Decisão monocrática Nº 0814281-40.2021.8.10.0000 do TJMA. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, 4ª Câmara Cível, 27-01-2022

Data de decisão27 Janeiro 2022
Número do processo0814281-40.2021.8.10.0000
Ano2022
Classe processualConflito de Competência Cível
Órgão4ª Câmara Cível
Tipo de documentoDecisão monocrática
QUARTA CÂMARA CÍVEL

CONFLITO DE COMPETÊNCIA NO 0814281-40.2021.8.10.0000 — SÃO LUÍS

Suscitante: Juízo de Direito da 1ª Vara da Infância e Juventude do Termo Judiciário de São Luís

Suscitado: Juízo de Direito da 15ª Vara Cível do Termo Judiciário de São Luís

Relator: Desembargador Marcelo Carvalho Silva

DECISÃO

I – Relatório

Adoto como relatório o contido no parecer ministerial (id. 13626667, p. 1/2), da lavra do eminente Procurador de Justiça, Dr. PAULO ROBERTO SALDANHA RIBEIRO, que ora transcrevo:

Trata-se de Conflito Negativo de Competência, suscitado pelo Juízo da 1ª Vara da Infância e Juventude em face do Juízo da 15ª Vara Cível, ambos do Termo Judiciário de São Luís da Comarca da Ilha de São Luís, nos autos da ação de obrigação de fazer nº 0831559-85.2020.8.10.0001, movida por Guilherme de Lucena Venâncio Goes, menor de idade representado por sua genitora, Cingrith de Lucena Venâncio Goes, contra a Unimed Maceió Cooperativa de Trabalho Médico.

Inicialmente, os autos foram distribuídos ao Juízo da 15ª Vara Cível de São Luís, o qual declinou da competência para o processamento e julgamento do feito em favor do Juízo da 1ª Vara da Infância e Juventude de São Luís (ID 11961544), nos seguintes termos:

“Segundo a narrativa contida na petição inicial, a parte ré teria se negado ao cumprimento de contrato de prestação de assistência à saúde firmado com a parte autora, recusando-se a custear/autorizar recurso médico (no caso, consultas/sessões com fonoaudiólogo), prescrita como tratamento complementar ao implante coclear anteriormente realizado, prescrito em razão de perda auditiva.

Considerando tratar-se de hipótese de evidente risco ao desenvolvimento da menor, o feito deve ser apreciado pela 1ª Vara da Infância e Juventude deste termo judiciário, razão pela qual DETERMINO a remessa do presente feito a essa unidade jurisdicional.”

Redistribuído o feito, o Juiz de Direito da 1ª Vara da Infância e Juventude de São Luís também declinou de sua competência, suscitando o conflito negativo de competência, no ID 11961545, sob o seguinte fundamento:

[…]

5. Explico. A competência das Varas da Infância e Juventude é fixada pela situação de risco enfrentada pela criança e/ou adolescente litigante. O simples fato de figurar no polo ativo do processo uma criança e/ou adolescente não justifica o seu trâmite perante a unidade especializada.

6. Trata-se de incompetência em razão da pessoa (criança/adolescente) e em face da matéria (situação de risco ou vulnerabilidade inexistente), na modalidade absoluta, “(…) inderrogável por convenção das partes” (C.P.C., artigo 62)

[…]

8. Discute-se, in casu, apenas direitos materiais relativos a cláusulas contratuais privadas. Direito individual, portanto. Inexiste qualquer fato inerente a ações de estado ou situação de risco que justifique a interveniência deste Juízo Menorista no presente feito. Neste ponto nuclear, “Nada de novo sob o Sol”, como está escrito no Eclesiastes.

9. No plano normativo, Estatuto da Criança e do Adolescente fixa com segurança a competência da Justiça infantojuvenil:

[…]

10. Pois bem. As relações obrigacionais não se inserem na competência da Justiça da Infância e da Juventude, não se podendo dar, no caso em apreço, incabível interpretação extensiva aos direitos e garantias fundamentais, pois apenas a discussão de acesso à saúde pública é da competência do Juízo Especializado Menorista.

[...]

Os autos foram encaminhados a esta Procuradoria, conforme despacho de ID 12506768.

Acrescento que, ao final do referido parecer, o representante ministerial manifestou-se “pela procedência do presente conflito negativo, para que seja declarada a competência do Juízo da 15ª Vara Cível de São Luís, para processamento e julgamento do presente feito.” (id. 13626667, p. 5)

É a exposição.

II – Do julgamento monocrático do presente conflito de competência

II.I – Modelo constitucional do processo civil

In Constituição da República 30 Anos Depois (Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019), uma coletânea de estudos em homenagem ao Ministro LUIZ FUX, na apresentação, os três Coordenadores, ABHNER YOUSSIF MOTA ARABI, FERNANDO MALUF e MARCELLO LAVENÈRE MACHADO NETO, expressam com habilidades doutrinárias e hermenêuticas que:

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a sétima de nossa história, foi editada com a pretensão de inaugurar novos tempos em nossa nação, propugnando por valores que conduziriam, durante sua concretização, a uma maior promoção da cidadania e igualdade material. Em 2018 nossa Constituição chega aos 30 anos. Já é a segunda mais longeva de nosso período republicano e apresenta, ainda, perspectivas de longos anos de vigência. Além de ser este um momento de celebração de seu aniversário, é tempo também de se fazer um balanço entre aquilo que o texto prometia, e o que se conseguiu alcançar e os pontos em que ainda podemos – e devemos – avançar. O que será que constituímos nesses 30 anos?

Continuam os Coordenadores (ob. cit., p.13), in verbis:

Apesar dos avanços, ainda há muito em progredir. Por definição, os direitos fundamentais envolvem em seu conceito aspectos de progresso e de historicidade, como indicadores de sua concepção aberta e dinâmica, construída ao longo do tempo, que conduz a um contínuo caminhar. Ainda que assim não fosse, há enunciados normativos constitucionais que ainda não foram concretizados em sua inteireza, comprometendo a eficácia plena da cidadania então idealizada para a nova sociedade brasileira.

O legislador, ao verificar o vácuo no Código de Processo Civil de 1973, conhecido como Código Buzaid, quanto ao não abraçar os valores e normas constitucionais, o atual CPC/2015, que denomino nos meus sentires (ou sentenças) de Código Fux, fez com que este, logo no primeiro momento, expresse:

Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.

O Mestre CASSIO SCARPINELLA BUENO deita, nas considerações iniciais dos Comentários ao Código de Processo Civil: “(...) em última análise, voltado ao estudo da atividade-fim do Poder Judiciário, o exercício da função jurisdicional evidencia-se a indispensabilidade de seu estudo dar-se a partir da Constituição Federal. É ela – e não as leis – que moldam o “ser” (ou melhor, o dever-ser) do Estado brasileiro, inclusive de seus órgãos jurisdicionais.” (p. 21).

E separa de forma metódica:

O art. 1º, nesse sentido tem a missão de lembrar os aplicadores de direito processual civil como um todo e do Processo Civil em particular, que ele deve ser interpretado, antes de tudo, a partir da própria Constituição Federal; que ele só pode vincular seus destinatários na exata medida em que tenha observado o observe o “modelo constitucional”.

No outro parágrafo continua (ob. cit., p. 23):

(...) o que se espera do intérprete e do aplicado do direito é a busca pela possível compatibilização, aplica-se a lei devidamente conformada ao “modelo constitucional”, verdadeiro processo de “filtragem constitucional”. Se não, deve prevalecer a Constituição Federal sobre a disposição infraconstitucional, irremediavelmente, inconstitucional.

LÊNIO LUIZ STRECK e outros tratam da matéria nos Comentários ao Código de Processo Civil (p. 28). O dado hermenêutico do art. 1º do novo Código Fux ficou no pincel de LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA, e ele ratifica, in verbis:

(...) o dispositivo encerra uma obviedade. Não somente as normas processuais, mas qualquer outra há de ser construída e interpretada de acordo com a Constituição da República. São várias as normas da Constituição Federal que contemplam preceitos de ordem processual. As normas fundamentais constitucionais aplicam-se ao processo.” (...) O conteúdo do art. 1º do CPC é constitucional. Violá-lo é violar a Constituição.

JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA (ob. cit., p. 33) ensina:

No contexto democrático, o modo como se manifestam e relacionam os sujeitos do processo deve observar as garantias mínimas decorrentes do due process of law. Assim, interessam, evidentemente, as regras dispostas no Código de Processo Civil e em outras leis, mas, sobretudo, a norma constitucional. Entendemos que os princípios e valores dispostos na Constituição Federal constituem o ponto de partida do trabalho do processualista.

A lição de nosso melhor doutrinador brasileiro, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR (Código de Processo Civil Anotado. 20ª ed., revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2016):

Na parte geral o Novo Código dispensou grande atenção à constitucionalização do processo, dedicando seus doze artigos iniciais para definir aquilo que denominou de Normas Fundamentais do Processo Civil, dentre os quais merecem destaque os princípios do contraditório sem surpresas; da cooperação entre partes e juiz na atividade de formulação do provimento jurisdicional; da sujeição de todos os participantes do processo ao comportamento ao comportamento de acordo com a boa-fé; da duração razoável do processo; da dignidade da pessoa humana; da eficiência da prestação a cargo do Poder Judiciário; da submissão do próprio juiz ao contraditório; da fundamentação adequada das decisões judiciais; da vedação de privilégios da ordem de julgamento das causas. Entre as normas fundamentais figura também a que estimula a prática da justiça coexistencial (juízo arbitral, conciliação e mediação).

Realçam NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (Código de Processo Civil Comentado. 16ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, pp. 195 a 196), in verbis:

Antes de o processo civil ser ordenado pelo texto normativo do CPC, como preconiza o texto comentado, o processo deve subordinar-se aos valores e princípios constitucionais, como aqueles que fundamentam a República(soberania, cidadania, segurança jurídica, Estado Democrático de Direito, dignidade da pessoa humana, valores do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político), confirmam a democracia e resguardam os direitos fundamentais dos...

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