Dano existencial trabalhista

AutorCarlos Alexandre Cabral
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas168-177
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prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e da
boa fama), sem prejuízo das medidas cabíveis na esfera penal e pedido de
indenização por dano moral.
89. DANO EXISTENCIAL TRABALHISTA
O instituto dano existencial surgiu no início dos anos 90 do século pas-
sado quando os professores italianos da Universidade de Trieste Paolo
Cendon e Patrizia Ziviz, após realizarem pesquisas jurisprudenciais, iden-
tifi caram vários julgados como danos biológicos que não se enquadravam
como tal, mas, como um novo tipo de dano.
A partir daí, organizaram vários encontros acadêmicos e publicaram
diversos artigos em periódicos sobre o novo instituto, então denominado
por eles de “dano existencial”, promovendo em novembro de 1998 naquela
universidade um Congresso sobre o tema(25).
A legislação brasileira que antes da Reforma Trabalhista não continha
dispositivo específi co prevendo o dano existencial e, para seu reconhecimento,
se baseava em dispositivos constitucionais (art. 1º, incisos III e IV, o art. 5º,
incisos V e X) e do Código Civil (arts. 11 a 21 e 186 e 927), com o advento
da Reforma passou a contar na seara trabalhista com o artigo 223-B da
CLT, que menciona textualmente a ofensa existencial nos seguintes termos:
“Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a
esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são titulares
exclusivas do direito à reparação”.
O trabalhador como ser humano tem seu projeto de vida, que normalmen-
te é constituir família, acompanhar os fi lhos em seu crescimento, estudar etc.
(25) “De fato, deve-se à chamada Escola Triestina [da Universidade de Trieste / Itália] a sua
origem, na década de 90. Paolo Cendon, professor daquela Universidade, juntamente com
a professora Patrizia Ziviz, analisando a jurisprudência sobre danos biológicos, identifi caram
vários casos que, a rigor, não poderiam ser decididos sob aquele rótulo. Em artigos doutrinári-
os escritos para a Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, nos anos de 1993 e 94,
cunharam a expressão danno esistenziale para agrupá-los. Fundamental, também, foi o Con-
gresso que ambos os professores organizaram em novembro de 1998, na Universidade de
Trieste, tendo como tema específi co os danos existenciais. Já a partir da metade da década de
90, a jurisprudência italiana começou a adotar tal nomenclatura, abandonando a classifi cação
tripartida dos danos indenizáveis, usada pela Corte Constitucional italiana, na famosa Decisão
nº 184, de 1986, em que haviam sido identifi cados, no sistema italiano, três tipos de danos –
danos patrimoniais, morais e biológicos -, para adotar uma classifi cação quádrupla, segundo
a qual, ao lado dos danos patrimoniais, haveria um gênero de danos não patrimoniais, que
abrangeria as espécies de danos morais subjetivos, danos biológicos e danos existenciais.”
FACCHINI NETO, Eugenio; WESENDONCK, Tula. Danos Existenciais: “Precifi cando”
lágrimas? Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 12, jul./dez. 2012, p.
229-267. Disponível em:
tenciais_precifi cando_lagrimas> Acesso em 11 de jan. de 2018.
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Esse projeto sendo impossibilitado por ação de outrem gera o dano
existencial, cuja defi nição, dada por Bebber, é a seguinte:
Por projeto de vida entenda-se o destino escolhido pela pessoa; o
que decidiu fazer com a sua vida. O ser humano, por sua natureza,
busca sempre extrair o máximo das suas potencialidades. Por isso,
as pessoas permanentemente projetam o futuro e realizam esco-
lhas no sentido de conduzir sua existência à realização do projeto
de vida. O fato injusto que frustra esse destino (impede a sua plena
realização) e obriga a pessoa a resignar-se com o seu futuro é cha-
mado de dano existencial. (26)
A vida de relação é outro aspecto da existência do ser humano que
pode ser afetado pelas condições de trabalho, quando ele é impedido de ter
acesso aos prazeres das atividades realizadas fora do ambiente de trabalho,
como a convivência com a família, prática de algum esporte ou hobby, via-
gens de lazer, clubes, igrejas etc(27).
Nossa Carta Magna e legislação laboral contemplam o direito a períodos
de repouso, férias anuais, intervalos intra e interjornadas, limites à jornada
diária e semanal, bem como o limite às horas suplementares.
O empregador que não cumpre as exigências estabelecidas em lei po-
derá estar causando dano existencial ao empregado, mesmo que remunere
as horas suplementares prestadas além do limite legalmente estabelecido,
ou pague em dobro férias não concedidas(28).
Existe nessa atitude do empregador uma clara violação a um direito hu-
mano (bem como de direitos fundamentais previstos em nossa Carta Magna
(26) BEBBER, Júlio César. Danos extrapatrimoniais (estético, biológico e existencial); breves
considerações. Revista LTr, São Paulo, v. 73, n. 01, p. 26, jan. 2009.
(27) “Quanto à vida de relação, o dano resta caracterizado, na sua essência, por ofensas
físicas ou psíquicas que impeçam alguém de desfrutar total ou parcialmente, dos prazeres
propiciados pelas diversas formas de atividades recreativas e extralaborativas tais quais a
prática de esportes, o turismo, a pesca, o mergulho, o cinema, o teatro, as agremiações re-
creativas, entre tantas outras. Essa vedação interfere decisivamente no estado de ânimo do
trabalhador atingindo, consequentemente, o seu relacionamento social e profi ssional. Reduz
com isso suas chances de adaptação ou ascensão no trabalho o que refl ete negativamente
no seu desenvolvimento patrimonial.” (ALMEIDA NETO. 2005, apud BOUCINHAS FILHO,
Jorge Cavalcanti; ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. O dano existencial e o direito do trabalho.
Revista LTr, São Paulo, v. 77, n. 4, p. 450, abr. 2013.)
(28) “Com efeito, quando o empregador não concede férias, não faz cumprir os horários de
descansos ou exige uma jornada habitual e exaustiva, impedindo, dessa forma, que o traba-
lhador se recomponha física e psicologicamente, coloca em xeque os direitos fundamentais
dispostos na Carta Magna, como o direito ao lazer, à convivência familiar e ao descanso.”
(ROSÁRIO, Murilo. Do dano existencial no Direito do Trabalho. Disponível em:
lorosario.jusbrasil.com.br/artigos/113028683/do-dano-existencial-no-direito-do-trabalho>
Acesso em: 16 fev. 2015.)
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— arts. 5º a 17), haja vista o que dispõe a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, aprovada a 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das
Nações Unidas (ONU), estando o Brasil entre os países signatários: Artigo
XXIV: “Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razo-
ável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas”, bem como de
direitos fundamentais previstos em nossa Carta Magna (arts. 5º a 17).
Todavia, há também entendimentos no sentido de que para que se
caracterize o dano existencial não basta que se comprove que o traba-
lhador cou sem tirar férias por longo período ou trabalhou em horas
suplementares em número superior ao limite legal, devendo existir um
nexo causal entre o dano a um projeto de vida ou à vida de relação, pois,
para a violação dos direitos trabalhistas, há sanções próprias previstas
em lei (pagamento em dobro de férias não concedidas no prazo legal,
multas administrativas).
Nesse caso, seria necessário comprovar que o trabalhador sofreu
um prejuízo efetivo em seu modo de vida, projeto de vida ou em sua vida
particular(29).
Michel Foucault em seu livro Vigiar e Punir — Nascimento da prisão
depois de narrar a terrível execução do condenado Damiens na Paris de
1757, demonstrando a evolução das penas três décadas mais tarde, mencio-
na o regulamento da “Casa dos jovens detentos em Paris”, redigido por Léon
Faucher, cujo art. 17 dispõe: “O dia dos detentos começará às seis horas
da manhã no inverno, às cinco horas no verão. O trabalho há de durar nove
horas por dia em qualquer estação. [...].”(30)
Do texto referente a esse sistema correcional do século XVIII, vemos
que os detentos naquele tempo trabalhavam nove horas por dia, sendo isto
uma forma de punição para eles.
Uma pergunta recorrente é: o trabalho pode matar?
Ou, ainda: alguém pode morrer de tanto trabalhar?
Todos sabem que o excesso de qualquer atividade causa danos à saú-
de, comer demais, beber demais, exercitar-se demais etc.
(29) “O dano existencial caracteriza-se pela não concessão de férias por um longo período,
pela sobrecarga de horas extras além do limite legal de forma habitual, tudo de modo a causar
um prejuízo concreto no modo de vida da pessoa [prejuízo à saúde psíquica] e/ou a um pro-
jeto de vida [exemplifi que-se com o trancamento da faculdade por não conseguir comparecer
as aulas] e/ou prejuízo concreto no convívio familiar [exemplifi que-se com um divórcio por
estar sempre ausente do meio familiar].” NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Dano existencial.
Disponível em:
no-existencial.html>. Acesso em: 20 jan. 2015.
(30) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. 37. ed. Petrópolis: Vozes,
2009. p. 11-12.
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Certamente, é possível acrescentar a essa lista: trabalhar demais ou
acima de suas forças. Dizia Cervantes por intermédio de seu Dom Quixote:
“O asno atura a carga, mas não a sobrecarga.”(31)
Quando o excesso de trabalho leva à morte, o dano existencial pode ter
dado ensejo ao dano moral biológico, sendo este a última e mais grave con-
sequência daquele, ou seja, pode haver uma cumulação de danos.
Um exemplo típico é o que vem ocorrendo no Japão, onde trabalhadores,
após jornadas exaustivas, excesso de horas extras, jornadas noturnas e em fi -
nais de semana, acabam por sofrer um colapso e morrer. Devido à ocorrência de
diversos casos semelhantes os japoneses deram um nome a esse mal: Karoshi.
O dano causado também poderá ser psicológico, levando o trabalhador
ao suicídio, como o signifi cativo caso dos funcionários da empresa francesa
“France Telecom”, amplamente divulgado pela imprensa há alguns anos, no
qual vinte e cinco trabalhadores se mataram e os sindicatos atribuíram a
onda de suicídios ao estresse causado pela gestão empresarial e as condi-
ções de trabalho na empresa (32):
No caso, também pode ter ocorrido cumulação de danos: existencial e
moral [psicológico], a ser comprovada(33).
Cabe fazer a distinção entre dano existencial e dano moral, a fi m de
evitar que se confundam institutos diversos.
A defi nição dada por Flaviana Rampazzo Soares é bastante esclarecedora:
O dano existencial diferencia-se do dano moral propriamente dito, por-
que esse é ‘essencialmente um sentir’, enquanto aquele é um ‘não mais poder
fazer, um dever de agir de outra forma, um relacionar-se diversamente’, em
que ocorre uma limitação do desenvolvimento normal da vida da pessoa. [...]
Ademais, enquanto o dano moral incide sobre o ofendido, de maneira, muitas
vezes, simultânea à consumação do ato lesivo, o dano existencial, geralmen-
te, manifesta-se e é sentido pelo lesado em momento posterior, porque ele é
uma sequência de alterações prejudiciais no cotidiano, sequência essa que
só o tempo é capaz de caracterizar. (34)
(31) “Por tua vida, Sancho, fi que o negócio por aqui: o remédio parece-me aspérrimo e será
bom dar tempo, que Roma nem Pavia não se fez num dia. Já deste, se contei bem, mais de
mil açoites; bastam por agora, que, como dizem os rústicos, o asno atura a carga, mas não a
sobrecarga.” SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quixote de La Mancha. Trad. Viscondes
de Castilho e Azevedo. São Paulo: Nova Cultural, 2002. Capítulo LXXI, p. 666.
(32) Disponível em:
AFP_78469349>. Acesso em: 20 jan. 2015.
(33) “Em que pese o fato de que os danos à integridade psicofísica da pessoa, provavelmen-
te, gerem danos a um projeto de vida, isso pode não ocorrer necessariamente. Ademais, se
isso ocorrer, serão dois danos a constituírem objeto de indenização, e não um só.” (SOARES,
Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2009. p. 110.)
(34) Ibidem, p. 46.
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Assim, se constata a possibilidade de cumulação de danos nos casos
mencionados e o texto de Boucinhas Filho e Alvarenga é consonante a esta
assertiva:
Havendo, no contexto da relação de emprego, a ocorrência de
dano existencial e de dano moral, poderá haver a cumulação entre
ambos, desde que sejam provenientes do mesmo fato. Do mesmo
modo que é possível cumular o dano moral com o dano material
e, por consequência, com o dano estético, também será possível
cumular o dano moral, pela lesão à saúde do trabalhador, com o
dano existencial. Desse modo, quando são afetadas as atividades
realizadoras do trabalhador, em virtude do dano a sua saúde física
ou mental, que se deu por excesso de trabalho, poderá haver a
xação de forma cumulada tanto do dano moral quanto do dano
existencial. (35)
A Encíclica Rerum Novarum,do Papa Leão XIII, ao tratar das obrigações
dos operários e patrões, recomenda:
A atividade do homem, restrita como a sua natureza, tem limites
que se não podem ultrapassar. O exercício e o uso aperfeiçoam-na,
mas é preciso que de quando em quando se suspenda para dar
lugar ao repouso. Não deve, portanto, o trabalho prolongar-se por
mais tempo do que as forças permitem. Assim, o número de horas
de trabalho diário não deve exceder a força dos trabalhadores, e
a quantidade de repouso deve ser proporcionada à qualidade do
trabalho, às circunstâncias do tempo e do lugar, à compleição e
saúde dos operários. O trabalho, por exemplo, de extrair pedra, fer-
ro, chumbo e outros materiais escondidos debaixo da terra, sendo
mais pesado e nocivo à saúde, deve ser compensado com uma
duração mais curta. Deve-se também atender às estações, porque
não poucas vezes um trabalho que facilmente se suportaria numa
estação, noutra é de fato insuportável ou somente se vence com di-
culdade. [...] Em geral, a duração do descanso deve medir-se pelo
dispêndio das forças que ele deve restituir. O direito ao descanso
de cada dia, assim como à cessação do trabalho no dia do Senhor,
deve ser a condição expressa ou tácita de todo o contrato feito entre
patrões e operários. Onde esta condição não entrar, o contrato não
será justo, pois ninguém pode exigir ou prometer a violação dos
deveres do homem para com Deus e para consigo mesmo. (36)
(35) BOUCINHAS FILHO; ALVARENGA, op. cit., p. 456.
(36) LEÃO XIII, Papa. Encíclica “Rerum Novarum”: Sobre a condição dos operários.
[1891]. Disponível em:
-iii_enc_15051891_rerum-novarum.html>. Acesso em: 30 mar. 2015.
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Constata-se da leitura do texto, a preocupação com a limitação da jor-
nada e a quantidade do repouso, questões que àquela época e ainda hoje
são motivo de reivindicações dos trabalhadores e de preocupação das auto-
ridades estatais com o cumprimento das leis pertinentes ao tema.
Outra das consequências do excesso de trabalho é a denominada Síndrome
do Esgotamento Profi ssional ou burn out, expressão atribuída a H. Freudenthal
que a defi niu como uma síndrome de desgaste físico e mental intenso, produzin-
do verdadeiro esgotamento, decorrente de um estresse laboral crônico.
Tal síndrome muito se aproxima do dano existencial ou podemos mesmo
entendê-la como um dos fatores que levam a ele, pois, deixando o trabalha-
dor em estado de esgotamento, certamente, isto irá refl etir negativamente
em sua vida de relação e, consequentemente, em seu projeto de vida.
Rojo e Cervera, observam sobre a síndrome:
Lo que ahora importa dejar claro es que, de manera general, se
entiende que el ‘síndrome de desgaste personal’ no proviene de
ningún ataque o acoso intencionado, sino de una mala política de
gestión empresarial en la que no hay intención alguna de provocar
el apartamiento de uno de los componentes de la organización.(37)
Vemos que a síndrome não se refere a assédio moral no local de traba-
lho, não sendo, portanto, um dano desse tipo, mas, um dano físico/psicológico
causado pelo empregador que, por questões administrativas, sobrecarrega
o empregado, causando neste um esgotamento físico e mental que, além do
dano apontado, poderá causar-lhe o dano existencial.
Em razão da relativa novidade do reconhecimento do instituto do dano
existencial em nossos tribunais, ainda há decisões que o confundem com o
instituto do dano moral, ou entendem aquele como uma subespécie deste
último.
A doutrina vem demonstrando a total distinção entre referidos institutos
que inclusive admitem, como já mencionado, sua cumulação com outros ti-
pos de danos, visando à reparação integral ao trabalhador por eles vitimado.
Como bem defi niu Bebber:
O dano existencial independe de repercussão fi nanceira ou econômica,
e não diz respeito à esfera íntima [dor e sofrimento, características do dano
moral]. Dele decorre a frustração de uma projeção que impede a realização
(37) ROJO, José Vicente; CERVERA, Ana Maria, 2005, apud WYZYKOWSKI, Adriana; BAR-
ROS, Renato da Costa Lino de Goes; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Assédio moral laboral e
direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2014. p. 151.
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pessoal [com perda da qualidade de vida e, por conseguinte, modifi cação in
pejus da personalidade], impõe a reprogramação e obriga um relacionar-se
de modo diferente no contexto social. É, portanto, passível de constatação
objetiva. Analisa-se, para aferição do dano existencial: a) a injustiça do dano.
Somente dano injusto poderá ser considerado ilícito; b) a situação presente,
os atos realizados [passado] rumo à consecução do projeto de vida e a situ-
ação futura com a qual deverá resignar-se a pessoa; c) a razoabilidade do
projeto de vida. Somente a frustração injusta de projetos razoáveis [dentro
de uma lógica do presente e perspectiva de futuro] caracteriza dano existen-
cial. Em outras palavras: é necessário haver possibilidade ou probabilidade
de realização do projeto de vida; d) o alcance do dano. É indispensável que
o dano injusto tenha frustrado [comprometido] a realização do projeto de vida
[importando em renúncias diárias] que, agora, tem de ser reprogramado com as
limitações que o dano impôs.(38)
O mesmo autor nos fornece a distinção entre o dano moral e os demais
danos extrapatrimoniais:
De modo bem simples podemos distinguir o dano moral dos de-
mais danos extrapatrimoniais da seguinte forma: a) o dano moral
tem repercussão íntima [padecimento da alma, dor, angústia, mágoa,
sofrimento etc.]. Sua dimensão, portanto, é subjetiva e, por isso, não
exige prova; b) os danos estético [alteração no aspecto físico exterior
com a qual a pessoa terá de conviver nas relações sociais], bioló-
gico [impede ou reduz a vida de relação da pessoa] e existencial
[renúncia a uma atividade concreta] têm repercussão externa. Suas
dimensões, portanto, são objetivas e podem ser objeto de prova.(39)
Dos exemplos citados de circunstâncias que podem levar ao dano
existencial trabalhista, não podemos olvidar dos acidentes ou doenças pro-
ssionais decorrentes de culpa do empregador(40) e do trabalho em condição
degradante ou análoga à de escravo, no qual o empregador obriga o em-
pregado a trabalhar em condições subumanas, em locais sem as mínimas
condições de salubridade, em jornadas extenuantes, sob constante ameaça
à sua segurança e/ou usando do chamado truck system, onde o trabalhador
é obrigado a adquirir produtos em armazéns ou sistemas de fornecimento de
(38) BEBBER, op. cit., p. 28-29.
(39) Ibidem, p. 29.
(40) [...] “a ampliação da jonada [inclusive com a prestação de horas extras] acentua, drastica-
mente, as possibilidades de ocorrência de doenças profi ssionais, ocupacionais ou acidentes
do trabalho, sua redução diminui de maneira signifi cativa tais probabilidades da denominada
‘infortunística do trabalho’.” (DELGADO, Mauricio Godinho. Duração do trabalho: o debate
sobre a redução para 40 horas semanais. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, São
Paulo, ano XXII, n. 256, p. 8, out. 2010.)
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mercadorias mantidos pelo empregador (vedação: art. 462, §§ 2º, 3º e 4º, da
CLT), acarretando a vinculação total de seu salário ao pagamento da dívida
contraída.
Finalizando esta conceituação, podemos dizer que o dano existencial é a
frustração de um projeto de vida e/ou da vida de relação em virtude de um fato
injusto que, na defi nição de Rampazzo Soares, resulta em “um não mais poder
fazer, um dever de agir de outra forma, um relacionar-se diversamente”(41), em
que ocorre uma limitação do desenvolvimento normal da vida da pessoa”(42),
com refl exos negativos nos âmbitos social e profi ssional desta.
A Carta Política brasileira tem dentre seus fundamentos a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, inciso III) e os valores sociais do trabalho (art. 1º,
inciso IV), bem como seu art. 5º, em seus incisos V e X, prevê o direito à in-
denização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
No Código Civil, se encontram além dos arts. 11 a 21 (Dos Direitos
da Personalidade), o 186: “Aquele que por ação ou omissão voluntária, ne-
gligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito” e o 927: “Aquele que, por ato ilícito
(arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fi ca obrigado a repará-lo.”
E agora, com a Reforma Trabalhista, foi acrescentado à CLT o art. 223-B
que menciona textualmente a ofensa existencial.
De acordo com Rampazzo Soares é possível associar a responsabilida-
de por dano existencial a “três princípios: o da dignidade da pessoa humana,
o da solidariedade e o neminem laedere.”(43)
A dignidade da pessoa humana é protegida pelo direito, tendo em vista
que cada indivíduo embora fazendo parte da espécie e, nesse sentido sendo
igual aos demais, tem características próprias que o diferenciam que devem
ser respeitadas. Segundo Hannah Arendt:
A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem
duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens
seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de
fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras.
Se não fossem diferentes, se cada ser humano não diferisse de todos os que
existiram, existem ou virão a existir, os homens não precisariam do discurso
ou da ação para se fazerem entender. Com simples sinais e sons, poderiam
comunicar suas necessidades imediatas e idênticas.(44)
(41) CASSANO, Giuseppe. 2002, apud SOARES, op. cit., p. 46.
(42) SOARES, op. cit., p. 46.
(43) Ibidem, p. 51.
(44) ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007. p. 188.
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A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental de nossa
Carta Política, previsto em seu art. 1º, inciso III.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada a 10 de de-
zembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), em seu
art. XXIV, assim dispõe: “Todo homem tem direito a repouso e lazer, in-
clusive à limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas
periódicas.”
Kant afi rmava: “O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional,
existe como m em si mesmo, não só como meio para uso arbitrário desta
ou daquela vontade.”(45)
Podemos concluir que o ser humano é dotado de dignidade (“existe
como fi m em si mesmo”) e, portanto, não pode ser utilizado para atingir de-
terminado fi m almejado por uma vontade não condizente com seus próprios
planos (v. g. : aumentar os lucros do empregador às custas do sacrifício de
seu projeto de vida).
Quanto ao princípio da solidariedade, Rampazzo Soares, ensina:
A solidariedade tem raiz na fraternidade, que visa à mútua coope-
ração para obtenção do objetivo comum de proporcionar a sus-
tentação e o desenvolvimento digno de todos — o bem comum
e a ordem social —, e é norma que tem como objetivo garantir a
toda pessoa condições adequadas ‘para uma existência livre e dig-
na pela afi rmação e desenvolvimento da própria personalidade’(46),
objetivos que devem permear todos os dispositivos reguladores da
convivência social.(47)
O princípio Alterum non laedere ou neminem laedere faz parte da má-
xima de Ulpiano, constante do Corpus iuris civilis, que prescreve: “viver
honestamente, não lesar a ninguém, dando a cada um o que é seu.”(48)
(45) KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quin-
tela. Lisboa: 2007. Edições 70, p. 68.
(46) TRIMARCHI, Pietro. 1996, apud SOARES, op. cit., p. 55.
(47) SOARES, op. cit., p. 55.
(48) Alterum non laedere. Da Wikipedia, l’enciclopedia libera. La frase latina alterum non lae-
dere (Trad. non recare danno ad altri) rappresenta una delle tre regole del diritto descritte
dal giurista romano Eneo Domizio Ulpiano nelle sue Regole: D. 1.1.10pr “Iustitia est constans
et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alte-
rum non laedere, suum cuique tribuere” (Trad. “La giustizia consiste nella costante e perpetua
volontà di attribuire a ciascuno il suo diritto. Le regole del diritto sono queste: vivere onesta-
mente, non recare danno ad altri, attribuire a ciascuno il suo”). Frequentemente viene utilizzata
con lo stesso signifi cato la locuzione neminem laedere. Disponível em:
wiki/Alterum_non_laedere>. Acesso em: 13 abr. 2015.
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Não lesar a ninguém é uma das regras que quando infringida deve ter
como consequência a devida reparação, a fi m de que a sociedade seja pre-
servada sem se corromper.
Pelo exposto, podemos concluir que o dano existencial, por causa de
uma jornada excessiva, falta de concessão de férias, trabalho extenuante
etc., pode atingir indistintamente qualquer tipo de trabalhador, independen-
temente do posto hierárquico que ocupe no local de trabalho e, quando
devidamente comprovado, enseja sua reparação de acordo com o art. 223-G,
§ 1º da CLT.

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