Os dados da equação

AutorPaulo Emílio Ribeiro De Vilhena
Ocupação do AutorProfessor Emérito da Faculdade de Direito da UFMG
Páginas13-80
Capítulo II
OS DADOS DA EQUAÇÃO
1 PRELIMINARES
A divisão do direito em público e privado, na doutrina clássi-
ca, desde a forma lapidar em que a lançou Ulpiano – publicum ius
est quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singu-
lorum utilitatem −, constitui-se em um dos temas mais árduos da
ciência jurídica.
Deve-se isso a que seu exame envolve uma multiplicidade de
acepções jurídicas e uma sintonização das sucessivas e variadas
posições assumidas pelo Estado, como instrumento de ação jurí-
dica, em suas relações com os indivíduos.
Estaria na historicidade da divisão, talvez, o seu elemento
contingente de maior signicação2.
Contudo, a precariedade e as diculdades em precisar-se o
que se deva entender por direito público e por direito privado,
ainda como conteúdo histórico, resultam na insustentabilida-
de das teorias até agora elaboradas, em virtude da evolução dos
2 Para a imediata apre ensão do plano evolutivo da div isão, vide PFAFF,
Dieter, Das Problem der Unterscheidung ‘Oentl iches und Privates Recht’
in der Entwich lung der sowjetischen Rechtslehre. In : SPIES, 1968, v. 70, p.
129 -131.
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PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA
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conceitos jurídicos e da constante remodelação por que passa a
ciência3 e a técnica de agrupamento e apreensão de relações de
vida pelas normas de direito.
Somente em nossos dias – para o futuro, mais, talvez muito
mais – é que o aperfeiçoamento e a despolitização da técnica ju-
rídica vêm ensejando mais nítida, objetiva e imediata apreensão
dos dados conceituais de composição jurídica, sobre que se er-
guem os marcos divisórios da dicotomia, apenas entremostrados
na doutrina clássica.
À falta de uma participação correta do analista, de uma ade-
quada instrumentalidade no processo arregimentador de dados
e, sobretudo, da rigorosa delimitação técnico-jurídica de cada um
deles, mal simulou a ciência jurídica sua impotência em funda-
mentar uma estrutura sólida para explicar o fenômeno que secu-
larmente pressentia.
Compendiando todas as teorias explicativas do fenômeno na
única versão de que a divisão do Direito em público e em privado
caracteriza-se pela absolutização de antítese4, Kelsen relativiza-a,
subentendendo-a arbitrária ou mesmo desnecessária, eis que não
existe contraposição entre o político e o privado no âmbito do
direito subjetivo5. Em observação e focagem tipicamente socioló-
gica, o insuperado chefe da Escola de Viena diz que o dualismo,
direito público e direito privado, tem um caráter ideológico6.
3 Pound faz coi ncidir, possivelmente ao in uxo da lei dos três e suces sivos
estados de Comte, a maturid ade do direito com o racionalismo metafísico
da elaboração legi slativa, que se expressa na matu ridade da lei, aqui repre-
sentada pelo seu fetich ismo, na Escola da Exegese (cf. POUND, 1965, p. 34
e 56).
4 “[…] die Verabsolutierung des Gegen satzes von öentlichem und private m
Rec ht ”.
5 “Dass dieser gan ze Gegensatz zwisc hen dem Politischen und dem Privaten
im Bereich des subjeltiven Rec hts nicht besteht” (cf. KEL SEN, 1983, p.
285-286).
6 “der ideologische C harater des Dualismus” (op. cit ., p. 285).
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É evidente que não se pode extirpar do Direito o fundo
pré-ideológico que preside a elaboração de todas as suas regras
e a construção, unitária e versatilizada, do ordenamento jurídico.
Mas o ideológico, aqui, ca sempre no fundo do quadro, de que se
parte para a criação, a organização, a superposição e a direção das
relações jurídicas como técnica estruturada e, portanto, sedimen-
tada de tutelar interesses, quaisquer que sejam eles. Estar-se-ia
mais rente com as bases da teoria do direito se, ao invés de car
no plano ideológico, o notável tratadista remontasse a Jhering, e a
Josserand mesmo, e explicitamente reconhecesse que o princípio
da nalidade é que rege toda a construção jurídica, sem esquecer
jamais que a sua dinâmica jurídica tem caráter eminentemente
funcional.
Como se verá adiante, não há por onde sucumbir-se a uma
visão fetichista da summa divisio, nem para ser rejeitada nem
para ser admitida.
O esmiuçamento dos dados componentes da ordem jurídica
e sua função, dentro do material de investigação fornecido pela
ciência jurídica de nossos dias, é o método mais adequado e tal-
vez o mais exitoso de se compreender este implacável fenômeno
da divisão do Direito em público e privado e de que nunca nos
conseguimos abstrair e menos ainda escapar.
O cerne da questão, porém, não está no direito subjetivo a que
se remete Kelsen, sabendo que, por sua universalidade conceitu-
al, se tornava o suposto altamente precário para sobre ele assen-
tar-se qualquer critério liberador da summa divisio. Talvez tenha
sido a fórmula mais ecaz de o tratadista, rejeitando a bipartição
clássica como incompatível com sua teoria normativa, evitar de
antemão quaisquer ssuras que a pudessem comprometer.
O punctum pluries não está no direito subjetivo, mas no prin-
cípio da tutela jurídica que é resguardada pela tonalidade ou es-
pécie de sanção.
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