e leis, desse duplo poder resultou um conflito perpétuo

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de jurisdição que tornou impossível toda boa “politie” nos Estados cristãos, e não mais se conseguiu saber que senhor ou ministro se está obrigado a obedecer.

Contudo, muitos povos, mesmo na Europa ou nas suas vizinhanças, quiseram conservar ou restabelecer o antigo sistema, sem que obtivessem êxito; o espírito do cristianismo a tudo venceu. O culto sagrado sempre esteve ou se tornou independente do soberano, e sem a necessária ligação com o corpo do Estado. Maomé teve propósitos muito sensatos, soube ligar bem seu sistema político, e enquanto seu governo durou sob os califas...

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